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DICASTÉRIO PARA A DOUTRINA DA FÉ

A única Cruz da salvação

Carta ao Bispo de Bayeux-Lisieux
sobre as supostas aparições de Nosso Senhor Jesus Cristo em Dozulé

 

A Sua Excelência Reverendíssima
Dom Jacques HABERT
Bispo de Bayeux-Lisieux

Excelência Reverendíssima,

permita-me iniciar esta carta com um belo canto à Cruz de Cristo:

«Ó cruz, tu és a grande misericórdia de Deus, ó cruz, glória do céu, ó cruz, salvação eterna dos homens, ó cruz, terror para os maus e poder para os justos e luz para aqueles que crêem. Ó cruz, que tornaste possível ao Deus encarnado de salvar o mundo e ao homem de reinar em Deus no céu, por ti apareceu a luz da verdade e a noite do mal fugiu. Tu destruíste os templos dos deuses derrubados pelos povos crentes, tu és o vínculo da paz humana, reconciliando o homem com a aliança de Cristo mediador. Tu te tornaste a escada do homem pela qual ele pode ser transportado ao céu. Sê sempre para nós, crentes, coluna e âncora, para que nossa casa permaneça firme e nosso barco seja bem guiado, que confiou na cruz e obteve da cruz a fé e a coroa» (Paulino de Nola, Poemas 19).

Refiro-me agora às supostas aparições de Dozulé, ligadas à figura de Madeleine Aumont, que, ao longo dos anos, suscitaram um certo interesse espiritual, mas também muitas controvérsias e dificuldades de ordem doutrinária e pastoral. A ocasião deve-se a vários pedidos de esclarecimento recebidos por este Dicastério e, sobretudo, a certas interpretações teológicas e simbólicas que daí decorreram.

Como é sabido, os Seus antecessores tomaram posição em relação a essas supostas aparições. O Bispo, S. Ex.ª Mons. Badré, declarou que: «A manifestação do Espírito de Deus traduz-se para os cristãos no sinal da Cruz, sinal através do qual Deus partilha os nossos sofrimentos e as nossas dores, sinal desconcertante para o espírito do homem moderno. Mas a salvação não se realiza segundo os nossos projetos humanos. As modestas cruzes erguidas nas nossas campinas expressam bem esta realidade». Após o seu discernimento pastoral, concluiu: «Em nenhum caso a construção de uma cruz monumental empreendida em Dozulé por uma associação com sede em Paris pode ser um sinal autêntico da manifestação do Espírito de Deus» (Comunicado, 10 de abril de 1983).

Na Declaração, publicada em 8 de dezembro de 1985, o mesmo bispo, S. Ex.ª Dom Badré, afirmava: «No que diz respeito ao que está acontecendo em Dozulé, a ação e a agitação, a arrecadação de fundos por pessoas que agem por conta própria, sem mandato, sem qualquer respeito pela autoridade do bispo […], a propaganda fanática a favor da “mensagem” […], a condenação sem apelo daqueles que não aderem a ela, levam-me a considerar, em consciência, que, além de toda essa agitação, não consigo discernir os sinais que me autorizariam a declarar autênticas as “aparições” de que se fala, ou a reconhecer uma missão que teria sido dada à Igreja de difundir essa “mensagem”».

O próprio Dicasterio para a Doutrina da Fé não deixou de apoiar a ação dos bispos da Diocese de Bayeux-Lisieux na difícil tarefa de enfrentar questões que continuaram a gerar confusão. E, no interesse superior do bem dos fiéis, exortou, por um lado, a continuar vigiando o fenômeno das supostas aparições e, por outro, a reconduzir a eventual ereção de cruzes no caminho do culto saudável da Santa Cruz.

Recentemente, Vossa Excelência, após uma análise aprofundada do fenômeno em questão, sentiu a necessidade de proceder a um discernimento adicional dos eventos relacionados à Haute-Butte de Dozulé, a fim de levar toda a questão a uma conclusão definitiva. Para tal, Vossa Excelência propôs como conclusão da análise, de acordo com o estabelecido nas Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais, no n. 22, uma declaratio de non supernaturalitate, através da qual o Dicastério a autoriza a declarar definitivamente que o fenômeno das supostas aparições de Dozulé é reconhecido como não sobrenatural, ou seja, que não tem uma origem divina autêntica.

