Index

  Back Top Print

[DE - EN - ES - FR - HR - IT - PL - PT]

 

DICASTÉRIO PARA A DOUTRINA DA FÉ

 

NORMAS

PARA PROCEDER NO DISCERNIMENTO
DE PRESUMIDOS FENÔMENOS SOBRENATURAIS

 

Apresentação

Na escuta do Espírito
que opera no fiel Povo de Deus

 

Deus está presente e age na nossa história. O Espírito Santo, que se derrama do Coração de Cristo Ressuscitado, opera na Igreja com divina liberdade e nos oferece tantos dons preciosos que nos ajudam no caminho da vida e estimulam o nosso amadurecimento espiritual, na fidelidade ao Evangelho. Esta ação do do Espírito Santo inclui também a possibilidade de chegar aos nossos corações através de alguns eventos sobrenaturais, como por exemplo as aparições ou visões de Cristo ou da Santa Virgem e outros fenômenos.

Tantas vezes estas manifestações provocaram uma grande riqueza de frutos espirituais, de crescimento na fé, de devoção e de fraternidade e serviço, e em alguns casos deram origem a diversos Santuários espalhados em todo o mundo, que hoje são parte do coração da piedade popular de muitos povos.

Existe tanta vida e tanta beleza que o Senhor semeia para além dos nossos esquemas mentais e dos nossos procedimentos! Por esta razão, as Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais, que agora apresentamos, não pretendem ser necessariamente um controle, menos ainda uma tentativa de abafar o Espírito. Nos casos mais positivos de eventos de presumida origem sobrenatural, de fato, «encoraja-se o Bispo Diocesano a apreciar o valor pastoral e a promover a difusão desta proposta espiritual» (I, n. 17).

São João da Cruz constatava «quão baixos, insuficientes e, de qualquer maneira, impróprios sejam as palavras e os termos usados nesta vida para tratar das coisas divinas».[1] Ninguém pode exprimir plenamente as imperscrutáveis vias de Deus nas pessoas: «Os santos doutores, ainda que tenham falado e continuem a falar disso, não conseguem explicá-lo com palavras, como de resto nem mesmo com palavras foi dito».[2] Porque «a via para ir a Deus é tão secreta e oculta para a alma como aquela do mar para o corpo, sobre a qual não se conhecerm sendas e pegadas».[3] Realmente, «sendo pois um artífice sobrenatural, Ele construirá em cada alma o edifício sobrenatural que desejar».[4]

Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que em alguns casos de eventos de presumida origem sobrenatural encontram-se problemas muito sérios, com dano aos fiéis. Nestes casos, a Igreja deve agir com toda a sua solicitude pastoral. Refiro-me, por exemplo, ao uso de tais fenômenos para obter «lucro, poder, fama, notoriedade social, interesse pessoal» (II, art. 15, 4°), que pode chegar até mesmo à possibilidade de realizar atos gravemente imorais (cfr. II, art.15, 5°) ou mesmo «como meio ou pretexto para exercer um domínio sobre as pessoas ou cometer abusos» (II, art. 16).

Não se deve ignorar nem mesmo, em tais eventos, a possibilidade de haver erros doutrinais, reducionismos indevidos no propor a mensagem do Evangelho, a difusão de um espírito sectário etc. Por último, existe também a possibilidade de os fiéis serem arrastados por um fenômeno, atribuído à iniciativa divina, mas que é fruto somente da fantasia, do desejo de novidade, da mitomania ou da tendência à falsificação.

No seu discernimento neste âmbito, a Igreja tem pois necessidade de procedimentos claros. As Normas para proceder no discernimento de presumidas aparições e revelações, que se aplicavam até agora, foram aprovadas em forma reservada por São Paulo VI em 1978, há mais de quarenta anos, e foram publicadas oficialmente apenas em 2011, trinta e três anos depois.

A recente revisão

Na aplicação das Normas de 1978 constatava-se, todavia, que as decisões exigiam tempos muito longos, até décadas, e deste modo se chegava tarde demais ao necessário discernimento eclesial.

A sua revisão teve início em 2019, através de várias consultas previstas pela então Congregação para a Doutrina da Fé (Congresso, Consulta, Feria IV e Plenária). Ao longo destes cinco anos, foram elaboradas diversas propostas de revisão, todas porém consideradas insuficientes.

No Congresso do Dicastério de 16 de novembro de 2023, viu-se a necessidade de uma revisão global e radical do projeto elaborado até aquele momento. Foi então preparado um outro esboço de documento, totalmente repensado na direção de um maior esclarecimento das funções do Bispo Diocesano e do Dicastério.

A nova redação foi submetida ao exame de uma Consulta restrita, realizada em 4 de março de 2024, obtendo um parecer geral positivo, ainda que tenham sido feitas algumas observações para a melhora do texto, que foram integradas no sucessivo esboço do documento.

O texto foi posteriormente estudado na Feria IV do Dicastério, realizada em 17 de abril de 2024, durante a qual os Cardeais e os Bispos membros deram a sua aprovação. Enfim, em 4 de maio de 2024, as novas Normas foram apresentadas ao Santo Padre, que as aprovou e ordenou que fossem publicadas, estabelecendo sua entrada vigor no dia 19 de maio de 2024, na solenidade de Pentecostes.

Razões da nova redação das Normas

No Prefácio à publicação das Normas de 1978, acontecida em 2011, o então Prefeito, Card. William Levada, esclarecia que o mesmo Dicastério era competente para examinar os casos de «aparições, de visões e mensagens atribuídas à origem sobrenatural». Aquelas Normas, de fato, estabeleciam que «compete à Sagrada Congregação julgar e aprovar o modo de proceder do Ordinário» ou «proceder a um novo exame» (IV, 2).

No passado, a Santa Sé parecia aceitar que os Bispos fizessem declarações como estas: «Os fiéis são justificados em crer como indubitável e certo» (Decreto do Bispo de Grenoble, 19 de setembro de 1851); «Não se pode colocar em dúvida a realidade das lacrimações» (Bispos da Sicília, 12 de dezembro de 1953). Mas estas expressões contrastavam a convicção da Igreja de que os fiéis não são obrigados a aceitar a autenticidade desses eventos. Por isso, alguns meses depois deste último caso, o então Santo Ofício esclareceu que «não tomou ainda nenhuma decisão em mérito à Senhora das Lágrimas [Siracusa, Sicília]» (2 de outubro de 1954). Mais recentemente, referindo-se ao caso de Fátima, a então Congregação para a Doutrina da Fé explicou que a aprovação eclesiástica de uma revelação privada evidencia que «a relativa mensagem não contém nada que contraria a fé e os bons costumes» (26 de junho de 2000).

