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DICASTÉRIO PARA A DOUTRINA DA FÉ
NORMAS
PARA PROCEDER NO DISCERNIMENTO
DE PRESUMIDOS FENÔMENOS SOBRENATURAIS
Apresentação
Na escuta do Espírito
que opera no fiel Povo de Deus
Deus está presente e age na nossa história. O Espírito Santo, que se derrama do
Coração de Cristo Ressuscitado, opera na Igreja com divina liberdade e nos
oferece tantos dons preciosos que nos ajudam no caminho da vida e estimulam o
nosso amadurecimento espiritual, na fidelidade ao Evangelho. Esta ação do do
Espírito Santo inclui também a possibilidade de chegar aos nossos corações
através de alguns eventos sobrenaturais, como por exemplo as aparições ou visões
de Cristo ou da Santa Virgem e outros fenômenos.
Tantas vezes estas manifestações provocaram uma grande riqueza de frutos
espirituais, de crescimento na fé, de devoção e de fraternidade e serviço, e em
alguns casos deram origem a diversos Santuários espalhados em todo o mundo, que
hoje são parte do coração da piedade popular de muitos povos.
Existe tanta vida e tanta beleza que o Senhor semeia para além dos nossos
esquemas mentais e dos nossos procedimentos! Por esta razão, as Normas para
proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais, que agora
apresentamos, não pretendem ser necessariamente um controle, menos ainda uma
tentativa de abafar o Espírito. Nos casos mais positivos de eventos de presumida
origem sobrenatural, de fato, «encoraja-se o Bispo Diocesano a apreciar o
valor pastoral e a promover a difusão desta proposta espiritual» (I, n. 17).
São João da Cruz constatava «quão baixos, insuficientes e, de qualquer maneira, impróprios sejam as
palavras e os termos usados nesta vida para tratar das coisas divinas».[1] Ninguém pode exprimir plenamente as imperscrutáveis vias de Deus nas pessoas:
«Os santos doutores, ainda que tenham falado e continuem a falar disso, não
conseguem explicá-lo com palavras, como de resto nem mesmo com palavras foi
dito».[2] Porque «a via para ir a Deus é tão secreta e oculta para a alma como
aquela do mar para o corpo, sobre a qual não se conhecerm sendas e pegadas».[3] Realmente, «sendo pois um artífice sobrenatural, Ele construirá em cada alma o edifício
sobrenatural que desejar».[4]
Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que em alguns casos de eventos de
presumida origem sobrenatural encontram-se problemas muito sérios, com dano aos
fiéis. Nestes casos, a Igreja deve agir com toda a sua solicitude pastoral.
Refiro-me, por exemplo, ao uso de tais fenômenos para obter «lucro, poder, fama,
notoriedade social, interesse pessoal» (II, art. 15, 4°), que pode chegar até mesmo à possibilidade de realizar atos gravemente imorais
(cfr. II, art.15, 5°) ou mesmo «como meio ou pretexto para exercer um domínio sobre as pessoas ou
cometer abusos» (II, art. 16).
Não se deve ignorar nem mesmo, em tais eventos, a possibilidade de haver erros
doutrinais, reducionismos indevidos no propor a mensagem do Evangelho, a difusão
de um espírito sectário etc. Por último, existe também a possibilidade de os
fiéis serem arrastados por um fenômeno, atribuído à iniciativa divina, mas que é
fruto somente da fantasia, do desejo de novidade, da mitomania ou da tendência à
falsificação.
No seu discernimento neste âmbito, a Igreja tem pois necessidade de
procedimentos claros. As Normas para proceder no discernimento de presumidas
aparições e revelações, que se aplicavam até agora, foram aprovadas em forma
reservada por São Paulo VI em 1978, há mais de quarenta anos, e foram publicadas
oficialmente apenas em 2011, trinta e três anos depois.
A recente revisão
Na aplicação das Normas de 1978 constatava-se, todavia, que as decisões
exigiam tempos muito longos, até décadas, e deste modo se chegava tarde demais
ao necessário discernimento eclesial.
A sua revisão teve início em 2019, através de várias consultas previstas pela
então Congregação para a Doutrina da Fé (Congresso, Consulta, Feria IV e
Plenária). Ao longo destes cinco anos, foram elaboradas diversas propostas de
revisão, todas porém consideradas insuficientes.
No Congresso do Dicastério de 16 de novembro de 2023, viu-se a necessidade de uma revisão global e radical do
projeto elaborado até aquele momento. Foi então preparado um outro esboço de
documento, totalmente repensado na direção de um maior esclarecimento das
funções do Bispo Diocesano e do Dicastério.
A nova redação foi submetida ao exame de uma Consulta restrita, realizada em 4
de março de 2024, obtendo um parecer geral positivo, ainda que tenham sido
feitas algumas observações para a melhora do texto, que foram integradas no
sucessivo esboço do documento.
O texto foi posteriormente estudado na Feria IV do Dicastério, realizada
em 17 de abril de 2024, durante a qual os Cardeais e os Bispos membros deram a
sua aprovação. Enfim, em 4 de maio de 2024, as novas Normas foram
apresentadas ao Santo Padre, que as aprovou e ordenou que fossem publicadas,
estabelecendo sua entrada vigor no dia 19 de maio de 2024, na solenidade de
Pentecostes.
Razões da nova redação das Normas
No Prefácio à publicação das Normas de 1978, acontecida em 2011, o
então Prefeito, Card. William Levada, esclarecia que o mesmo Dicastério era
competente para examinar os casos de «aparições, de visões e mensagens
atribuídas à origem sobrenatural». Aquelas Normas, de fato, estabeleciam
que «compete à Sagrada Congregação julgar e aprovar o modo de proceder do
Ordinário» ou «proceder a um novo exame» (IV, 2).
No passado, a Santa Sé parecia aceitar que os Bispos fizessem declarações como
estas: «Os fiéis são justificados em crer como indubitável e certo» (Decreto do
Bispo de Grenoble, 19 de setembro de 1851); «Não se pode colocar em dúvida a
realidade das lacrimações» (Bispos da Sicília, 12 de dezembro de 1953). Mas
estas expressões contrastavam a convicção da Igreja de que os fiéis não são
obrigados a aceitar a autenticidade desses eventos. Por isso, alguns meses
depois deste último caso, o então Santo Ofício esclareceu que «não tomou ainda
nenhuma decisão em mérito à Senhora das Lágrimas [Siracusa, Sicília]» (2 de
outubro de 1954). Mais recentemente, referindo-se ao caso de Fátima, a então
Congregação para a Doutrina da Fé explicou que a aprovação eclesiástica de uma
revelação privada evidencia que «a relativa mensagem não contém nada que
contraria a fé e os bons costumes» (26 de junho de 2000).