A mensagem principal das supostas aparições de Dozulé inclui o pedido de construir uma cruz luminosa, denominada “Cruz Gloriosa”, com 738 metros de altura, visível de longe, como símbolo da redenção universal e sinal de sua próxima vinda na glória. Em particular, o conteúdo das supostas mensagens, embora contenha exortações à conversão, à penitência e à contemplação da Cruz — temas certamente centrais na fé cristã — levanta algumas questões teológicas delicadas que merecem esclarecimento, para que a fé dos fiéis não seja exposta ao risco de distorções.

Essas questões dizem respeito ao valor da Cruz, à remissão dos pecados e ao anúncio do retorno iminente do Senhor. Sobre esses temas, são necessárias algumas precisões, para que o anúncio do amor misericordioso de Cristo, revelado no mistério da Cruz, não seja alterado por elementos que obscureçam sua verdade central.

1. O valor único e definitivo da Cruz de Cristo, sinal universal de salvação

Alguns textos propõem um paralelo entre a cruz luminosa de Dozulé e a Cruz de Jerusalém.

Na quinta suposta aparição, em 20 de dezembro de 1972, há a exortação: “Digam ao sacerdote que a Cruz Gloriosa erguida neste lugar é comparável à de Jerusalém”.

De forma ainda mais explícita, essa comparação aparece na XI suposta aparição, em 5 de outubro de 1973: “A Cruz Gloriosa, erguida no alto da colina, deve ser comparada à cidade de Jerusalém”.

A Cruz de Jerusalém – ou seja, o Gólgota, onde ocorreu a crucificação de Cristo – é o local histórico onde se desenrolaram os últimos acontecimentos da vida terrena de Jesus de Nazaré e o local salvífico onde se consumou a Redenção. Um Padre da Igreja sublinha o valor único deste lugar:

«Ele foi verdadeiramente crucificado pelos nossos pecados. Sim, mesmo que você se obstine em negá-lo, este lugar que está diante dos nossos olhos, este santo Gólgota onde nos reunimos, testemunha isso, porque aqui ele foi crucificado, daqui sua cruz reduzida a fragmentos partiu para encher o mundo inteiro. Aqui foi crucificado para que fôssemos libertos dos nossos pecados, certamente não pelos seus; aqui, depois de ter sido desprezado e esbofeteado como um simples homem, foi reconhecido pela criação como Deus, quando o sol, vendo o seu Senhor vilipendiado, vacilou e, não suportando mais aquela visão, abandonou o seu lugar» (Cirilo de Jerusalém, Catequeses 4, 10).

Aquele lenho, erguido no Calvário, tornou-se o sinal real do sacrifício de Cristo, único e irrepetível. Por isso, qualquer outro “sinal” da cruz, por mais devoto ou monumental que seja, não pode ser colocado no mesmo plano. Portanto, parece enganoso, tanto do ponto de vista teológico quanto pastoral-simbólico, comparar a “Cruz Gloriosa” de Dozulé com a de Jerusalém.

Jerusalém é o centro sacramental da história da salvação, não um modelo arquitetônico ou simbólico a ser reproduzido em escala. O poder salvífico do que aconteceu no Calvário se manifesta sacramentalmente na celebração litúrgica da Igreja. Outro Padre da Igreja nos esclarece:

«Na verdade, como diz o Apóstolo, “nossa páscoa, Cristo, foi imolado” (1 Cor 5, 7). Oferecendo-se ao Pai em novo e verdadeiro sacrifício de reconciliação, ele foi crucificado não no templo, cuja dignidade já tinha chegado ao fim, nem no recinto da cidade, a qual, em punição de seu crime, seria destruída, mas fora, fora do acampamento, para que, terminado o mistério das vítimas antigas, fosse colocada uma nova vítima em novo altar, e a cruz de Cristo fosse esse altar, não mais do templo, mas do mundo» (Leão Magno, Sermão 59 Oitavo sermão a Paixão do Senhor, 5).

