|
[ IT
-
PT ]
Cardeal Victor Manuel Fernández
Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé
Entrevista ao Prefeito sobre abuso espiritual.
Em Alfa y Omega (Madrid), 23 de Janeiro de 2025.
O que o levou a propor o estudo da tipificação do crime de “abuso espiritual”?
Diversos Dicastérios recebiam frequentemente denúncias ou reclamações sobre
situações em que elementos espirituais eram usados como desculpa ou motivação
para ter relações sexuais (entre um presbítero e uma catequista, por
exemplo). Nesses casos, percebe-se uma manipulação das pessoas que confiam em um
guia espiritual e, ao mesmo tempo, um abuso da beleza espiritual de nossa fé
para obter sexo.
Por que o senhor considera que essa lacuna legal deve ser abordada no Código de
Direito Canônico?
Porque não há um crime tipificado sobre esse ponto e é necessário e urgente
abordá-lo, pois descobrimos que, infelizmente, não se trata de algo raro.
Para resolver a questão, os canonistas recorrem ao cânone 1.399, porque
há uma “violação externa de uma lei divina” (neste caso, uma falta contra o
sexto mandamento) e uma “necessidade de prevenir ou reparar escândalos”. Mas
quando um crime grave se torna muito frequente, não é conveniente ter que se
referir a um cânone tão geral que, em alguns casos, torna difícil aplicar uma
pena severa ou um preceito penal importante.
Como definiria este tipo de abuso em termos canônicos e pastorais?
Este é o ponto mais complexo, e é precisamente o que o novo grupo de estudo terá
que precisar. Porque também não se pode tipificar um crime com pouca precisão,
de modo que qualquer falta possa ser denunciada como crime grave ou passível de
pena máxima. Isso criaria uma situação caótica de “todos contra todos”, uma
suspeita generalizada ou o risco de adotar uma ideologia de cancelamento. Por
outro lado, hoje se tende a pedir rapidamente a “expulsão” da Igreja, como se
não houvesse qualquer proporcionalidade nos crimes. Quando tudo parece ter a
mesma gravidade, acaba-se cometendo uma injustiça diante dos casos
particularmente graves que devem ser enfrentados com maior força.
Este é um problema geral, mas neste tema haveria um risco peculiar. Por exemplo,
vejamos as seguintes frases: “Certamente ele me disse essas palavras de São
Bernardo porque queria fazer sexo”, “ele me transmitiu uma ideia de Deus que me
levou a depender dele”, “ele me indicou uma tarefa espiritual estranha porque
sabia que isso iria preparar o caminho para uma solicitação sexual” ou “ele me
deu um abraço muito íntimo com a desculpa de que representava Jesus”. Portanto —
concluem — ele deveria ser expulso da Igreja. São coisas que facilmente ganham
grande repercussão na mídia, mas nem sempre é fácil prová-las adequadamente, e
menos ainda aplicar uma pena máxima a todos os casos. Mas há casos de especial
perversidade, como chegar a ter relações sexuais em locais sagrados, como se
isso permitisse uma relação especial com Deus.
Como funcionará o grupo de estudo?
O novo grupo de estudo, presidido por Filippo Iannone [prefeito do Dicastério
para os Textos Legislativos, N. d. R.], está estudando duas possibilidades: uma
seria tipificar um crime, a outra seria interpretar as leis já existentes,
explicitando os conteúdos relacionados ao abuso espiritual. Não posso antecipar
conclusões nem oferecer mais detalhes, pois isso seria invadir o trabalho de
outros.
Por enquanto, há duas pessoas trabalhando de forma discreta para coletar os
antecedentes existentes, seja sob a denominação “falso misticismo” ou sob outros
nomes. Coletar casos ou histórias pode ajudar a precisar melhor os termos e o
alcance de uma tipificação ou a explicitar — com uma interpretação autêntica do
Dicastério para os Textos Legislativos — quais normas já existentes cobrem essas
situações.
A nota com a qual isso foi anunciado falava em «evitar a expressão demasiado
ampla e polissêmica de “falso misticismo”». Por quê?
Isso foi brevemente esclarecido na nota divulgada pelo Dicasterio para a
Doutrina da Fé ao anunciar o novo grupo de estudo. No dicasterio, essa
expressão é usada sobretudo em um sentido doutrinário, que era seu sentido
original. Por isso, é problemático recorrer, para fazer justiça, à expressão
“falso misticismo”, que não é tipificada como crime e tem, acima de tudo, um
sentido próprio da teologia espiritual. Qual é esse sentido? Chama-se falso
misticismo a uma proposta espiritual (por exemplo, a espiritualidade de um
movimento ou de um agrupamento) que não está em harmonia com a doutrina cristã.
Nesse sentido, Pio XII se referia ao jansenismo como “falso misticismo” porque
não assumia plenamente a fé no mistério da encarnação. Ali, ele não se referia a
crimes. É rejeitado como uma proposta espiritual que tem aparência de misticismo
cristão, mas na realidade é “falsa”. E isso é da competência do Dicastério para
a Doutrina da Fé.
Mas não convém usar a mesma expressão para condenar um erro teológico espiritual
(que não é em si mesmo um crime) e também para um crime grave. Corre-se o risco
de confundir coisas muito diferentes.
Então, por que essa expressão é usada no âmbito canônico?