Não obstante esta clara tomada de posição, os procedimentos seguidos de fato
pelo Dicastério, mesmo nos últimos tempos, eram orientados a uma declaração de
“sobrenaturalidade” ou de “não-sobrenaturalidade” por parte do Bispo, tanto que
alguns Bispos insistiram sobre a possibilidade de emitir uma declaração positiva
desse tipo. Ainda recentemente, alguns Bispos queriam exprimir-se com palavras
como estas: «Constato a absoluta verdade dos fatos», «os fiéis devem considerar
sem dúvida como verdadeiros…» etc. Estas expressões orientavam os fiéis a
pensarem que eram obrigados a crer nessas manifestações, que às vezes eram mais
valorizadas que o próprio Evangelho.
No tratamento de tais casos e particularmente na redação de um pronunciamento, a
praxe seguida por alguns Bispos foi de pedir previamente ao Dicastério a
necessária autorização. E quando eram autorizados a fazê-lo, pedia-se aos Bispos
de não mencionar o Dicastério no pronunciamento. Assim aconteceu, por exemplo,
nos pouquíssimos casos que chegaram a uma conclusão nas últimas décadas: «Sem
implicar nossa Congregação» (Carta ao Bispo de Gap, 3 de agosto de 2007); «Em
tal declaração não seja envolvido o Dicastério» (Congresso de 11 de maio de
2001, quanto ao Bispo de Gikongoro). Em outras palavras, o Bispo não podia nem
mesmo mencionar que existia uma aprovação do Dicastério. Ao mesmo tempo, alguns
outros Bispos, cujas Dioceses eram também envolvidas nesses fenômenos, pediam ao
Dicastério que se pronunciasse para que se alcançasse uma clareza maior.
Este particular modo de proceder, que gerou não pouca confusão, ajuda a entender
que as Normas de 1978 não são mais suficientes e adequadas para guiar o
trabalho seja dos Bispos, seja do Dicastério. Isso se torna ainda mais
problemático hoje, dado que dificilmente um fenômeno permanece circunscrito a
uma cidade ou a uma Diocese. Tal constatação já tinha aparecido na então
Congregação para a Doutrina da Fé, durante a Assembléia Plenária de 1974, quando
os membros reconheciam que um evento de presumida origem sobrenatural muitas
vezes «ultrapassa inevitavelmente os limites de uma Diocese e também de uma
Nação e [...] o caso chega automaticamente a proporções que podem justificar uma
intervenção da Autoridade suprema da Igreja». Ao mesmo tempo, as Normas
de 1978 reconheciam que se tornou «mais difícil, senão quase impossível, emitir
com a devida celeridade os juízos que concluíam no pasado as investigações em
matéria (constat de supernaturalitate, non constat de supernaturalitate)» (Normas de 1978, nota preliminar).
A expectativa de uma declaração sobre a sobrenaturalidade de um evento teve como
consequência que somente pouquíssimos casos chegaram a uma clara determinação.
De fato, depois de 1950, foram resolvidos oficialmente não mais que seis casos,
mesmo se os fenômenos tenham crescido de número, frequentemente sem uma guia
clara e com o envolvimento de pessoas de muitas Dioceses. Portanto, presume-se
que tantíssimos outros casos foram conduzidos de maneira diversa ou mesmo não
foram tratados.
Para não procrastinar ainda mais a resolução de um caso específico relativo a
evento de presumida origem sobrenatural, o Dicastério propôs recentemente ao
Santo Padre que se pudesse encerrar o relativo discernimento não com uma
declaração de supernaturalitate, mas com um Nihil obstat que permitisse ao Bispo aproveitar
pastoralmente aquele fenômeno espiritual. A tal declaração se chegaria depois de
se ter avaliado os diversos frutos espirituais e pastorais e a ausência de
problemas importantes no evento. O Santo Padre considerou tal proposta como uma
“solução justa”.
Novos aspectos
Os elementos expostos nos levaram a propor, com as novas Normas, um
procedimento diverso em relação ao passado, mas também mais rico, com seis
possíveis conclusões prudenciais para orientar o trabalho pastoral em torno aos
eventos de presumida origem sobrenatural (cfr. I, nn. 17-22). A proposta destas seis determinações finais permite ao Dicastério e aos
Bispos conduzir de modo adequado as problemáticas de casos muito diversos entre
si, dos quais se tem conhecimento.
Entre estas possíveis conclusões não se inclui normalmente uma declaração acerca
da sobrenaturalidade do fenômeno objeto de discerimento, isto é a
possibilidade de afirmar com certeza moral que ele provém de uma decisão de
Deus, que o teria querido de modo direto. Ao invés, a concessão do Nihil
obstat indica simplesmente, como já explicava Papa Bento XVI, que a respeito
daquele fenômeno os fiéis «são autorizados a dar-lhe, de modo prudente, a sua
adesão». Não se tratando de uma delaração sobre a sobrenaturalidade dos fatos,
torna-se ainda mais claro, como dizia ainda Papa Bento XVI, que se trata somente
de uma ajuda «da qual não é obrigatório fazer uso».[5] De outro lado, esta intervenção deixa naturalmente aberta a possibilidade
de no futuro, prestando-se atenção ao desenvolvimento da devoção, intervir de
modo diverso.
Deve-se notar ainda que chegar a uma declaração de “sobrenaturalidade”, por sua
natureza, não apenas requer um tempo adequado de análise, mas pode dar espaço a
que se emita hoje uma declaração de “sobrenaturalidade” e muitos anos depois um
juízo de “não-sobrenaturalidade”, como de fato já aconteceu. Vale a pena
recordar um caso de presumidas aparições dos anos ’50, em que o Bispo, no ano
1956, emitiu uma sentença definitiva de “não-sobrenaturalidade”. No ano
seguinte, o então Santo Ofício aprovou as determinações daquele Bispo. Em
seguida, pediu-se novamente a aprovação daquela veneração, mas em 1974 a
Congregação para a Doutrina da Fé declarou a respeito da mesmas aparições um
constat de non supernaturalitate. Sucessivamente, em 1996, o Bispo do lugar reconheceu aquela devoção e um
sucessivo Bispo do mesmo lugar, em 2002, reconheceu a “origem sobrenatural” das
aparições e a devoção se difundiu em outros Países. Por último, a pedido da
Congregação para a Doutrina da Fé, em 2020, o novo Bispo reafirmou o “juízo
negativo” dado precedentemente pela mesma Congregação, impondo que cessasse
qualquer divulgação a respeito das presumidas aparições e revelações. Foram
necessários cerca de setenta tormentosos anos para se chegar à conclusão do
caso.
Hoje, tem-se a convicção de que essas situações complicadas, que produzem
confusão entre os fiéis, devam ser sempre evitadas, assumindo um envolvimento
mais veloz e explícito deste Dicastério e evitando que o discernimento se dirija
a uma declaração de “sobrenaturalidade”, com fortes expectativas, ansiedades e
até mesmo pressões a respeito. Tal declaração de “sobrenaturalidade” é, pois,
substituída ou por um Nihil obstat, que autoriza um trabalho pastoral
positivo, ou por uma outra determinação adaptada à situação concreta.