Não obstante esta clara tomada de posição, os procedimentos seguidos de fato pelo Dicastério, mesmo nos últimos tempos, eram orientados a uma declaração de “sobrenaturalidade” ou de “não-sobrenaturalidade” por parte do Bispo, tanto que alguns Bispos insistiram sobre a possibilidade de emitir uma declaração positiva desse tipo. Ainda recentemente, alguns Bispos queriam exprimir-se com palavras como estas: «Constato a absoluta verdade dos fatos», «os fiéis devem considerar sem dúvida como verdadeiros…» etc. Estas expressões orientavam os fiéis a pensarem que eram obrigados a crer nessas manifestações, que às vezes eram mais valorizadas que o próprio Evangelho.

No tratamento de tais casos e particularmente na redação de um pronunciamento, a praxe seguida por alguns Bispos foi de pedir previamente ao Dicastério a necessária autorização. E quando eram autorizados a fazê-lo, pedia-se aos Bispos de não mencionar o Dicastério no pronunciamento. Assim aconteceu, por exemplo, nos pouquíssimos casos que chegaram a uma conclusão nas últimas décadas: «Sem implicar nossa Congregação» (Carta ao Bispo de Gap, 3 de agosto de 2007); «Em tal declaração não seja envolvido o Dicastério» (Congresso de 11 de maio de 2001, quanto ao Bispo de Gikongoro). Em outras palavras, o Bispo não podia nem mesmo mencionar que existia uma aprovação do Dicastério. Ao mesmo tempo, alguns outros Bispos, cujas Dioceses eram também envolvidas nesses fenômenos, pediam ao Dicastério que se pronunciasse para que se alcançasse uma clareza maior.

Este particular modo de proceder, que gerou não pouca confusão, ajuda a entender que as Normas de 1978 não são mais suficientes e adequadas para guiar o trabalho seja dos Bispos, seja do Dicastério. Isso se torna ainda mais problemático hoje, dado que dificilmente um fenômeno permanece circunscrito a uma cidade ou a uma Diocese. Tal constatação já tinha aparecido na então Congregação para a Doutrina da Fé, durante a Assembléia Plenária de 1974, quando os membros reconheciam que um evento de presumida origem sobrenatural muitas vezes «ultrapassa inevitavelmente os limites de uma Diocese e também de uma Nação e [...] o caso chega automaticamente a proporções que podem justificar uma intervenção da Autoridade suprema da Igreja». Ao mesmo tempo, as Normas de 1978 reconheciam que se tornou «mais difícil, senão quase impossível, emitir com a devida celeridade os juízos que concluíam no pasado as investigações em matéria (constat de supernaturalitate, non constat de supernaturalitate)» (Normas de 1978, nota preliminar).

A expectativa de uma declaração sobre a sobrenaturalidade de um evento teve como consequência que somente pouquíssimos casos chegaram a uma clara determinação. De fato, depois de 1950, foram resolvidos oficialmente não mais que seis casos, mesmo se os fenômenos tenham crescido de número, frequentemente sem uma guia clara e com o envolvimento de pessoas de muitas Dioceses. Portanto, presume-se que tantíssimos outros casos foram conduzidos de maneira diversa ou mesmo não foram tratados.

Para não procrastinar ainda mais a resolução de um caso específico relativo a evento de presumida origem sobrenatural, o Dicastério propôs recentemente ao Santo Padre que se pudesse encerrar o relativo discernimento não com uma declaração de supernaturalitate, mas com um Nihil obstat que permitisse ao Bispo aproveitar pastoralmente aquele fenômeno espiritual. A tal declaração se chegaria depois de se ter avaliado os diversos frutos espirituais e pastorais e a ausência de problemas importantes no evento. O Santo Padre considerou tal proposta como uma “solução justa”.

Novos aspectos

Os elementos expostos nos levaram a propor, com as novas Normas, um procedimento diverso em relação ao passado, mas também mais rico, com seis possíveis conclusões prudenciais para orientar o trabalho pastoral em torno aos eventos de presumida origem sobrenatural (cfr. I, nn. 17-22). A proposta destas seis determinações finais permite ao Dicastério e aos Bispos conduzir  de modo adequado as problemáticas de casos muito diversos entre si, dos quais se tem conhecimento.

Entre estas possíveis conclusões não se inclui normalmente uma declaração acerca da sobrenaturalidade do fenômeno objeto de discerimento, isto é a possibilidade de afirmar com certeza moral que ele provém de uma decisão de Deus, que o teria querido de modo direto. Ao invés, a concessão do Nihil obstat indica simplesmente, como já explicava Papa Bento XVI, que a respeito daquele fenômeno os fiéis «são autorizados a dar-lhe, de modo prudente, a sua adesão». Não se tratando de uma delaração sobre a sobrenaturalidade dos fatos, torna-se ainda mais claro, como dizia ainda Papa Bento XVI, que se trata somente de uma ajuda «da qual não é obrigatório fazer uso».[5] De outro lado, esta intervenção deixa naturalmente aberta a possibilidade de no futuro, prestando-se atenção ao desenvolvimento da devoção, intervir de modo diverso.

Deve-se notar ainda que chegar a uma declaração de “sobrenaturalidade”, por sua natureza, não apenas requer um tempo adequado de análise, mas pode dar espaço a que se emita hoje uma declaração de “sobrenaturalidade” e muitos anos depois um juízo de “não-sobrenaturalidade”, como de fato já aconteceu. Vale a pena recordar um caso de presumidas aparições dos anos ’50, em que o Bispo, no ano 1956, emitiu uma sentença definitiva de “não-sobrenaturalidade”. No ano seguinte, o então Santo Ofício aprovou as determinações daquele Bispo. Em seguida, pediu-se  novamente  a aprovação daquela veneração, mas em 1974 a Congregação para a Doutrina da Fé declarou a respeito da mesmas aparições  um constat de non supernaturalitate. Sucessivamente, em 1996, o Bispo do lugar reconheceu aquela devoção e um sucessivo Bispo do mesmo lugar, em 2002, reconheceu a “origem sobrenatural” das aparições e a devoção se difundiu em outros Países. Por último, a pedido da Congregação para a Doutrina da Fé, em 2020, o novo Bispo reafirmou o “juízo negativo” dado precedentemente pela mesma Congregação, impondo que cessasse qualquer divulgação a respeito das presumidas aparições e revelações. Foram necessários cerca de setenta tormentosos anos para se chegar à conclusão do caso.

Hoje, tem-se a convicção de que essas situações complicadas, que produzem confusão entre os fiéis, devam ser sempre evitadas, assumindo um envolvimento mais veloz e explícito deste Dicastério e evitando que o discernimento se dirija a uma declaração de “sobrenaturalidade”, com fortes expectativas, ansiedades e até mesmo pressões a respeito. Tal declaração de “sobrenaturalidade” é, pois, substituída ou por um Nihil obstat, que autoriza um trabalho pastoral positivo, ou por uma outra determinação adaptada à situação concreta.