E ainda:

«Oh! admirável poder da cruz! Oh! glória inefável da paixão! Nela se encontra o tribunal do Senhor, nela o julgamento do mundo, nela o poder do crucificado! […] Atraíste tudo a ti, Senhor, a fim de que o culto de todas as nações do universo celebre, mediante um sacramento pleno e manifesto, o que se fazia num só templo da Judéia e sob a sombra de figuras» (ibid., 7).

Portanto, comparar a cruz solicitada em Dozulé com a de Jerusalém corre o risco de confundir o sinal com o mistério e dar a impressão de que se pode “reproduzir” ou “renovar” em sentido físico o que Cristo já realizou de uma vez por todas.

A tradição cristã reconhece na Cruz de Cristo o sinal universal da Redenção, «escândalo para os judeus e loucura para os gentios» (1 Cor 1,23), mas poder e sabedoria de Deus para aqueles que crêem. Para sublinhar a universalidade da redenção, garantida pela Cruz de Cristo, Cirilo de Jerusalém fala do Gólgota como do centro da terra, onde Jesus estendeu os braços para abraçar simbolicamente toda a humanidade:

«Na cruz, ele estendeu as mãos para abraçar com o Gólgota, situado bem no centro da terra, todo o mundo até os seus confins. Não sou eu quem o afirma, mas o profeta: “Tu operaste a salvação do centro da terra” (Sl 73,12). Aquele que estendeu as mãos divinas para estabilizar o céu, estendeu [no Gólgota] as suas mãos de carne» (Catequeses XIII, 28).

2. O risco de duplicar ou substituir o sinal salvífico

Algumas formulações contidas nas supostas mensagens de Dozulé insistem na construção da Cruz Gloriosa, como um novo sinal, necessário para a salvação do mundo, ou meio privilegiado para obter o perdão e a paz universal. Às vezes se fala em “multiplicar o sinal”, como se tal difusão constituísse uma missão imposta pelo próprio Cristo.

Na XV suposta aparição de 5 de abril de 1974, são oferecidos detalhes ainda mais precisos: «A Cruz Gloriosa deve ser erguida na ‘Haute-Butte’, muito perto da fronteira territorial de Dozulé, no ponto exato onde se encontra a árvore de fruto, a árvore do Pecado, porque a Cruz Gloriosa perdoará todos os pecados».

O pedido de erguer essa cruz deve ser considerado como uma duplicação indevida do sinal da Cruz, uma sobreposição simbólica ao mistério da redenção, quase como se fosse necessário um novo “monumento redentor” para o mundo moderno. Mas a fé católica ensina que o poder da Cruz não precisa ser replicado, porque ela já está presente em cada Eucaristia, em cada igreja, em cada crente que vive unido ao sacrifício de Cristo. Este novo símbolo correria o risco de desviar a atenção da fé para o sinal visível, tornando-o absoluto e alimentando uma espécie de “sacralidade material” que não pertence ao coração do cristianismo.

Por outro lado, um sinal de fé, para ser autêntico, deve remeter a Cristo, não atrair para si mesmo. A Cruz de Jerusalém é “sacramento do sacrifício salvífico”, enquanto uma cruz monumental como a de Dozulé corre o risco de se tornar “símbolo de uma mensagem autônoma”, separada da economia sacramental da Igreja. Nenhuma cruz, relíquia ou aparição privada pode substituir os meios de graça estabelecidos por Cristo.

A Escritura ensina que em «nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome, dado á humanidade, pelo qual devamos ser salvos» (At 4,12). Na Declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, afirma-se que: «Desde o início, efectivamente, a comunidade dos crentes atribuiu a Jesus um valor salvífico de tal ordem, que apenas Ele, como Filho de Deus feito homem, crucificado e ressuscitado, por missão recebida do Pai e no poder do Espírito Santo, tem por finalidade dar a revelação (cf. Mt 11,27) e a vida divina (cf. Jo 1,12; 5,25-26; 17,2) à humanidade inteira e a cada homem» (n. 15). O rosto da salvação resplandece na beleza de Cristo crucificado e ressuscitado, que continua a derramar a vida nascida da madeira da Cruz também sobre aqueles que não estavam presentes fisicamente no Gólgota. Qualquer outro sinal, por mais piedoso ou sugestivo que seja, não pode substituir nem replicar o mistério único da Cruz de Jesus.