Os procedimentos previstos pelas novas Normas, com a proposta de seis
possíveis decisões prudenciais, permitem chegar num tempo razoável a uma
resolução que ajude o Bispo a conduzir a situação relativa a eventos de
presumida origem sobrenatural, antes que eles tomem dimensões muito
problemáticas, sem um necessário discernimento eclesial.
Todavia, de uma parte permanece firme a possibilidade que o Santo Padre
intervenha autorizando, em via totalmente excepcional, a proceder a uma
declaração de sobrenaturalidade dos eventos: trata-se de uma exceção, que de
fato se verificou só em pouquíssimos casos nos últimos séculos.
De outra, como previsto pelas novas Normas, permanece a possibilidade de
uma declaração de “não-sobrenaturalidade” apenas quando se verificam sinais
objetivos e claramente indicativos de manipulação à base do fenômeno, como por
exemplo quando um presumido vidente declara ter mentido, ou quando as provas
indicam que o sangue de um crucifixo pertence ao presumido vidente etc.
Reconhecimento de uma ação do Espírito
A maior parte dos Santuários, que hoje são lugares privilegiados da piedade
popular do Povo de Deus, não teve jamais, no curso da devoção que ali se
exprime, uma declaração de sobrenaturalidade dos fatos que deram origem àquela
devoção. O sensus fidelium intuiu que ali existia uma ação do Espírito
Santo e não apareceram problemas importantes que requeressem uma intervenção dos
Pastores.
Em muitos casos, a presença do Bispo e dos sacerdotes em certos momentos, como
nas peregrinações ou na celebração de algumas Missas, era um modo implícito de
reconhecer que não existiam objeções graves e que aquela experiência espiritual
exercitava um influxo positivo na vida dos fiéis.
Em todo caso, um Nihil obstat permite aos Pastores agirem sem dúvidas nem
lentidão para estar junto ao Povo de Deus no acolhimento dos dons do Espírito
Santo, que podem brotar em meio a estes fatos. A expressão “em meio a”,
utilizada nas novas Normas, ajuda a entender que, mesmo se não se emite a
declaração de sobrenaturalidade sobre o próprio evento, de todo modo são
reconhecidos com clareza os sinais de uma ação sobrenatural do Espírito Santo no
contexto do acontecimento.
Em outros casos, junto com este reconhecimento, vê-se a necessidade de certos
esclarecimentos ou purificações. Pode acontecer, de fato, que verdadeiras ações
do Espírito Santo em uma situação concreta, que podem ser justamente apreciadas,
apareçam misturadas a elementos meramente humanos, como desejos pessoais,
recordações, ideias às vezes obsessivas, ou a «algum erro de ordem natural não
devido a má intenção, mas à percepção subjetiva do fenômeno» (II, art. 15, 2°).
De resto, «não se pode colocar uma experiência de visão, sem ulteriores
considerações, diante ao dilema rigoroso de ser correta em todos os
pontos, ou de dever ser considerada completamente uma ilusão humana ou
diabólica».[6]
O envolvimento e o acompanhamento do Dicastério
É importante entender que as novas Normas evidenciam a
competência deste Dicastério. De uma parte, permanece firme que o discernimento
é tarefa do Bispo Diocesano. De outra, devendo reconhecer que, hoje mais que
nunca, estes fenômenos envolvem muitas pessoas que pertencem a outras Dioceses e
se difundem rapidamente em diversas regiões e Países, as novas Normas
estabelecem que o Dicastério deve ser consultado e intervir sempre para dar uma
aprovação final a quanto for decidido pelo Bispo, antes que este torne pública a
determinação sobre um evento de presumida origem sobrenatural. Se antes
intervinha, mas pedia ao Bispo de não o mencionar, hoje o Dicastério manifesta
publicamente o seu envolvimento e acompanha o Bispo na determinação final.
Tornando público o quanto decidido, o Bispo deve, pois, dizer: «de comum acordo
com o Dicastério para a Doutrina da Fé».
De qualquer modo, como já contemplado nas Normas de 1978, (IV,
1 b), também as novas Normas preveem que, em alguns casos, o Dicastério
pode intervir motu proprio (cfr. II, art. 26). De fato, depois de se ter
chegado a uma determinação clara, as novas Normas preveem que «o
Dicastério se reserva, em todo caso, a possibilidade de intervir novamente,
seguindo o desenvolvimento do fenômeno» (II, art. 22 §3) e pedem ao Bispo para
«continuar a vigiar» (II, art. 24), para o bem dos fiéis.
Deus está sempre presente na história e não deixa jamais de enviar-nos
os dons de sua graça através da ação do Espírito Santo, a fim de renovar dia a
dia a nossa fé em Jesus Cristo, Salvador do mundo. Compete aos Pastores da
Igreja a tarefa de tornar seus fiéis sempre atentos a esta presença de amor da
Santíssima Trindade em meio a nós, bem como de defender os fiéis de todo engano.
Estas novas Normas não são outra coisa que um modo concreto com que o
Dicastério para a Doutrina da Fé coloca-se a serviço dos Pastores na escuta
dócil ao Espírito que opera no fiel Povo de Deus.
Víctor Manuel Card. Fernández
Prefeito
Introdução
1. Jesus Cristo é a Palavra definitiva de Deus, «o Primeiro e o Último»
(Ap 1,17). Ele é a plenitude e o cumprimento da Revelação: tudo aquilo
que Deus quis revelar, realizou-o mediante o seu Filho, Palavra feita carne.
Portanto, «a economia cristã, enquanto é a Aliança nova e definitiva, não
passará jamais e não se deve esperar alguma outra revelação pública antes da
manifestação gloriosa do Senhor nosso Jesus Cristo».[7]
2. Na Palavra revelada encontra-se tudo aquilo de que a vida cristã
necessita. São João da Cruz afirma que o Pai, «desde o momento em que doou o seu Filho, que é a sua única e definitiva
Palavra, disse-nos tudo de uma só vez nesta Palavra e não tem mais nada a dizer.
[...] De fato, aquilo que nos tempos passados dizia parcialmente aos profetas,
disse-nos totalmente no seu Filho, dando-nos este tudo que é o seu Filho. Por
isso, quem quisesse ainda interrogar o Senhor e pedir-lhe visões ou revelações,
não só cometeria uma insensatez, mas ofenderia a Deus, porque não fixa o seu
olhar unicamente em Cristo e busca coisas diversas ou novidades além dele».[8]
3. No tempo da Igreja, o Espírito Santo conduz os fiéis de todas as épocas
«à verdade toda inteira» (Jo 16, 13) para que «o entendimento da
Revelação se torne sempre mais profundo».[9] É o Espírito Santo que nos guia a uma sempre maior compreensão do mistério de
Cristo, porque «mesmo sendo muitos os mistérios e as maravilhas descobertas […]
no presente estado de vida, permanece, porém, por dizer e por entender a sua
maior parte e assim há ainda muito que aprofundar em Cristo. Ele, de fato, é
como uma mina rica de imensas veias de tesouros, dos quais, por mais que se vá a
fundo, não se encontra o fim; antes, em cada cavidade descobrem-se novos filões
de riquezas».[10]
4. Se, por um lado, tudo o que Deus quis revelar, realizou-o mediante o
seu Filho, e na Igreja de Cristo são postos à disposição de todos os batizados
os meios ordinários de santidade, por outro, o Espírito Santo pode conceder a
algumas pessoas experiências de fé totalmente particulares, cujo fim não é
«aquele de ‘melhorar’ ou de ‘completar’ a Revelação definitiva de Cristo, mas de
ajudar a vivê-la mais plenamente em uma determinada época histórica».[11]
5. Com efeito, a santidade é um chamado que diz respeito a todos os
batizados: é nutrida pela vida de oração e pela participação na vida sacramental
e se exprime em uma existência cheia de amor para com Deus e o próximo.[12] Na Igreja recebemos o amor de Deus, manifestado plenamente em Cristo (cfr.