Os procedimentos previstos pelas novas Normas, com a proposta de seis possíveis decisões prudenciais, permitem chegar num tempo razoável a uma resolução que ajude o Bispo a conduzir a situação relativa a eventos de presumida origem sobrenatural, antes que eles tomem dimensões muito problemáticas, sem um necessário discernimento eclesial.

Todavia, de uma parte permanece firme a possibilidade que o Santo Padre intervenha autorizando, em via totalmente excepcional, a proceder a uma declaração de sobrenaturalidade dos eventos: trata-se de uma exceção, que de fato se verificou só em pouquíssimos casos nos últimos séculos.

De outra, como previsto pelas novas Normas, permanece a possibilidade de uma declaração de “não-sobrenaturalidade” apenas quando se verificam sinais objetivos e claramente indicativos de manipulação à base do fenômeno, como por exemplo quando um presumido vidente declara ter mentido, ou quando as provas indicam que o sangue de um crucifixo pertence ao presumido vidente etc.

Reconhecimento de uma ação do Espírito

A maior parte dos Santuários, que hoje são lugares privilegiados da piedade popular do Povo de Deus, não teve jamais, no curso da devoção que ali se exprime, uma declaração de sobrenaturalidade dos fatos que deram origem àquela devoção. O sensus fidelium intuiu que ali existia uma ação do Espírito Santo e não apareceram problemas importantes que requeressem uma intervenção dos Pastores.

Em muitos casos, a presença do Bispo e dos sacerdotes em certos momentos, como nas peregrinações ou na celebração de algumas Missas, era um modo implícito de reconhecer que não existiam objeções graves e que aquela experiência espiritual exercitava um influxo positivo na vida dos fiéis.

Em todo caso, um Nihil obstat permite aos Pastores agirem sem dúvidas nem lentidão para estar junto ao Povo de Deus no acolhimento dos dons do Espírito Santo, que podem brotar em meio a estes fatos. A expressão “em meio a”, utilizada nas novas Normas, ajuda a entender que, mesmo se não se emite a declaração de sobrenaturalidade sobre o próprio evento, de todo modo são reconhecidos com clareza os sinais de uma ação sobrenatural do Espírito Santo no contexto do acontecimento.

Em outros casos, junto com este reconhecimento, vê-se a necessidade de certos esclarecimentos ou purificações. Pode acontecer, de fato, que verdadeiras ações do Espírito Santo em uma situação concreta, que podem ser justamente apreciadas, apareçam misturadas a elementos meramente humanos, como desejos pessoais, recordações, ideias às vezes obsessivas, ou a «algum erro de ordem natural não devido a má intenção, mas à percepção subjetiva do fenômeno» (II, art. 15, 2°). De resto, «não se pode colocar uma experiência de visão, sem ulteriores considerações, diante ao dilema rigoroso de ser correta em todos os pontos, ou de dever ser considerada completamente uma ilusão humana ou diabólica».[6]

O envolvimento e o acompanhamento do Dicastério

É importante entender que as novas Normas evidenciam a competência deste Dicastério. De uma parte, permanece firme que o discernimento é tarefa do Bispo Diocesano. De outra, devendo reconhecer que, hoje mais que nunca, estes fenômenos envolvem muitas pessoas que pertencem a outras Dioceses e se difundem rapidamente em diversas regiões e Países, as novas Normas estabelecem que o Dicastério deve ser consultado e intervir sempre para dar uma aprovação final a quanto for decidido pelo Bispo, antes que este torne pública a determinação sobre um evento de presumida origem sobrenatural. Se antes intervinha, mas pedia ao Bispo de não o mencionar, hoje o Dicastério manifesta publicamente o seu envolvimento e acompanha o Bispo na determinação final. Tornando público o quanto decidido, o Bispo deve, pois, dizer: «de comum acordo com o Dicastério para a Doutrina da Fé».

De qualquer modo, como já contemplado nas Normas de 1978, (IV, 1 b), também as novas Normas preveem que, em alguns casos, o Dicastério pode intervir motu proprio (cfr. II, art. 26). De fato, depois de se ter chegado a uma determinação clara, as novas Normas preveem que «o Dicastério se reserva, em todo caso, a possibilidade de intervir novamente, seguindo o desenvolvimento do fenômeno» (II, art. 22 §3) e pedem ao Bispo para «continuar a vigiar» (II, art. 24), para o bem dos fiéis.

Deus está sempre presente na história e não deixa jamais de enviar-nos os dons de sua graça através da ação do Espírito Santo, a fim de renovar dia a dia a nossa fé em Jesus Cristo, Salvador do mundo. Compete aos Pastores da Igreja a tarefa de tornar seus fiéis sempre atentos a esta presença de amor da Santíssima Trindade em meio a nós, bem como de defender os fiéis de todo engano. Estas novas Normas não são outra coisa que um modo concreto com que o Dicastério para a Doutrina da Fé coloca-se a serviço dos Pastores na escuta dócil ao Espírito que opera no fiel Povo de Deus.

Víctor Manuel Card. Fernández
Prefeito

Introdução

1. Jesus Cristo é a Palavra definitiva de Deus, «o Primeiro e o Último» (Ap 1,17). Ele é a plenitude e o cumprimento da Revelação: tudo aquilo que Deus quis revelar, realizou-o mediante o seu Filho, Palavra feita carne. Portanto, «a economia cristã, enquanto é a Aliança nova e definitiva, não passará jamais e não se deve esperar alguma outra revelação pública antes da manifestação gloriosa do Senhor nosso Jesus Cristo».[7]

2. Na Palavra revelada encontra-se tudo aquilo de que a vida cristã necessita. São João da Cruz afirma que o Pai, «desde o momento em que doou o seu Filho, que é a sua única e definitiva Palavra, disse-nos tudo de uma só vez nesta Palavra e não tem mais nada a dizer. [...] De fato, aquilo que nos tempos passados dizia parcialmente aos profetas, disse-nos totalmente no seu Filho, dando-nos este tudo que é o seu Filho. Por isso, quem quisesse ainda interrogar o Senhor e pedir-lhe visões ou revelações, não só cometeria uma insensatez, mas ofenderia a Deus, porque não fixa o seu olhar unicamente em Cristo e busca coisas diversas ou novidades além dele».[8]

3. No tempo da Igreja, o Espírito Santo conduz os fiéis de todas as épocas «à verdade toda inteira» (Jo 16, 13) para que «o entendimento da Revelação se torne sempre mais profundo».[9] É o Espírito Santo que nos guia a uma sempre maior compreensão do mistério de Cristo, porque «mesmo sendo muitos os mistérios e as maravilhas descobertas […] no presente estado de vida, permanece, porém, por dizer e por entender a sua maior parte e assim há ainda muito que aprofundar em Cristo. Ele, de fato, é como uma mina rica de imensas veias de tesouros, dos quais, por mais que se vá a fundo, não se encontra o fim; antes, em cada cavidade descobrem-se novos filões de riquezas».[10]