A Cruz não precisa de 738 metros de aço ou cimento para ser reconhecida: ela se eleva cada vez que um coração, sob a ação da graça, se abre ao perdão, que uma alma se converte, que a esperança ressurge onde parecia impossível, e também quando, beijando uma pequena cruz, um crente se entrega a Cristo. Cada ato de fé, cada gesto de misericórdia, cada “sim” à vontade de Deus é como uma pedra viva que ergue essa Cruz no mundo.

Por outro lado, deve-se reiterar que nenhuma revelação privada deve ser considerada uma obrigação universal ou um sinal que se imponha à consciência dos fiéis, mesmo que, juntamente com tais fenômenos, se produzam frutos espirituais. A Igreja encoraja as expressões de fé que conduzem à conversão e à caridade, mas adverte contra qualquer forma de “sacralização do sinal” que leve a considerar um objeto material como garantia absoluta da salvação.

3. Esclarecimento doutrinário crucial: Cruz e remissão dos pecados

Entre as afirmações mais preocupantes das supostas mensagens de Dozulé encontra-se a referência à “remissão dos pecados” através da contemplação desta cruz de Dozulé.

Assim, na XIV suposta aparição de 1º de março de 1974: «Todos aqueles que vierem se arrepender aos pés da Cruz Gloriosa serão salvos. Satanás será destruído, restará apenas Paz e Alegria».

Na XV suposta aparição, em 5 de abril de 1974, como já referido, diz-se: «A Cruz Gloriosa deve ser erguida na “Haute-Butte”, muito perto da fronteira territorial de Dozulé, no ponto exato onde se encontra a árvore de fruto, a árvore do Pecado, porque a Cruz Gloriosa perdoará todos os pecados».

Um mês depois, na XVI supusta aparição de 3 de maio de 1974, reitera-se: «aquela árvore inclinada é o símbolo do pecado. Arranquem-na antes que apareçam os frutos e apressem-se em erguer em seu lugar a Cruz Gloriosa, porque a Cruz Gloriosa perdoará todos os pecados».

É claro que quando se fala de salvação não se refere apenas à salvação de uma catástrofe terrena. Na XVII suposta aparição, em 31 de maio de 1974, chega-se a afirmar: «Todos aqueles que com fé chegarem para se arrependerem, serão salvos nesta vida e para a eternidade. Sobre eles Satanás não terá mais nenhum poder».

Como se pode notar, aqui se encontra o principal erro teológico das supostas mensagens de Dozulé, uma vez que tais expressões são incompatíveis com a doutrina católica da salvação, da graça e dos sacramentos. O texto, segundo o exemplo da suposta mensagem de 1º de março de 1974, sugere que o simples ato de ir aos pés da cruz é suficiente para obter o perdão e a salvação. A Igreja Católica, ao contrário, ensina que o perdão não vem de um lugar físico, mas do próprio Cristo, que a remissão dos pecados se recebe através dos sacramentos, em particular através do sacramento da Penitência, e que nenhum objeto pode substituir a graça sacramental. A cruz é certamente um sinal de salvação, mas uma cruz que nós construímos não é um lugar de perdão automático: o perdão vem de Cristo.

O Catecismo da Igreja Católica lembra que Cristo instituiu o sacramento da Penitência para reconciliar com Deus os fiéis que, após o Batismo, caíram em pecado (cf. n. 1446) e que o perdão dos pecados cometidos após o Batismo é concedido por meio do ministério dos sacerdotes (cf. ibid., n. 1461). Isso significa que, para a remissão dos pecados, não basta um ato externo, como ir a um lugar ou tocar uma cruz, mas é necessário o pentimento interior e a absolvição do sacerdote, sinal visível do perdão de Deus. Os sacramentos da Nova Lei são instrumentos eficazes da graça, e nenhum sinal, por mais santo que seja, pode substituí-los (cf. Concílio de Trento, Sessão VII, Decreto sobre os sacramentos, cân. 6: DH 1606; CCC 1084).