Jo 3, 16) e «derramado nos nossos corações por meio do Espírito Santo que
nos foi dado» (Rm 5, 5). Quem se deixa docilmente guiar pelo Espírito
Santo faz experiência da presença e da ação da Trindade, de modo que uma
existência assim vivida, como ensina Papa Francisco, traduz-se numa vida mística
que, ainda que «privada de fenômenos extraordinários, propõe-se a todos os fiéis
como experiência cotidiana de amor»[13].
6. Todavia, verificam-se às vezes fenômenos (por exemplo, presumidas
aparições, visões, locuções interiores ou externas, escritos ou mensagens,
fenômenos ligados a imagens religiosas, fenômenos psicofísicos e de outra
natureza) que parecem ultrapassar os limites da experiência cotidiana e que se
apresentam como tendo presumida origem sobrenatural. Falar de modo acurado de
tais eventos pode superar a capacidade da linguagem humana (cfr. 2Cor 12,
2-4). Com o advento dos modernos meios de comunicação, tais fenômenos podem
atrair a atenção ou suscitar a perplexidade de numerosos fiéis e a sua notícia
pode difundir-se muito rapidamente, de modo que os Pastores da Igreja são
chamados a enfrentar com solicitude tais eventos, isto é, a avaliar os seus
frutos, a purificá-los de elementos negativos ou a colocar de sobreaviso os
fiéis quanto aos perigos que deles derivam (cfr. 1Jo 4, 1).
7. Ainda, com o desenvolvimento dos atuais meios de comunicação e com o
incremento das peregrinações, estes fenômenos alcançam dimensões nacionais e até
mundiais, de modo que uma decisão relativa a uma Diocese pode ter consequências
também em outros lugares.
8. Quando junto a particulares experiências espirituais verificam-se
igualmente fenômenos físicos e psicológicos que não são imediatamente
explicáveis com o uso da pura razão, corresponde à Igreja a delicada tarefa de
encaminhar um atento estudo e discernimento de tais fenômenos.
9. Na sua Exortação apostólica Gaudete et exsultate, Papa Francisco
recorda que o único modo de saber se uma coisa vem do Espírito Santo é o
discernimento, que se deve pedir e cultivar na oração.[14] Esse é um dom divino que ajuda os Pastores da Igreja a realizar aquilo que
diz São Paulo: «examinai tudo, ficai com o que é bom» (1Ts 5, 21). Para
assistir os Bispos Diocesanos e as Conferências Episcopais na realização do
discernimento a respeito dos fenômenos de presumida origem sobrenatural, o
Dicastério para a Doutrina da Fé promulga as seguintes Normas para proceder
no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais.
I. Orientações gerais
A. Natureza do discernimento
10. Segundo as Normas apresentadas a seguir, a Igreja poderá realizar o
dever de discernir: a) se seja possível encontrar nos fenômenos de presumida
origem sobrenatural a presença de sinais de uma ação divina; b) se nos eventuais
escritos ou mensagens daqueles que são envolvidos nos presumidos fenômenos em
questão nada exista de contrastante com a fé e os bons costumes; c) se seja
lícito valorizar seus frutos espirituais ou se resulte necessário purificá-los
de elementos problemáticos ou colocar de sobreaviso os fiéis quanto aos perigos
deles derivantes; d) se seja aconselhável uma valorização pastoral por parte da
Autoridade eclesiástica competente.
11. Ainda que as seguintes disposições prevejam a possibilidade de um
discernimento no sentido do n. 10, deve-se precisar que, em via ordinária, não
se deverá prever um reconhecimento positivo por parte da Autoridade eclesiástica
acerca da origem divina de presumidos fenômenos sobrenaturais.
12. No caso em que seja concedido por parte do Dicastério um Nihil obstat
(cfr. infra, n. 17), tais fenômenos não se tornam objeto de fé – isto
é, os fiéis não são obrigados a prestar a eles um assentimento de fé – mas, como
no caso de carismas reconhecidos pela Igreja, «representam algumas vias para
aprofundar o conhecimento de Cristo e para doar-se mais generosamente a ele,
enraizando-se ao mesmo tempo sempre mais na comunhão com todo o Povo cristão».[15]
13. De resto, também quando se concede um Nihil obstat para os processos
de canonização, isto não implica uma declaração de autenticidade dos eventuais
fenômenos sobrenaturais presentes na vida de uma persona, assim como
foi evidenciado no decreto di canonização de Santa Gemma Galgani: «[Pius XI]
feliciter elegit ut super heroicis virtutibus huius innocentis aeque ac
poenitentis puellae suam mentem panderet, nullo tamen per praesens decretum
(quod quidem numquam fieri solet) prolato iudicio de praeternaturalibus Servae
Dei charismatibus».[16]
14. Ao mesmo tempo, é necessário constatar que certos fenômenos, que poderiam
ter origem sobrenatural, às vezes aparecem conexos a experiências humanas
confusas, a expressões imprecisas do ponto de vista teológico ou a interesses
não totalmente legítimos.
15. O discernimento dos presumidos fenômenos sobrenaturais é feito desde o
início pelo Bispo Diocesano, ou eventualmente por outra Autoridade eclesiástica,
indicadas nos artigos 4-6 infra, em diálogo com o Dicastério. Em todo
caso, não podendo jamais faltar uma particular atenção orientada ao bem comum de
todo o Povo de Deus, «o Dicastério se reserva de qualquer forma […] a
possibilidade de avaliar os elementos morais e doutrinais de tal experiência e o
uso que se faz dela».[17] Não se deve ignorar que às vezes o discernimento pode ocupar-se também de
delitos, manipulações das pessoas, danos à unidade da Igreja, proveitos
econômicos indevidos, graves erros doutrinais etc., que poderiam provocar
escândalos e minar a credibilidade da Igreja.
B. Conclusões
16. O discernimento dos presumidos fenômenos sobrenaturais poderá chegar a
conclusões que se exprimirão normalmente em um dos termos indicados a seguir.