4. Se, por um lado, tudo o que Deus quis revelar, realizou-o mediante o seu Filho, e na Igreja de Cristo são postos à disposição de todos os batizados os meios ordinários de santidade, por outro, o Espírito Santo pode conceder a algumas pessoas experiências de fé totalmente particulares, cujo fim não é «aquele de ‘melhorar’ ou de ‘completar’ a Revelação definitiva de Cristo, mas de ajudar a vivê-la mais plenamente em uma determinada época histórica».[11]

5. Com efeito, a santidade é um chamado que diz respeito a todos os batizados: é nutrida pela vida de oração e pela participação na vida sacramental e se exprime em uma existência cheia de amor para com Deus e o próximo.[12] Na Igreja recebemos o amor de Deus, manifestado plenamente em Cristo (cfr. Jo 3, 16) e «derramado nos nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi dado» (Rm 5, 5). Quem se deixa docilmente guiar pelo Espírito Santo faz experiência da presença e da ação da Trindade, de modo que uma existência assim vivida, como ensina Papa Francisco, traduz-se numa vida mística que, ainda que «privada de fenômenos extraordinários, propõe-se a todos os fiéis como experiência cotidiana de amor»[13].

6. Todavia, verificam-se às vezes fenômenos (por exemplo, presumidas aparições, visões, locuções interiores ou externas, escritos ou mensagens, fenômenos ligados a imagens religiosas, fenômenos psicofísicos e de outra natureza) que parecem ultrapassar os limites da experiência cotidiana e que se apresentam como tendo presumida origem sobrenatural. Falar de modo acurado de tais eventos pode superar a capacidade da linguagem humana (cfr. 2Cor 12, 2-4). Com o advento dos modernos meios de comunicação, tais fenômenos podem atrair a atenção ou suscitar a perplexidade de numerosos fiéis e a sua notícia pode difundir-se muito rapidamente, de modo que os Pastores da Igreja são chamados a enfrentar com solicitude tais eventos, isto é, a avaliar os seus frutos, a purificá-los de elementos negativos ou a colocar de sobreaviso os fiéis quanto aos perigos que deles derivam (cfr. 1Jo 4, 1).

7. Ainda, com o desenvolvimento dos atuais meios de comunicação e com o incremento das peregrinações, estes fenômenos alcançam dimensões nacionais e até mundiais, de modo que uma decisão relativa a uma Diocese pode ter consequências também em outros lugares.

8. Quando junto a particulares experiências espirituais verificam-se igualmente fenômenos físicos e psicológicos que não são imediatamente explicáveis com o uso da pura razão, corresponde à Igreja a delicada tarefa de encaminhar um atento estudo e discernimento de tais fenômenos.

9. Na sua Exortação apostólica Gaudete et exsultate, Papa Francisco recorda que o único modo de saber se uma coisa vem do Espírito Santo é o discernimento, que se deve pedir e cultivar na oração.[14] Esse é um dom divino que ajuda os Pastores da Igreja a realizar aquilo que diz São Paulo: «examinai tudo, ficai com o que é bom» (1Ts 5, 21). Para assistir os Bispos Diocesanos e as Conferências Episcopais na realização do discernimento a respeito dos fenômenos de presumida origem sobrenatural, o Dicastério para a Doutrina da Fé promulga as seguintes Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais.

I. Orientações gerais

A. Natureza do discernimento

10. Segundo as Normas apresentadas a seguir, a Igreja poderá realizar o dever de discernir: a) se seja possível encontrar nos fenômenos de presumida origem sobrenatural a presença de sinais de uma ação divina; b) se nos eventuais escritos ou mensagens daqueles que são envolvidos nos presumidos fenômenos em questão nada exista de contrastante com a fé e os bons costumes; c) se seja lícito valorizar seus frutos espirituais ou se resulte necessário purificá-los de elementos problemáticos ou colocar de sobreaviso os fiéis quanto aos perigos deles derivantes; d) se seja aconselhável uma valorização pastoral por parte da Autoridade eclesiástica competente.

11. Ainda que as seguintes disposições prevejam a possibilidade de um discernimento no sentido do n. 10, deve-se precisar que, em via ordinária, não se deverá prever um reconhecimento positivo por parte da Autoridade eclesiástica acerca da origem divina de presumidos fenômenos sobrenaturais.

12. No caso em que seja concedido por parte do Dicastério um Nihil obstat (cfr. infra, n. 17), tais fenômenos não se tornam objeto de fé – isto é, os fiéis não são obrigados a prestar a eles um assentimento de fé – mas, como no caso de carismas reconhecidos pela Igreja, «representam algumas vias para aprofundar o conhecimento de Cristo e para doar-se mais generosamente a ele, enraizando-se ao mesmo tempo sempre mais na comunhão com todo o Povo cristão».[15]

13. De resto, também quando se concede um Nihil obstat para os processos de canonização, isto não implica uma declaração de autenticidade dos eventuais fenômenos sobrenaturais presentes na vida de uma persona, assim como foi evidenciado no decreto di canonização de Santa Gemma Galgani: «[Pius XI] feliciter elegit ut super heroicis virtutibus huius innocentis aeque ac poenitentis puellae suam mentem panderet, nullo tamen per praesens decretum (quod quidem numquam fieri solet) prolato iudicio de praeternaturalibus Servae Dei charismatibus».[16]

14. Ao mesmo tempo, é necessário constatar que certos fenômenos, que poderiam ter origem sobrenatural, às vezes aparecem conexos a experiências humanas confusas, a expressões imprecisas do ponto de vista teológico ou a interesses não totalmente legítimos.

15. O discernimento dos presumidos fenômenos sobrenaturais é feito desde o início pelo Bispo Diocesano, ou eventualmente por outra Autoridade eclesiástica, indicadas nos artigos 4-6 infra, em diálogo com o Dicastério. Em todo caso, não podendo jamais faltar uma particular atenção orientada ao bem comum de todo o Povo de Deus, «o Dicastério se reserva de qualquer forma […] a possibilidade de avaliar os elementos morais e doutrinais de tal experiência e o uso que se faz dela».[17] Não se deve ignorar que às vezes o discernimento pode ocupar-se também de delitos, manipulações das pessoas, danos à unidade da Igreja, proveitos econômicos indevidos, graves erros doutrinais etc., que poderiam provocar escândalos e minar a credibilidade da Igreja.

B. Conclusões

16. O discernimento dos presumidos fenômenos sobrenaturais poderá chegar a conclusões que se exprimirão normalmente em um dos termos indicados a seguir.