O II Concílio de Orange, ao tomar posição contra os chamados “semipelagianos” – que, embora aceitassem que a graça era necessária para a salvação, sustentavam que o início da fé dependia da vontade humana e não da graça divina –, afirmou que a graça é absolutamente necessária para a salvação. Os cânones do Concílio declaram que o início da fé, o desejo de acreditar e todas as boas obras que realizamos são dons de Deus (cf. cânn. 5-7, DH 375-377). Isso significa que, sem a graça, o ser humano não pode sequer desejar aproximar-se de Deus. Como afirma São Paulo na carta aos Efésios: «É pela graça que fostes salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós: é dom de Deus» (Ef 2, 8). O Concílio de Trento, em sua VI sessão, tratou do tema da justificação do ser humano e do papel da graça divina, sustentando que nada de humano pode preceder a graça (cf. cap. 5: DH 1525; cân. 3: DH 1553).

O ser humano não pode pretender, por nenhum ato, comprar a amizade com Deus, que continua sendo um dom gratuito do seu amor. O ser humano pecador, com seus atos bons, movido pelo impulso do Espírito, só pode preparar-se para a justificação, mas esses atos não merecem a justificação: a ação humana de aproximar-se da cruz de Dozulé, portanto, não pode garantir-nos a salvação.

Ninguém se liberta dos pecados, a não ser pela misericórdia livre e gratuita de Deus: «é dito que somos justificados gratuitamente, porque nada do que precede a justificação, seja a fé ou as obras, merece a graça da justificação, “pois, se é por graça, não é pelas obras; de outro modo (como diz o mesmo Apóstolo), a graça não é graça” (Rm 11, 6)» (Concílio de Trento, Sessão VI, Decreto sobre justificação, cap. 8: DH 1532; cf. ibid., cap. 13: DH 1541).

A Carta Placuit Deo, ao denunciar as heresias do neopelagianismo e do neognosticismo, destaca

«a inconsistência das pretensões de auto-salvação, que contam apenas com as forças humanas. Pelo contrário, a fé confessa que somos salvos por meio do Baptismo, que imprime o caráter indelével de pertencer a Cristo e à Igreja, do qual deriva a transformação do nosso modo concreto de viver as relações com Deus, com os homens e com a criação (cf. Mt 28,19). Assim, purificados do pecado original e de todo pecado, somos chamados a uma nova vida em conformidade com Cristo (cf. Rom 6,4). Com a graça dos sete sacramentos, os crentes continuamente crescem e se regeneram, sobretudo, quando o caminho se torna mais difícil e as quedas não faltam. Quando eles pecam, abandonam o amor por Cristo, podendo ser reintroduzidos, por meio do sacramento da Penitência, à ordem das relações inaugurada por Jesus, para caminhar como Ele caminhou (cf. 1 Jo 2,6). Desta forma, olhamos com esperança para o juízo final, no qual cada pessoa será julgada pelo amor (cf. Rm 13,8-10), especialmente pelos mais fracos (cf. Mt 25,31-46)» (n. 13).

4. O retorno iminente de Cristo

Alguns textos ou interpretações relacionados com as supostas revelações de Dozulé falam de um retorno próximo ou mesmo iminente do Senhor.

Na XVI suposta aparição, de 3 de maio de 1974, afirma-se: «Diga à Igreja que envie Mensagens ao mundo inteiro e que se apresse em erguer, no local indicado, a Cruz Gloriosa e, aos seus pés, um Santuário. Todos virão para se arrepender e encontrar a Paz e a Alegria. A Cruz Gloriosa ou o Sinal do Filho do Homem é o anúncio do próximo retorno na Glória de Jesus Ressuscitado. Quando esta Cruz for erguida da terra, Eu atrairei tudo para Mim». Desta forma, atribui-se à cruz de Dozulé o que a Escritura atribui à Páscoa de Cristo.