17. Nihil obstat — Mesmo se não se exprime nenhuma certeza sobre a
autenticidade sobrenatural do fenômeno, reconhecem-se muitos sinais de uma ação
do Espírito Santo “em meio”[18] a uma dada experiência espiritual, não tendo sido relevados, pelo menos
até aquele momento, aspectos particularmente críticos ou arriscados. Por esta
razão, encoraja-se o Bispo Diocesano a apreciar o valor pastoral e a promover a
difusão dessa proposta espiritual, inclusive através de eventuais peregrinações
a um lugar sacro.
18. Prae oculis habeatur — Ainda que se reconheçam importantes sinais positivos, percebem-se igualmente
alguns elementos de confusão ou possíveis riscos que requerem, por parte do
Bispo Diocesano, um atento discernimento e diálogo com os destinatários de uma
dada experiência espiritual. Se existirem escritos ou mensagens, poderia ser
necessário um esclarecimento doutrinal.
19. Curatur — Relevam-se diversos ou significativos elementos críticos, mas ao mesmo tempo já
existe uma ampla difusão do fenômeno e uma presença de frutos espirituais a ele
coligados e verificáveis. Desaconselha-se uma proibição a seu respeito, que
poderia perturbar o Povo de Deus. Em todo caso, o Bispo Diocesano é solicitado a
não encorajar esse fenômeno, a buscar expressões alternativas de devoção e,
eventualmente, a reorientar seu perfil espiritual e pastoral.
20. Sub mandato — Os elementos críticos relevados não são ligados ao fenômeno em si, o qual é rico
de elementos positivos, mas a uma pessoa, a uma família ou a um grupo de pessoas
que fazem dele um uso impróprio. Utiliza-se uma experiência espiritual para uma
particular e indevida vantagem econômica cometendo atos imorais ou desenvolvendo
uma atividade pastoral paralela àquela já presente no território eclesiástico,
sem aceitar as indicações do Bispo Diocesano. Neste caso, a condução pastoral do
lugar específico em que se verifica o fenômeno é confiada ou ao Bispo Diocesano
ou a uma outra pessoa delegada pela Santa Sé, a qual, quando não seja capaz de
intervir diretamente, buscará alcançar um acordo razoável.
21. Prohibetur et obstruatur — Mesmo em presença de legítimos interesses e de alguns elementos positivos, os
elementos críticos e os riscos são graves. Por isso, para evitar ulteriores
confusões ou até mesmo escândalos que poderiam causar dano à fé das pessoas
simples, o Dicastério pede ao Bispo Diocesano que declare publicamente que a
adesão a esse fenômeno não é permitida e que ofereça contemporaneamente uma
catequese para ajudar a compreender as razões da decisão e a reorientar as
legítimas preocupações espirituais daquela parte do Povo de Deus.
22. Declaratio de non supernaturalitate —
Neste caso o Bispo Diocesano é autorizado pelo Dicastério a declarar que o
fenômeno é reconhecido como não sobrenatural. Esta decisão deve ser baseada
sobre fatos e evidências concretos e provados. Por exemplo, quando um presumido
vidente declara ter mentido, ou quando testemunhas credíveis fornecem elementos
de juízo que permitem descobrir a falsificação do fenômeno, a intenção errada ou
a mitomania.
23. À luz de quanto exposto acima, reafirma-se que normalmente nem o Bispo
Diocesano, nem as Conferências Episcopais, nem o Dicastério declararão que estes
fenômenos são de origem sobrenatural, mesmo nos casos em que se conceda um
Nihil obstat (cfr. n. 11). Todavia, o Santo Padre poderá autorizar que se
realize um procedimento a respeito.
II. Procedimentos a serem seguidos
A. Normas substanciais
Art. 1 – Compete ao Bispo Diocesano, em diálogo com a Conferência Episcopal nacional,
examinar os casos de presumidos fenômenos sobrenaturais que tenham ocorrido no
seu próprio território e formular o juízo final sobre eles, a ser submetido à
aprovação do Dicastério, inclusive quanto à eventual promoção de um culto ou de
uma devoção ligados a eles.
Art. 2 – Depois de ter investigado os eventos em questão, compete ao Bispo Diocesano
transmitir ao Dicastério para a Doutrina da Fé, juntamente com o próprio voto,
os resultados da investigação – realizada segundo as normas elencadas a seguir –
e intervir segundo as indicações fornecidas pelo Dicastério. Compete ao
Dicastério, em todo caso, avaliar o modo de proceder do Bispo Diocesano e
aprovar ou não a determinação por ele proposta a ser atribuída ao caso
específico.
Art. 3 § 1 – O Bispo Diocesano se absterá de dar qualquer declaração pública relativa
à autenticidade ou sobrenaturalidade de tais fenômenos e de todo envolvimento
com eles; não deve porém cessar de vigiar para intervir, se necessário, com
celeridade e prudência, seguindo os procedimentos indicados pelas seguintes
normas.
§ 2 – Se porventura, em correlação ao presumido evento sobrenatural, surgissem
formas de devoção, mesmo sem um culto propriamente dito, o Bispo Diocesano tem o
grave dever de iniciar o quanto antes uma acurada investigação canônica com o
fim de salvaguardar a fé e prevenir abusos.
§ 3 –
O Bispo Diocesano tenha particular cuidado em conter, com os meios à sua
disposição, as manifestações religiosas confusas ou a divulgação de eventuais
materiais relativos ao presumido fenômeno sobrenatural (por exemplo: lacrimações
de imagens sacras, sudorações, sangramentos, mutações de Hóstias consagradas
etc.), com o fim de não alimentar um clima sensacionalista (cfr. art. 10).
Art. 4 – Quando for implicada a competência de mais Bispos Diocesanos, seja em
razão do lugar de domicílio das pessoas envolvidas no presumido fenômeno, seja
em razão do lugar de difusão das formas de culto ou de devoção popular, tais
Bispos, tendo consultado o Dicastério para a Doutrina da Fé, podem constituir
uma Comissão interdiocesana que, presidida por um deles, proveja à instrutória
segundo os artigos seguintes. A tal fim podem servir-se também da ajuda dos
meios predispostos pela Conferência Episcopal.
Art. 5 – No caso em que os presumidos fatos sobrenaturais envolvam a competência de
Bispos Diocesanos pertencentes à mesma Província Eclesiástica, o Metropolita,
tendo consultado a Conferência Episcopal e o Dicastério para a Doutrina da Fé e
com mandato deste último, pode assumir o encargo de constituir e presidir a
Comissão referida no art. 4.
Art. 6 § 1 – Nos lugares em que se tenha constituído a Região Eclesiástica mencionada
nos cânones 433-434 CIC e os presumidos fatos sobrenaturais envolverem
aquele território, o Bispo Presidente peça ao Dicastério para a Doutrina da Fé o
especial mandato para proceder.
§ 2 – Neste caso, os procedimentos seguirão, por analogia, o quanto previsto no
art. 5, observando-se as indicações recebidas do Dicastério.