17. Nihil obstat — Mesmo se não se exprime nenhuma certeza sobre a autenticidade sobrenatural do fenômeno, reconhecem-se muitos sinais de uma ação do Espírito Santo “em meio”[18] a uma dada experiência espiritual, não tendo sido relevados, pelo menos até aquele momento, aspectos particularmente críticos ou arriscados. Por esta razão, encoraja-se o Bispo Diocesano a apreciar o valor pastoral e a promover a difusão dessa proposta espiritual, inclusive através de eventuais peregrinações a um lugar sacro.

18. Prae oculis habeatur — Ainda que se reconheçam importantes sinais positivos, percebem-se igualmente alguns elementos de confusão ou possíveis riscos que requerem, por parte do Bispo Diocesano, um atento discernimento e diálogo com os destinatários de uma dada experiência espiritual. Se existirem escritos ou mensagens, poderia ser necessário um esclarecimento doutrinal.

19. Curatur — Relevam-se diversos ou significativos elementos críticos, mas ao mesmo tempo já existe uma ampla difusão do fenômeno e uma presença de frutos espirituais a ele coligados e verificáveis. Desaconselha-se uma proibição a seu respeito, que poderia perturbar o Povo de Deus. Em todo caso, o Bispo Diocesano é solicitado a não encorajar esse fenômeno, a buscar expressões alternativas de devoção e, eventualmente, a reorientar seu perfil espiritual e pastoral.

20. Sub mandato — Os elementos críticos relevados não são ligados ao fenômeno em si, o qual é rico de elementos positivos, mas a uma pessoa, a uma família ou a um grupo de pessoas que fazem dele um uso impróprio. Utiliza-se uma experiência espiritual para uma particular e indevida vantagem econômica cometendo atos imorais ou desenvolvendo uma atividade pastoral paralela àquela já presente no território eclesiástico, sem aceitar as indicações do Bispo Diocesano. Neste caso, a condução pastoral do lugar específico em que se verifica o fenômeno é confiada ou ao Bispo Diocesano ou a uma outra pessoa delegada pela Santa Sé, a qual, quando não seja capaz de intervir diretamente, buscará alcançar um acordo razoável.

21. Prohibetur et obstruatur — Mesmo em presença de legítimos interesses e de alguns elementos positivos, os elementos críticos e os riscos são graves. Por isso, para evitar ulteriores confusões ou até mesmo escândalos que poderiam causar dano à fé das pessoas simples, o Dicastério pede ao Bispo Diocesano que declare publicamente que a adesão a esse fenômeno não é permitida e que ofereça contemporaneamente uma catequese para ajudar a compreender as razões da decisão e a reorientar as legítimas preocupações espirituais daquela parte do Povo de Deus.

22. Declaratio de non supernaturalitate — Neste caso o Bispo Diocesano é autorizado pelo Dicastério a declarar que o fenômeno é reconhecido como não sobrenatural. Esta decisão deve ser baseada sobre fatos e evidências concretos e provados. Por exemplo, quando um presumido vidente declara ter mentido, ou quando testemunhas credíveis fornecem elementos de juízo que permitem descobrir a falsificação do fenômeno, a intenção errada ou a mitomania.

23. À luz de quanto exposto acima, reafirma-se que normalmente nem o Bispo Diocesano, nem as Conferências Episcopais, nem o Dicastério declararão que estes fenômenos são de origem sobrenatural, mesmo nos casos em que se conceda um Nihil obstat (cfr. n. 11). Todavia, o Santo Padre poderá autorizar que se realize um procedimento a respeito.

II. Procedimentos a serem seguidos

A. Normas substanciais

Art. 1 – Compete ao Bispo Diocesano, em diálogo com a Conferência Episcopal nacional, examinar os casos de presumidos fenômenos sobrenaturais que tenham ocorrido no seu próprio território e formular o juízo final sobre eles, a ser submetido à aprovação do Dicastério, inclusive quanto à eventual promoção de um culto ou de uma devoção ligados a eles.

Art. 2 – Depois de ter investigado os eventos em questão, compete ao Bispo Diocesano transmitir ao Dicastério para a Doutrina da Fé, juntamente com o próprio voto, os resultados da investigação – realizada segundo as normas elencadas a seguir – e intervir segundo as indicações fornecidas pelo Dicastério. Compete ao Dicastério, em todo caso, avaliar o modo de proceder do Bispo Diocesano e aprovar ou não a determinação por ele proposta a ser atribuída ao caso específico.

Art. 3  § 1 – O Bispo Diocesano se absterá de dar qualquer declaração pública relativa à autenticidade ou sobrenaturalidade de tais fenômenos e de todo envolvimento com eles; não deve porém cessar de vigiar para intervir, se necessário, com celeridade e prudência, seguindo os procedimentos indicados pelas seguintes normas.

  § 2 – Se porventura, em correlação ao presumido evento sobrenatural, surgissem formas de devoção, mesmo sem um culto propriamente dito, o Bispo Diocesano tem o grave dever de iniciar o quanto antes uma acurada investigação canônica com o fim de salvaguardar a fé e prevenir abusos.

§ 3 – O Bispo Diocesano tenha particular cuidado em conter, com os meios à sua disposição, as manifestações religiosas confusas ou a divulgação de eventuais materiais relativos ao presumido fenômeno sobrenatural (por exemplo: lacrimações de imagens sacras, sudorações, sangramentos, mutações de Hóstias consagradas etc.), com o fim de não alimentar um clima sensacionalista (cfr. art. 10).

Art. 4 – Quando for implicada a competência de mais Bispos Diocesanos, seja em razão do lugar de domicílio das pessoas envolvidas no presumido fenômeno, seja em razão do lugar de difusão das formas de culto ou de devoção popular, tais Bispos, tendo consultado o Dicastério para a Doutrina da Fé, podem constituir uma Comissão interdiocesana que, presidida por um deles, proveja à instrutória segundo os artigos seguintes. A tal fim podem servir-se também da ajuda dos meios predispostos pela Conferência Episcopal.

Art. 5 – No caso em que os presumidos fatos sobrenaturais envolvam a competência de Bispos Diocesanos pertencentes à mesma Província Eclesiástica, o Metropolita, tendo consultado a Conferência Episcopal e o Dicastério para a Doutrina da Fé e com mandato deste último, pode assumir o encargo de constituir e presidir a Comissão referida no art. 4.

Art. 6 § 1 – Nos lugares em que se tenha constituído a Região Eclesiástica mencionada nos cânones 433-434 CIC e os presumidos fatos sobrenaturais envolverem aquele território, o Bispo Presidente peça ao Dicastério para a Doutrina da Fé o especial mandato para proceder.

§ 2 – Neste caso, os procedimentos seguirão, por analogia, o quanto previsto no art. 5, observando-se as indicações recebidas do Dicastério.