E na XVII suposta aparição de 31 de maio de 1974, reitera-se: “Jesus pede que a oração que Ele vos ensinou seja difundida por todo o mundo. Ele pede que a Cruz Gloriosa e o Santuário sejam construídos até o final do Ano Santo [1975]. Porque será o último Ano Santo”. Evidentemente, este suposto anúncio não se cumpriu.

Além disso, na XXI suposta aparição, em 1º de novembro de 1974, insiste-se: «Digam a eles que não haverá outros sinais além do Sinal de Deus mesmo, o único sinal visível é a atitude de sua serva e suas palavras, que são as Palavras de Deus, e essas Palavras são irrefutáveis. Se o homem não erguer a Cruz, eu a farei aparecer, mas não haverá mais tempo».

Embora o tema do retorno do Senhor seja parte integrante da fé cristã, a Igreja, ao lembrar que o retorno de Cristo é uma verdade de fé, mesmo que ninguém possa saber nem anunciar a data ou os sinais precisos, desconfia de interpretações milenaristas ou cronológicas desse retorno, que correm o risco de fixar tempos ou modalidades do julgamento final.

Na avaliação dos supostos fenômenos sobrenaturais, de fato, o discernimento eclesial exige que não haja elementos sensacionalistas ou apocalípticos que gerem confusão. Portanto, mensagens que falam de “fim iminente” ou “data próxima” podem alimentar expectativas infundadas ou visões desviantes em relação à esperança cristã. Nenhuma mensagem privada, de fato, pode antecipar ou determinar «os tempos ou momentos que o Pai reservou em sua autoridade» (At 1, 7).

A vigilância escatológica que Jesus recomenda aos seus discípulos, «Vigiai e orai» (Mt 26, 41), é uma atitude espiritual permanente, não uma previsão temporal ou um evento localizado. O perigo de reduzir a esperança cristã a uma espera de um retorno iminente de manifestações extraordinárias deve ser evitado com firmeza.

A cruz, sacramental do amor redentor

Na tradição da Igreja, a cruz não é apenas um símbolo ou uma lembrança histórica, mas um sinal que remete a uma graça e dispõe a recebê-la. Os sacramentais, como ensina o Catecismo da Igreja Católica (cf. nn. 1667-1670), são sinais sagrados instituídos pela Igreja para dispor as pessoas a receber o efeito principal dos sacramentos e para santificar as várias circunstâncias da vida. Uma cruz, quando é abençoada e venerada com fé, participa dessa realidade: não confere a graça em si, mas a invoca e a suscita no coração de quem a contempla, ou seja, opera como uma disposição que motiva, atrai, propõe.

O fiel que usa ao pescoço uma cruz abençoada realiza um ato de fé encarnada: torna presente em seu corpo e em sua vida o mistério da redenção. É um gesto que deve conduzir à conformação interior: «Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me» (Mt 16, 24). Portar uma cruz não é, portanto, apenas um ato devocional, mas um chamado a viver todos os dias o Evangelho da cruz: o amor que se doa, a paciência nas provações, a esperança que vence o sofrimento. É uma maneira concreta de dizer “eu vivi na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (cf. Gl 2, 20).

São Boaventura compreendeu bem isso quando exortou a olhar para o crucificado e não simplesmente para a cruz, como estímulo para a união com Cristo:

«E tu também, homem redimido, tu também considera quem, qual e quão grande é este que está pendente da cruz por ti. [...] Ó coração humano, mais duro és do que elas (pedras), se com a memória de tal vítima, nem o temor te espanta, nema compaixão te move, nem a compunção te aflinge, nam a piedade te abranda» (Boaventura, A Árvore da Vida, trad. Frei Saturnino Schneider OFM, 29, p. 272).