Alguns canonistas, especialmente na Espanha, recorrem à expressão “falso
misticismo” para dar um conteúdo teológico ao uso do cânon 1.399 ou para indicar
uma gravidade particular de outros crimes (como a solicitação na confissão, a
profanação da Eucaristia, o abuso de autoridade, etc.). Isso é facilitado pelo
artigo 16 das novas
Normas para o discernimento de supostos fenômenos sobrenaturais, onde se atribui especial gravidade ao uso de “elementos místicos” para
“exercer domínio sobre as pessoas ou cometer abusos”. É um ponto que eu mesmo
quis acrescentar a estas Normas porque dá conteúdo à “especial gravidade”
indicada pelo cânone 1.399, sem necessidade de usar a expressão “falso
misticismo”. Mas os canonistas precisam da tipificação de um delito com outro
nome — “abuso espiritual”, por exemplo — para não terem que recorrer sempre ao
cânon 1.399 na hora de julgar um delito tão grave, escandaloso e frequente, e
para evitar as confusões que poderia gerar o sentido amplo e polissêmico da
expressão “falso misticismo”.
Quais são os elementos essenciais para distinguir um fenômeno místico autêntico
de um falso?
A expressão “fenômeno místico” parece referir-se a uma aparição, uma visão ou
fenômenos extraordinários desse tipo. Mas, na realidade, estamos falando aqui de
algo mais amplo: porque “falso misticismo” é qualquer proposta espiritual que
não seja fiel a algum elemento da autêntica fé cristã. Em algumas
espiritualidades novas, costuma haver erros antropológicos, cristológicos,
eclesiológicos. Por exemplo, na história houve condenações a movimentos
espirituais que se tornaram panteístas, que propunham uma “fusão” com Deus, que
rejeitavam a humanidade de Cristo na espiritualidade ou que negavam o valor da
oração de súplica, por exemplo. São casos distintos do “falso misticismo” que o
DDF julga na Seção doutrinária como erros, não como crimes. Às vezes, essas
coisas aparecem na hora de dar o nulla osta a causas de beatificação, por
exemplo.
Mas quando falamos de um possível crime de “abuso espiritual”, não é necessário
que haja erros, que a proposta espiritual usada como base seja “falsa”. Até
mesmo o Catecismo da Igreja ou os escritos de São João da Cruz poderiam ser
usados como desculpa para manipular outra pessoa e cometer um crime de “abuso
espiritual”.
Que desafios essa tipificação penal apresenta no discernimento de supostos
fenômenos sobrenaturais?
A relação com esses fenômenos ocorre porque, em alguns casos, os próprios
supostos videntes, por exemplo, foram abusadores ou incorporaram elementos
sexuais aos encontros “espirituais”. Ou porque os promotores dessa devoção
fizeram uso inadequado e imoral dela.
Como proteger os direitos das pessoas acusadas, evitando julgamentos injustos ou
mal-entendidos nesse âmbito?
Este tema, como qualquer outro, pode ser usado para se vingar de alguém. Também
se podem supor intenções que não existem, ou uma pessoa muito sensível, num
momento difícil da sua vida, pode interpretar mal algo que não era realmente
assim ou que não era nessa medida. Mas um processo canônico adequado protege a
todos, às supostas vítimas e ao suposto criminoso. Basta cuidar das garantias
previstas pela lei. A possibilidade de recurso ou apelação existe precisamente
porque erros podem ser cometidos, mas há uma possibilidade de corrigi-los.
Há urgência em resolver o caso de Rupnik, por exemplo, que está atrasado?
Na verdade, penso em muitos outros casos, alguns talvez mais graves, mas menos
divulgados pela mídia. Não podemos pensar em uma nova lei apenas para um caso,
porque isso limitaria a visão e prejudicaria a objetividade do trabalho.
Com relação ao caso de Rupnik, o Dicastério concluiu a etapa de coleta de informações que estavam em locais
muito diferentes e fez uma primeira análise. Agora estamos trabalhando para
constituir um tribunal independente que passe para a última fase por meio de um
processo judicial penal. Em casos como este, é importante encontrar as pessoas
mais adequadas e que aceitem.
Como espera que essa tipificação sirva para prevenir abusos e restaurar a
confiança dos fiéis?
Penso que ajudará os fiéis a perceber o cuidado maternal da Igreja. Mas também
ajudará a evitar aquela forma perigosa de clericalismo que leva alguns
sacerdotes a acreditar que estão autorizados a tudo por causa da “sublimidade”
de sua consagração. Nesse sentido, creio que estamos em um ponto de inflexão.
De qualquer forma, será necessário ter cuidado para que isso não produza um
efeito indesejado de desconfiança em relação a tudo o que é espiritual, como
ocorreu na história com a condenação de certos movimentos espirituais.
Que mensagem gostaria de enviar àqueles que sofreram esse tipo de abuso?
Que me entristece especialmente que alguém os tenha feito sofrer fazendo uso de
coisas tão belas e sublimes. Pode ter sido por malícia e perversão, ou por
doença, ou pela má formação espiritual e humana que receberam. De qualquer
forma, é uma ferida dolorosa no Corpo de Cristo.
Sempre podemos trilhar um caminho de cura e lembrar que há um tesouro
espiritual na Igreja que não devemos perder, embora alguns o tenham distorcido
ou deformado. Cristo nos ama, embora alguns tenham desfigurado seu rosto.
E se nos dói pensar que outros possam sofrer o mesmo que sofremos, nos consola
ver que o Espírito Santo está despertando na Igreja uma forte consciência sobre
a dignidade inviolável de cada pessoa e sobre os limites no exercício do
ministério sacerdotal e da liderança na Igreja.
|