B. Normas de procedimento

Fase instrutória

Art. 7 § 1 – Toda vez que o Bispo Diocesano tenha notícia, ao menos verossímil, de fatos de presumida origem sobrenatural relativos à fé católica, ocorridos no território de sua competência, informe-se com prudência, pessoalmente ou através de um Delegado, sobre os eventos e sobre as circunstâncias e tenha o cuidado de recolher tempestivamente todos os elementos úteis para uma primeira avaliação.

§ 2  Se os fenômenos podem ser facilmente geridos quanto às pessoas diretamente envolvidas e não se percebe nenhum perigo para a comunidade, não se proceda ulteriormente, consultando-se previamente o Dicastério, ainda que permaneça o dever de vigilância.

§ 3  No caso em que forem envolvidas pessoas que dependem de diversos Bispos Diocesanos, sejam escutados os pareceres destes Bispos. Quando um presumido fenômeno tem origem em um lugar e comporta ulteriores efeitos em outras sedes, poderá ser avaliado diversamente nestas últimas. Em tal caso, cada Bispo Diocesano tem sempre o poder de decidir, no âmbito do próprio território, de acordo com o que considera pastoralmente prudente, consultando-se previamente o Dicastério.

§ 4 – Se porventura no presumido fenômeno fossem envolvidos objetos variados, o Bispo Diocesano, pessoalmente ou através de um Delegado, pode dispor que sejam colocados em um lugar seguro e custodiado, enquanto se aguardam esclarecimentos sobre o caso. Quando se trata de um presumido milagre eucarístico, as espécies consagradas devem ser conservadas em um lugar reservado e de modo adequado.

§ 5 – Quando os elementos recolhidos parecerem suficientes, o Bispo Diocesano decida sobre o encaminhamento da fase de avaliação do fenômeno, para propor ao Dicastério no seu Votum um juízo conclusivo segundo o superior interesse da fé da Igreja, a fim de salvaguardar e promover o bem espiritual dos fiéis.

Art. 8 § 1 – O Bispo Diocesano[19] constitua uma Comissão de investigação, que entre seus membros deve constar ao menos de um teólogo, um canonista e um perito escolhido segundo a natureza do fenômeno,[20] cuja finalidade não é somente chegar a uma declaração sobre a veridicidade dos fatos, mas aprofundar cada aspecto do evento, de modo a fornecer ao Bispo Diocesano todo elemento útil para uma avaliação.

§ 2 – Os membros da Comissão de investigação sejam de íntegra fama, de fé segura, de doutrina certa, de provada prudência e não sejam envolvidos, nem direta nem indiretamente, com as pessoas ou com os fatos objeto de discernimento.

§ 3 – O mesmo Bispo Diocesano nomeie um Delegado, escolhido entre os membros da Comissão ou externo a esses, com a tarefa de coordenar e presidir os trabalhos e de predispor as sessões.

§ 4 – O Bispo Diocesano ou o seu Delegado nomeie também um Notário com a tarefa de assistir às reuniões e de redigir as atas dos interrogatórios e de todo outro ato da Comissão. Ao Notário compete cuidar para que as atas sejam devidamente assinadas e que todos os atos objeto da instrutória sejam recolhidos e, bem ordenados, sejam custodiados no arquivo da Cúria. O Notário provê ainda à convocação e prepara a documentação das sessões.

 § 5 – Todos os membros da Comissão são obrigados a manter o segredo de ofício, prestando o juramento.

Art. 9 § 1  Os interrogatórios sejam realizados em analogia a quanto prescrito pela normativa universal (cfr. can. 1558-1571 CIC; can. 1239-1252 CCEO) e sejam conduzidos sobre a base de perguntas formuladas pelo Delegado, depois de um adequado confronto com os outros membros da Comissão.

§ 2  A deposição juramentada das pessoas envolvidas nos presumidos fatos sobrenaturais seja prestada na presença da inteira Comissão ou ao menos de alguns membros. Quando os fatos do caso se baseiam sobre um testemunho ocular, é preciso examinar as testemunhas o quanto antes possível, para beneficiar-se da proximidade temporal ao evento.

§ 3  Os confessores das pessoas envolvidas, que afirmam terem sido protagonistas de fatos de origem sobrenatural não podem testemunhar sobre a inteira matéria que conheceram através da confissão sacramental.[21]

§ 4  Os diretores espirituais das pessoas envolvidas, que afirmam terem sido protagonistas de fatos de origem sobrenatural não podem testemunhar sobre a matéria que conheceram através da direção espiritual, a menos que as pessoas interessadas autorizem por escrito a deposição.

Art. 10 – Se no material instrutório confluírem textos escritos ou outros elementos (vídeo, áudio, fotográfico) divulgados com os meios de comunicação, tendo como autor uma pessoa envolvida no presumido fenômeno, tal material seja submetido a um acurado exame feito por especialistas (cfr. art. 3 §3), cujo resultado será inserido na documentação instrutória pelo Notário.

Art. 11 § 1 – Quando os fatos extraordinários mencionados no art. 7 §1 se referirem a objetos de natureza variada (cfr. art. 3 §3), a Comissão encaminhe uma acurada investigação sobre tais objetos através dos especialistas que a compõem ou de outros, individuados para o caso, de modo a se chegar a uma avaliação de caráter científico, doutrinal e canonístico, que seja de ajuda à sucessiva avaliação.   

§ 2 – Quando eventuais amostras de natureza orgânica relacionadas ao evento extraordinário exigirem particulares exames de laboratório e, em todo caso, de tipo técnico-científico, a Comissão confie o estudo a especialistas que sejam realmente peritos na área própria de tal investigação.

§ 3 – No caso em que o fenômeno se refira ao Corpo e ao Sangue do Senhor sob os sinais sacramentais do pão e do vinho, tenha-se uma particular atenção para que as eventuais análises sobre os mesmos não deem ocasião a uma falta de respeito para com o Santíssimo Sacramento, garantindo a devoção a ele devida.

§ 4 – Quando os presumidos fatos extraordinários causarem problemas de ordem pública, o Bispo Diocesano colabore com a autoridade civil competente.

Art. 12 – Quando os presumidos eventos sobrenaturais se prolongarem durante a instrutória e a situação aconselhar intervenções prudenciais, o Bispo Diocesano não hesite em agir, mediante aqueles atos de bom governo que evitem manifestações descontroladas ou duvidosas de devoção ou a promoção de um culto fundado sobre elementos ainda não definidos.

Fase avaliativa

Art. 13 – O Bispo Diocesano, com a ajuda dos membros da Comissão por ele instituída, avalie aprofundadamente o material recolhido, segundo os critérios principais de discernimento supracitados (cfr. n. 10-23) e os critérios positivos e negativos que seguem, que devem ser aplicados de modo combinado.