E em outro trecho, ele se refere a Jerusalém para inspirar o desejo da união espiritual com o Senhor:

«Este estado é místico e muito secreto, que não pode ser conhecido por quem não o experimenta, e não é recebido por quem não o deseja, nem desejado por quem não é profundamente inflamado pelo fogo do Espírito Santo, que Cristo enviou à terra. [...] Esse fogo é Deus, cujo lar está em Jerusalém, e Cristo o acende no fervor de sua ardente paixão» (Boaventura, Itinerarium mentis in Deum, VII, 4. 6).

Para o cristão, a cruz abençoada não é um simples ornamento religioso: é um sinal que interpela o coração. Quem usa a cruz ao pescoço ou a mantém em casa proclama, mesmo sem palavras, que Cristo crucificado é o centro da existência e que toda alegria ou dor encontra sentido Nele. Desta forma, o sacramental da cruz torna-se um lugar espiritual onde se renova o “sim” batismal: o fiel lembra-se de ter sido marcado pela cruz no dia do Batismo e de ser chamado todos os dias a “tomar a sua cruz” (cf. Mt 16, 24) e seguir os seus passos.

A cruz como sinal de devoção nunca é pura exterioridade. Quando um cristão venera a cruz, não adora a madeira ou o metal, nem pensa que uma cruz material possa substituir a obra salvífica já realizada na Páscoa de Cristo, mas adora Aquele que nela deu a vida:

«Quando você vê um cristão venerando a cruz, saiba que ele a venera por causa de Cristo crucificado e não por causa da natureza da madeira» (João Damasceno, Sobre as imagens sacras, 3, 89).

Acolhamos ainda as palavras deste Padre da Igreja:

«Na verdade, toda ação e toda operação milagrosa de Cristo é grandiosa, divina e maravilhosa, mas a coisa mais maravilhosa de todas é sua venerável cruz. De fato, por nenhuma outra coisa senão pela cruz de nosso Senhor Jesus Cristo a morte foi reprimida, o pecado dos progenitores foi expiado, o inferno foi despojado, a ressurreição nos foi dada [...]. Todas as coisas foram realizadas através da cruz. [...]. Portanto, é preciso venerar como verdadeiramente venerável e santificado pelo contato do santo corpo e sangue, o próprio madeiro no qual Cristo se ofereceu em sacrifício por nós, os pregos, a lança, as vestes e suas santas moradas [...]. Veneramos também a figura da cruz preciosa, mesmo que seja de outra matéria, honrando não a matéria (nunca!), mas a figura como símbolo de Cristo [...] não se deve venerar a matéria de que é constituída a figura da cruz, mesmo que seja ouro ou pedras preciosas. E assim nos prostramos diante de todas as coisas consagradas a Deus, referindo a Ele a veneração» (João Damasceno, A fé ortodoxa, IV,11).

A veneração da cruz educa assim para uma espiritualidade concreta, feita de fé encarnada: não uma abstração, mas uma maneira de enfrentar a vida com o olhar voltado para o Crucificado, reconhecendo em cada esforço a possibilidade de um encontro redentor.

À luz do exposto acima, o Dicastério autoriza Vossa Excelência a redigir o Decreto correspondente e a declarar que o fenômeno das supostas aparições ocorridas em Dozulé deve ser considerado, de forma definitiva, como não sobrenatural, com todas as consequências desta determinação.

Ao renovar a confiança em sua prudente orientação pastoral, este Dicastério deseja encorajar uma catequese clara e positiva sobre o mistério da Cruz, que ajude os fiéis a reconhecer que a revelação definitiva já se cumpriu em Cristo e que toda outra experiência espiritual deve ser avaliada à luz do Evangelho, da Tradição e do Magistério da Igreja.

A oração, o amor aos sofredores e a veneração da Cruz continuam sendo meios autênticos de conversão, mas não devem ser acompanhados por elementos que induzam à confusão ou por afirmações que pretendam uma autoridade sobrenatural sem o discernimento eclesial.

Ao comunicar-lhe o acima exposto, receba, Excelência, os meus mais cordiais cumprimentos.

Víctor Manuel Card. FERNÁNDEZ
Prefeito

Ex Audientia diei  03-11-2025
Leo PP. XIV