B. Normas de procedimento
Fase instrutória
Art. 7 § 1 – Toda vez que o Bispo Diocesano tenha notícia, ao menos verossímil, de
fatos de presumida origem sobrenatural relativos à fé católica, ocorridos no
território de sua competência, informe-se com prudência, pessoalmente ou através
de um Delegado, sobre os eventos e sobre as circunstâncias e tenha o cuidado de
recolher tempestivamente todos os elementos úteis para uma primeira avaliação.
§ 2 – Se os fenômenos podem ser facilmente geridos quanto às pessoas
diretamente envolvidas e não se percebe nenhum perigo para a comunidade, não se
proceda ulteriormente, consultando-se previamente o Dicastério, ainda que
permaneça o dever de vigilância.
§ 3 – No caso em que forem envolvidas pessoas que dependem de diversos
Bispos Diocesanos, sejam escutados os pareceres destes Bispos. Quando um
presumido fenômeno tem origem em um lugar e comporta ulteriores efeitos em
outras sedes, poderá ser avaliado diversamente nestas últimas. Em tal caso, cada
Bispo Diocesano tem sempre o poder de decidir, no âmbito do próprio território,
de acordo com o que considera pastoralmente prudente, consultando-se previamente
o Dicastério.
§ 4 – Se porventura no presumido fenômeno fossem envolvidos objetos variados, o
Bispo Diocesano, pessoalmente ou através de um Delegado, pode dispor que sejam
colocados em um lugar seguro e custodiado, enquanto se aguardam esclarecimentos
sobre o caso. Quando se trata de um presumido milagre eucarístico, as espécies
consagradas devem ser conservadas em um lugar reservado e de modo adequado.
§ 5 – Quando os elementos recolhidos parecerem suficientes, o Bispo Diocesano
decida sobre o encaminhamento da fase de avaliação do fenômeno, para propor ao
Dicastério no seu Votum um juízo conclusivo segundo o superior interesse
da fé da Igreja, a fim de salvaguardar e promover o bem espiritual dos fiéis.
Art. 8 § 1 – O Bispo Diocesano[19] constitua uma Comissão de investigação, que entre seus membros deve
constar ao menos de um teólogo, um canonista e um perito escolhido segundo a
natureza do fenômeno,[20] cuja finalidade não é somente chegar a uma declaração sobre a veridicidade
dos fatos, mas aprofundar cada aspecto do evento, de modo a fornecer ao Bispo
Diocesano todo elemento útil para uma avaliação.
§ 2 – Os membros da Comissão de investigação sejam de íntegra fama, de fé
segura, de doutrina certa, de provada prudência e não sejam envolvidos, nem
direta nem indiretamente, com as pessoas ou com os fatos objeto de
discernimento.
§ 3 – O mesmo Bispo Diocesano nomeie um Delegado, escolhido entre os membros da
Comissão ou externo a esses, com a tarefa de coordenar e presidir os trabalhos e
de predispor as sessões.
§ 4 – O Bispo Diocesano ou o seu Delegado nomeie também um Notário com a tarefa
de assistir às reuniões e de redigir as atas dos interrogatórios e de todo outro
ato da Comissão. Ao Notário compete cuidar para que as atas sejam devidamente
assinadas e que todos os atos objeto da instrutória sejam recolhidos e, bem
ordenados, sejam custodiados no arquivo da Cúria. O Notário provê ainda à
convocação e prepara a documentação das sessões.
§ 5 – Todos os membros da Comissão são obrigados a manter o segredo de
ofício, prestando o juramento.
Art. 9 § 1 – Os interrogatórios sejam realizados em analogia a quanto
prescrito pela normativa universal (cfr. can. 1558-1571 CIC; can.
1239-1252 CCEO) e sejam conduzidos sobre a base de perguntas formuladas
pelo Delegado, depois de um adequado confronto com os outros membros da
Comissão.
§ 2 – A deposição juramentada das pessoas envolvidas nos presumidos
fatos sobrenaturais seja prestada na presença da inteira Comissão ou ao menos de
alguns membros. Quando os fatos do caso se baseiam sobre um testemunho ocular, é
preciso examinar as testemunhas o quanto antes possível, para beneficiar-se da
proximidade temporal ao evento.
§ 3 – Os confessores das pessoas envolvidas, que afirmam terem sido
protagonistas de fatos de origem sobrenatural não podem testemunhar sobre a
inteira matéria que conheceram através da confissão sacramental.[21]
§ 4 – Os diretores espirituais das pessoas envolvidas, que afirmam
terem sido protagonistas de fatos de origem sobrenatural não podem testemunhar
sobre a matéria que conheceram através da direção espiritual, a menos que as
pessoas interessadas autorizem por escrito a deposição.
Art. 10 – Se no material instrutório confluírem textos escritos ou outros elementos
(vídeo, áudio, fotográfico) divulgados com os meios de comunicação, tendo como
autor uma pessoa envolvida no presumido fenômeno, tal material seja submetido a
um acurado exame feito por especialistas (cfr. art. 3 §3), cujo resultado será
inserido na documentação instrutória pelo Notário.
Art. 11 § 1 – Quando os fatos extraordinários mencionados no art. 7 §1 se referirem a objetos
de natureza variada (cfr. art. 3 §3), a Comissão encaminhe uma acurada
investigação sobre tais objetos através dos especialistas que a compõem ou de
outros, individuados para o caso, de modo a se chegar a uma avaliação de caráter
científico, doutrinal e canonístico, que seja de ajuda à sucessiva avaliação.
§ 2 – Quando eventuais amostras de natureza orgânica relacionadas ao evento
extraordinário exigirem particulares exames de laboratório e, em todo caso, de
tipo técnico-científico, a Comissão confie o estudo a especialistas que sejam
realmente peritos na área própria de tal investigação.
§ 3 – No caso em que o fenômeno se refira ao Corpo e ao Sangue do Senhor sob os sinais
sacramentais do pão e do vinho, tenha-se uma particular atenção para que as
eventuais análises sobre os mesmos não deem ocasião a uma falta de respeito para
com o Santíssimo Sacramento, garantindo a devoção a ele devida.
§ 4 – Quando os presumidos fatos extraordinários causarem problemas de ordem pública,
o Bispo Diocesano colabore com a autoridade civil competente.
Art. 12 – Quando os presumidos eventos sobrenaturais se prolongarem durante a
instrutória e a situação aconselhar intervenções prudenciais, o Bispo Diocesano
não hesite em agir, mediante aqueles atos de bom governo que evitem
manifestações descontroladas ou duvidosas de devoção ou a promoção de um culto
fundado sobre elementos ainda não definidos.
Fase avaliativa
Art. 13 – O Bispo Diocesano, com a ajuda dos membros da Comissão por ele instituída,
avalie aprofundadamente o material recolhido, segundo os critérios principais de
discernimento supracitados (cfr. n. 10-23) e os critérios positivos e negativos
que seguem, que devem ser aplicados de modo combinado.