Art. 14 – Entre os critérios positivos, não se deixe de julgar:

1°. A credibilidade e a boa fama das pessoas que afirmam ser destinatárias de eventos sobrenaturais ou ser diretamente envolvidas em tais fatos, bem como das testemunhas escutadas. Em particular, considere-se o equilíbrio psíquico, a honestidade e a retidão na vida moral, a sinceridade, a humildade e a docilidade para com a autoridade eclesiástica, a disponibilidade em colaborar com esta, a promoção de um espírito de autêntica comunhão eclesial.

2°. A ortodoxia doutrinal do fenômeno e da eventual mensagem a ele conexa.

3°. O caráter imprevisível do fenômeno, a partir do qual apareça claramente que não é fruto da iniciativa das pessoas envolvidas.

4°. Os frutos de vida cristã. Entre estes, verifique-se a presença do espírito de oração, conversões, vocações sacerdotais e à vida religiosa, testemunhos de caridade, como também uma sadia devoção e frutos espirituais abundantes e constantes. Avalie-se a contribuição de tais frutos no crescimento da comunhão eclesial.

Art. 15 – Entre os critérios negativos, verifiquem-se acuradamente:

1°. A eventual presença de um erro manifesto acerca do fato.

2°. Eventuais erros doutrinais. A propósito, é necessário considerar a possibilidade que o sujeito que afirma ser destinatário de eventos de origem sobrenatural tenha acrescentado, também inconscientemente, a uma revelação privada elementos puramente humanos ou algum erro de ordem natural, não devido à má intenção, mas à percepção subjetiva do fenômeno.

3°. Um espírito sectário, que gera divisão no tecido eclesial.

4°. Uma busca evidente de lucro, poder, fama, notoriedade social, interesse pessoal ligado diretamente ao fato.

5°. Atos gravemente imorais realizados pelo sujeito ou por seus seguidores no momento ou em ocasião do fato.

6°. Alterações psíquicas ou tendências psicopáticas presentes no sujeito, que possam ter exercido influência sobre o presumido fato sobrenatural, ou senão psicose, histeria coletiva ou outros elementos reconduzíveis a um horizonte patológico.

Art. 16 – Deve-se considerar como sendo de particular gravidade moral o uso de eventuais experiências sobrenaturais ou de elementos místicos reconhecidos como meio ou pretexto para exercer domínio sobre as pessoas ou cometer abusos.

Art. 17 – A avaliação dos resultados instrutórios, no caso dos presumidos fenômenos sobrenaturais mencionados no art. 7 §1, realize-se com acurada diligência, seja quanto às pessoas envolvidas, seja ao exame técnico-científico eventualmente realizado.

Fase conclusiva

Art. 18 – Concluída a instrutória e examinados atentamente os eventos e as informações recolhidas,[22] considerados também os efeitos que os presumidos fatos tenham provocado no Povo de Deus a ele confiado, com especial atenção à fecundidade dos frutos espirituais gerados pela eventual nova devoção, o Bispo Diocesano, com a ajuda do Delegado, prepare um relatório sobre o presumido fenômeno. Tendo em conta todos os fatos do caso, positivos e negativos, redija seu Votum pessoal a respeito, propondo ao Dicastério seu juízo conclusivo, normalmente segundo uma das seguintes fórmulas:[23]

1°. Nihil obstat

2°. Prae oculis habeatur

3°. Curatur

4°. Sub mandato

5°. Prohibetur et obstruatur

6°. Declaratio de non supernaturalitate

Art. 19 – Terminada a investigação, sejam transmitidos ao Dicastério para a Doutrina da Fé todos os atos relativos ao caso examinado para a aprovação final.

Art. 20 – O Dicastério procederá à avaliação dos atos do caso, examinando os elementos morais e doutrinais de tal experiência e o uso que deles foi feito, juntamente com o Votum do Bispo Diocesano. O Dicastério poderá requerer ao Bispo Diocesano ulteriores informações ou pedir outros pareceres, ou senão, em situações extremas, proceder a um novo exame do caso, distinto daquele realizado pelo Bispo Diocesano. À luz dessa avaliação, confirmará ou não a determinação proposta pelo Bispo Diocesano.

Art. 21 § 1 – Recebida a resposta do Dicastério e em consonância com este, salvo diversa indicação por parte do mesmo, o Bispo Diocesano dará a conhecer, com clareza, ao Povo de Deus o juízo sobre os fatos em questão.

§ 2 – O Bispo Diocesano terá o cuidado de informar a Conferência Episcopal nacional sobre a determinação aprovada pelo Dicastério.

Art. 22 § 1 – No caso em que se conceda um Nihil obstat (cfr. art. 18, 1°), o Bispo Diocesano dará a máxima atenção à correta apreciação dos frutos derivantes do fenômeno examinado, prosseguindo a vigilância sobre eles, com prudência. Neste caso, o Bispo Diocesano indicará claramente, mediante Decreto, a natureza da autorização e os limites de um eventual culto permitido, precisando que os fiéis «são autorizados a dar [...], de modo prudente, a sua adesão».[24]

§ 2 – O Bispo Diocesano ainda estará atento a que os fiéis não considerem nenhuma das determinações acima como uma aprovação do caráter sobrenatural do fenômeno.

§ 3 –O Dicastério se reserva, em todo caso, a possibilidade de intervir novamente, seguindo o desenvolvimento do fenômeno.

Art. 23 § 1 – No caso em que se adote uma determinação cautelar (cfr. art. 18, 2°-4°) ou negativa (cfr. art. 18, 5°-6°), esta deve ser publicada formalmente pelo Bispo Diocesano, depois da aprovação do Dicastério. Ela seja redigida com uma linguagem clara e compreensível a todos, tendo-se avaliado a oportunidade de tornar conhecidas as razões da decisão tomada e os fundamentos doutrinais da fé católica implicados, de modo a favorecer o crescimento de uma sadia espiritualidade.

§ 2 – Ao comunicar uma eventual decisão negativa, o Bispo Diocesano pode omitir notícias que comportariam injusto prejuízo às pessoas envolvidas.

§ 3 – Sobre uma eventual continuação do divulgar-se de escritos ou mensagens, os legítimos Pastores vigiem, segundo o can. 823 CIC (cfr. can. 652 § 2; 654 CCEO), reprovando os abusos e tudo quanto produza dano à reta fé e aos bons costumes ou, de qualquer modo, seja perigoso para o bem das almas. A tal fim, pode-se recorrer à imposição dos meios ordinários, entre os quais os preceitos penais (cfr. can. 1319 CIC; can. 1406 CCEO).

§ 4 – O recurso mencionado no § 3 é particularmente oportuno no caso em que os comportamentos a serem reprovados se refiram a objetos ou lugares correlatos aos presumidos fenômenos sobrenaturais.

Art. 24 – Qualquer que seja a determinação aprovada, o Bispo Diocesano, pessoalmente ou através de um Delegado, tem o dever de continuar a vigiar sobre o fenômeno e sobre as pessoas envolvidas, exercitando especificamente o seu poder ordinário.

Art. 25 – No caso em que os presumidos fenômenos sobrenaturais forem reconduzíveis com certeza a uma deliberada intenção mistificadora e enganadora para fins diversos (por exemplo, lucro e outros interesses pessoais), o Bispo Diocesano aplicará, avaliando caso a caso, a vigente normativa canônica penal.

Art. 26 – O Dicastério para a Doutrina da Fé tem a faculdade de intervir motu proprio em qualquer momento e estado do discernimento relativo aos presumidos fenômenos sobrenaturais.

Art. 27 – As presentes Normas substituem integralmente as precedentes, de 25 de fevereiro de 1978.

O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida ao subscrito Prefeito e ao Secretário para a Seção Doutrinal do Dicastério para a Doutrina da Fé, no dia 4 de maio de 2024, aprovou as presentes Normas, deliberadas na Sessão Ordinária deste Dicastério em 17 de abril de 2024, e ordenou a sua publicação, estabelecendo que elas entrem em vigor aos 19 de maio de 2024, na solenidade de Pentecostes.

Dado em Roma, junto à sede do Dicastério para a Doutrina da Fé, aos 17 de maio de 2024.

Víctor Manuel Card. Fernández
Prefeito

Mons. Armando Matteo
Secretário
para a Seção Doutrinal

Ex Audientia Die 04.05.2024
Franciscus

_____________________________________

Índice

Apresentação

Na escuta do Espírito que opera no fiel Povo de Deus
A recente revisão
Razões da nova redação das
Normas
Novos aspectos
Reconhecimento de uma ação do Espírito
O envolvimento e o acompanhamento do Dicastério

Introdução

I. Orientações gerais

A. Natureza do discernimento
B. Conclusões

II. Procedimento a ser seguido

A. Normas substanciais
B. Normas de procedimento

Fase instrutória
Fase avaliativa
Fase conclusiva

 


[1] S. João da Cruz, Noite escura II, 17, 6, in Id., Obras completas, Petrópolis, Vozes, 20027.

[2] Id., Cântico espiritual B, prol., 1.

[3] Id., Noite escura II, 17, 8.ù

[4] Id., Chama viva de amor B III, 47.

[5] Bento XVI, Exort. Ap. Verbum Domini (30 de setembro de 2010), n. 14: AAS 102 (2010), p. 696.

[6] K. Rahner, Visioni e profezie. Mistica ed esperienza della trascendenza, Milano, Vita e Pensiero, 19952, pp. 95-96.

[7] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum (18 de novembro de 1965), n. 4: AAS 58 (1966), p. 819.

[8] S. João da Cruz, Subida do monte Carmelo, 2, 22, 3-5, in Id., Obras completas, Petrópolis, Vozes, 20027; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 65.

[9] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum (18 de novembro de 1965), n. 5: AAS 58 (1966), p. 819.

[10] S. João da Cruz, Cântico espiritual B, 37, 4.

[11] Catecismo da Igreja Católica, n. 67. Cfr. Congregação para a Doutrina da Fé, A mensagem de Fátima (26 de junho de 2000), Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2000.

[12] Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium (7 de dezembro de 1965), nn. 39-42: AAS 57 (1965), pp. 44-49; Francisco, Exort. Ap. Gaudete et exsultate (19 de março 2018), nn. 10-18, 143: AAS 110 (2018), pp. 1114-1116, 1150-1151; Id., Carta Ap. Totum amoris est (28 de dezembro de 2022), passim: L’Osservatore Romano, 28 de dezembro de 2022, pp. 8-10.

[13] Francisco, Exort. Ap. C’est la confiance (15 de outubro de 2023), n. 35: L’Osservatore Romano, 16 de outubro de 2023, p. 3.

[14] Cfr. Francisco, Exort. Ap. Gaudete et exsultate (19 de março de 2018), nn. 166 e 173: AAS 110 (2018), pp. 1157 e 1159-1160.

[15] S. João Paulo II, Mensagem aos participantes do Congresso mundial dos Movimentos eclesiais promovido pelo Pontifício Conselho para os Leigos (27 de maio de 1998), n. 4: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXI 1: 1998, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2000, p. 1064. Cfr. Bento XVI, Exort. Ap. Verbum Domini (30 de setembro de 2010), n. 14: AAS 102 (2010), p. 696.

[16] Sacra Congregatio Rituum, Decretum beatificationis et canonizationis Servae Dei Gemmae Galgani, virginis saecularis: AAS 24 (1932), p. 57. «[Pio XI] quis de bom grado insistir sobre as virtudes heróicas desta moça, tanto inocente quanto penitente, mas sem que com o presente decreto (coisa que normalmente jamais acontece) se emita um juízo sobre os carismas preternaturais da Serva de Deus».

[17] Dicastério para a Doutrina da Fé, Carta ao Bispo de Como acerca de um presumido vidente (25 de setembro de 2023).

[18] A expressão “em meio a” não quer dizer “por meio de” ou “através de”, mas indica que em um determinado contexto, não necessariamente de origem sobrenatural, o Espírito Santo opera coisas boas.

[19] Ou outra autoridade eclesiástica segundo os artigos 4-6 supra.

[20] Por exemplo: um médico, melhor se for especializado em algumas disciplinas conexas, como psiquiatria, hematologia etc.; um biólogo; um químico etc.

[21] Cfr. can. 983 § 1; 1550 § 2, 2° CIC; can. 733 § 1; 1231 § 1, 2° CCEO; Congregação para as Causas dos Santos, Instr. Sanctorum Mater para a realização dos inquéritos diocesanos ou das eparquias nas causas dos santos (17 de maio de 2007), art. 101-102: AAS 99 (2007), p. 494; Penitenciaria Apostólica, Nota sobre a importância do foro interno e a inviolabilidade do sigilo sacramental (29 de junho de 2019): AAS 111 (2019), pp. 1215-1218.

[22] Todas as provas testemunhais sejam detalhadamente avaliadas, aplicando todos os mencionados critérios, também à luz da normativa canônica sobre a força probatória dos testemunhos (cfr. ex analogia can. 1572 CIC; can. 1253 CCEO).

[23] Cfr. supra, n. 17-22.

[24] Bento XVI, Exort. Ap. Verbum Domini (30 de setembro de 2010), n. 14: AAS 102 (2010), p. 696. No mesmo parágrafo afirma-se: «A aprovação eclesiástica de uma revelação privada indica essencialmente que a relativa mensagem não contém nada que contraste com a fé e os bons costumes; é lícito torná-la pública e os fiéis são autorizados a dar a ela, de modo prudente, a sua adesão. […] É uma ajuda que é oferecida, mas da qual não é obrigatório fazer uso. Em todo caso, deve tratar-se de um nutrimento da fé, da esperança e da caridade, que são para todos a via permanente da salvação».