Art. 14 – Entre os critérios positivos, não se deixe de julgar:
1°. A credibilidade e a boa fama das pessoas que afirmam ser destinatárias de
eventos sobrenaturais ou ser diretamente envolvidas em tais fatos, bem como das
testemunhas escutadas. Em particular, considere-se o equilíbrio psíquico, a
honestidade e a retidão na vida moral, a sinceridade, a humildade e a docilidade
para com a autoridade eclesiástica, a disponibilidade em colaborar com esta, a
promoção de um espírito de autêntica comunhão eclesial.
2°. A ortodoxia doutrinal do fenômeno e da eventual mensagem a ele conexa.
3°. O caráter imprevisível do fenômeno, a partir do qual apareça claramente que
não é fruto da iniciativa das pessoas envolvidas.
4°. Os frutos de vida cristã. Entre estes, verifique-se a presença do espírito
de oração, conversões, vocações sacerdotais e à vida religiosa, testemunhos de
caridade, como também uma sadia devoção e frutos espirituais abundantes e
constantes. Avalie-se a contribuição de tais frutos no crescimento da comunhão
eclesial.
Art. 15 – Entre os critérios negativos, verifiquem-se acuradamente:
1°. A eventual presença de um erro manifesto acerca do fato.
2°. Eventuais erros doutrinais. A propósito, é necessário considerar a
possibilidade que o sujeito que afirma ser destinatário de eventos de origem
sobrenatural tenha acrescentado, também inconscientemente, a uma revelação
privada elementos puramente humanos ou algum erro de ordem natural, não devido à
má intenção, mas à percepção subjetiva do fenômeno.
3°. Um espírito sectário, que gera divisão no tecido eclesial.
4°. Uma busca evidente de lucro, poder, fama, notoriedade social, interesse
pessoal ligado diretamente ao fato.
5°. Atos gravemente imorais realizados pelo sujeito ou por seus seguidores no
momento ou em ocasião do fato.
6°. Alterações psíquicas ou tendências psicopáticas presentes no sujeito, que
possam ter exercido influência sobre o presumido fato sobrenatural, ou senão
psicose, histeria coletiva ou outros elementos reconduzíveis a um horizonte
patológico.
Art. 16 – Deve-se considerar como sendo de particular gravidade moral o uso de eventuais
experiências sobrenaturais ou de elementos místicos reconhecidos como meio ou
pretexto para exercer domínio sobre as pessoas ou cometer abusos.
Art. 17 – A avaliação dos resultados instrutórios, no caso dos presumidos fenômenos
sobrenaturais mencionados no art. 7 §1, realize-se com acurada diligência, seja
quanto às pessoas envolvidas, seja ao exame técnico-científico eventualmente
realizado.
Fase conclusiva
Art. 18 – Concluída a instrutória e examinados atentamente os eventos e as informações
recolhidas,[22] considerados também os efeitos que os presumidos fatos tenham provocado no
Povo de Deus a ele confiado, com especial atenção à fecundidade dos frutos
espirituais gerados pela eventual nova devoção, o Bispo Diocesano, com a ajuda
do Delegado, prepare um relatório sobre o presumido fenômeno. Tendo em conta
todos os fatos do caso, positivos e negativos, redija seu Votum pessoal a
respeito, propondo ao Dicastério seu juízo conclusivo, normalmente segundo uma
das seguintes fórmulas:[23]
1°. Nihil obstat
2°. Prae oculis habeatur
3°. Curatur
4°. Sub mandato
5°. Prohibetur et obstruatur
6°. Declaratio de non supernaturalitate
Art. 19 – Terminada a investigação, sejam transmitidos ao Dicastério para a Doutrina da Fé
todos os atos relativos ao caso examinado para a aprovação final.
Art. 20 – O Dicastério procederá à avaliação dos atos do caso, examinando os elementos
morais e doutrinais de tal experiência e o uso que deles foi feito, juntamente
com o Votum do Bispo Diocesano. O Dicastério poderá requerer ao Bispo
Diocesano ulteriores informações ou pedir outros pareceres, ou senão, em
situações extremas, proceder a um novo exame do caso, distinto daquele realizado
pelo Bispo Diocesano. À luz dessa avaliação, confirmará ou não a determinação
proposta pelo Bispo Diocesano.
Art. 21 § 1 – Recebida a resposta do Dicastério e em consonância com este, salvo diversa
indicação por parte do mesmo, o Bispo Diocesano dará a conhecer, com clareza, ao
Povo de Deus o juízo sobre os fatos em questão.
§ 2 – O Bispo Diocesano terá o cuidado de informar a Conferência Episcopal nacional
sobre a determinação aprovada pelo Dicastério.
Art. 22 § 1 – No caso em que se conceda um Nihil obstat (cfr. art. 18, 1°), o
Bispo Diocesano dará a máxima atenção à correta apreciação dos frutos derivantes
do fenômeno examinado, prosseguindo a vigilância sobre eles, com prudência.
Neste caso, o Bispo Diocesano indicará claramente, mediante Decreto, a natureza
da autorização e os limites de um eventual culto permitido, precisando que os
fiéis «são autorizados a dar [...], de modo prudente, a sua adesão».[24]
§ 2 – O Bispo Diocesano ainda estará atento a que os fiéis não considerem
nenhuma das determinações acima como uma aprovação do caráter sobrenatural do
fenômeno.
§ 3 –O Dicastério se reserva, em todo caso, a possibilidade de intervir novamente,
seguindo o desenvolvimento do fenômeno.
Art. 23 § 1 – No caso em que se adote uma determinação cautelar (cfr. art. 18, 2°-4°) ou
negativa (cfr. art. 18, 5°-6°), esta deve ser publicada formalmente pelo Bispo
Diocesano, depois da aprovação do Dicastério. Ela seja redigida com uma
linguagem clara e compreensível a todos, tendo-se avaliado a oportunidade de
tornar conhecidas as razões da decisão tomada e os fundamentos doutrinais da fé
católica implicados, de modo a favorecer o crescimento de uma sadia
espiritualidade.
§ 2 – Ao comunicar uma eventual decisão negativa, o Bispo Diocesano pode omitir
notícias que comportariam injusto prejuízo às pessoas envolvidas.
§ 3 – Sobre uma eventual continuação do divulgar-se de escritos ou mensagens, os
legítimos Pastores vigiem, segundo o can. 823 CIC (cfr. can. 652 § 2; 654
CCEO), reprovando os abusos e tudo quanto produza dano à reta fé e
aos bons costumes ou, de qualquer modo, seja perigoso para o bem das almas. A
tal fim, pode-se recorrer à imposição dos meios ordinários, entre os quais os
preceitos penais (cfr. can. 1319 CIC; can. 1406 CCEO).
§ 4 – O recurso mencionado no § 3 é particularmente oportuno no caso em que os
comportamentos a serem reprovados se refiram a objetos ou lugares correlatos aos
presumidos fenômenos sobrenaturais.
Art. 24 – Qualquer que seja a determinação aprovada, o Bispo Diocesano, pessoalmente
ou através de um Delegado, tem o dever de continuar a vigiar sobre o fenômeno e
sobre as pessoas envolvidas, exercitando especificamente o seu poder ordinário.
Art. 25 – No caso em que os presumidos fenômenos sobrenaturais forem reconduzíveis
com certeza a uma deliberada intenção mistificadora e enganadora para fins
diversos (por exemplo, lucro e outros interesses pessoais), o Bispo Diocesano
aplicará, avaliando caso a caso, a vigente normativa canônica penal.
Art. 26 – O Dicastério para a Doutrina da Fé tem a faculdade de intervir
motu proprio em qualquer momento e estado do discernimento relativo aos
presumidos fenômenos sobrenaturais.
Art. 27 – As presentes Normas substituem integralmente as precedentes, de 25
de fevereiro de 1978.
O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida ao subscrito Prefeito e ao
Secretário para a Seção Doutrinal do Dicastério para a Doutrina da Fé, no dia 4
de maio de 2024, aprovou as presentes Normas, deliberadas na Sessão Ordinária deste Dicastério em 17 de abril de
2024, e ordenou a sua publicação, estabelecendo que elas entrem em vigor aos 19
de maio de 2024, na solenidade de Pentecostes.
Dado em Roma, junto à sede do Dicastério para a Doutrina da Fé, aos 17 de maio
de 2024.
Víctor Manuel Card. Fernández
Prefeito
Mons. Armando Matteo
Secretário
para a Seção Doutrinal
Ex Audientia Die 04.05.2024
Franciscus
_____________________________________
Índice
Apresentação
Na escuta do Espírito que opera no fiel Povo de
Deus
A recente revisão
Razões da nova redação das
Normas
Novos
aspectos
Reconhecimento de uma ação do Espírito
O envolvimento e o acompanhamento do Dicastério
Introdução
I. Orientações gerais
A. Natureza do discernimento
B. Conclusões
II. Procedimento a ser seguido
A. Normas substanciais
B. Normas de procedimento
Fase instrutória
Fase avaliativa
Fase conclusiva
[1] S. João da Cruz, Noite escura II, 17, 6, in Id., Obras completas, Petrópolis,
Vozes, 20027.
[2] Id.,
Cântico espiritual B, prol., 1.
[3] Id., Noite escura II, 17, 8.ù
[4] Id., Chama viva de amor B III, 47.
[5] Bento XVI, Exort. Ap.
Verbum Domini (30 de setembro de 2010), n. 14: AAS
102 (2010), p. 696.
[6] K. Rahner, Visioni e profezie.
Mistica ed esperienza della
trascendenza, Milano, Vita e Pensiero, 19952, pp. 95-96.
[7] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm.
Dei Verbum (18 de novembro de 1965), n. 4: AAS 58 (1966), p. 819.
[8] S. João da Cruz,
Subida do monte Carmelo, 2, 22, 3-5, in Id., Obras completas, Petrópolis, Vozes, 20027; cfr.
Catecismo da Igreja Católica, n. 65.
[9] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm.
Dei Verbum (18 de novembro de 1965), n. 5: AAS 58 (1966), p. 819.
[10] S. João da Cruz,
Cântico espiritual B, 37, 4.
[11] Catecismo da Igreja Católica, n. 67. Cfr. Congregação para a Doutrina da Fé,
A mensagem de Fátima (26
de junho de 2000), Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2000.
[12] Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm.
Lumen gentium (7 de dezembro de 1965), nn. 39-42: AAS 57 (1965), pp. 44-49; Francisco, Exort. Ap.
Gaudete et exsultate (19 de março 2018), nn. 10-18, 143: AAS
110 (2018), pp. 1114-1116, 1150-1151; Id., Carta Ap. Totum amoris est (28 de dezembro de 2022),
passim: L’Osservatore Romano, 28
de dezembro de 2022, pp. 8-10.
[13] Francisco, Exort. Ap.
C’est la confiance (15 de outubro de 2023), n. 35: L’Osservatore Romano, 16 de outubro de 2023, p. 3.
[14] Cfr. Francisco, Exort. Ap.
Gaudete et exsultate (19 de março de
2018), nn. 166 e 173: AAS 110 (2018), pp. 1157 e 1159-1160.
[15] S. João Paulo II,
Mensagem aos participantes do Congresso mundial dos
Movimentos eclesiais promovido pelo Pontifício Conselho para os Leigos (27
de maio de 1998), n. 4: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXI 1: 1998,
Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2000, p. 1064. Cfr. Bento XVI,
Exort. Ap. Verbum Domini (30 de setembro de 2010), n. 14: AAS 102
(2010), p. 696.
[16] Sacra Congregatio Rituum,
Decretum beatificationis et canonizationis Servae Dei Gemmae Galgani,
virginis saecularis: AAS 24 (1932), p. 57. «[Pio XI]
quis de bom grado insistir sobre as virtudes heróicas desta moça,
tanto inocente quanto penitente, mas sem que com o presente decreto (coisa que
normalmente jamais acontece) se emita um juízo sobre os carismas preternaturais
da Serva de Deus».
[17] Dicastério para a Doutrina da Fé,
Carta ao Bispo de Como acerca de um presumido vidente (25 de setembro
de 2023).
[18] A expressão “em meio a” não quer dizer “por meio de” ou “através de”, mas
indica que em um determinado contexto, não necessariamente de origem
sobrenatural, o Espírito Santo opera coisas boas.
[19] Ou outra autoridade eclesiástica segundo os artigos 4-6
supra.
[20] Por exemplo: um médico, melhor se for especializado em algumas disciplinas
conexas, como psiquiatria, hematologia etc.; um biólogo; um químico etc.
[21] Cfr. can. 983 § 1; 1550 § 2, 2°
CIC; can. 733 § 1; 1231 § 1, 2° CCEO; Congregação para as Causas dos Santos, Instr. Sanctorum Mater
para a realização dos inquéritos diocesanos ou das eparquias nas causas dos
santos (17 de maio de 2007), art. 101-102: AAS 99 (2007), p. 494; Penitenciaria Apostólica, Nota sobre a importância do foro interno e a inviolabilidade do sigilo
sacramental (29 de junho de 2019): AAS 111 (2019), pp. 1215-1218.
[22] Todas as provas testemunhais sejam detalhadamente avaliadas, aplicando
todos os mencionados critérios, também à luz da normativa canônica sobre a força
probatória dos testemunhos (cfr. ex analogia can. 1572 CIC; can.
1253 CCEO).
[23] Cfr. supra, n. 17-22.
[24] Bento XVI, Exort. Ap.
Verbum Domini (30 de setembro de 2010), n. 14: AAS 102 (2010), p. 696. No mesmo parágrafo afirma-se: «A aprovação
eclesiástica de uma revelação privada indica essencialmente que a relativa
mensagem não contém nada que contraste com a fé e os bons costumes; é lícito
torná-la pública e os fiéis são autorizados a dar a ela, de modo prudente, a sua
adesão. […] É uma ajuda que é oferecida, mas da qual não é obrigatório fazer uso. Em todo
caso, deve tratar-se de um nutrimento da fé, da esperança e da caridade, que são
para todos a via permanente da salvação».
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