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VIAGEM APOSTÓLICA À REPÚBLICA DOMINICANA

ABERTURA DOS TRABALHOS DA IV CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO

 DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

Santo Domingo, 12 de Outubro de 1992  

 

Queridos Irmãos no Episcopado,
Amados sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos:

1. Sob a guia do Espírito Santo, a quem acabámos de invocar fervorosamente para que ilumine os trabalhos desta importante Assembléia eclesial, inauguramos esta IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, pondo nossos olhos e nosso coração em Jesus Cristo, “o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade” (Hb 13, 8). Ele é o Princípio e o Fim, o Alfa e o Ômega (cf. Ap 21, 6), a plenitude da Evangelização, “o primeiro e o maior dos evangelizadores. Ele foi isso mesmo até ao fim, até à perfeição, até ao sacrifício da sua vida terrena”(Evangelii nuntiandi, 7).

Sentimos muito viva nesta celebração a presença de Jesus Cristo, Senhor da História. Em Seu nome se reuniram os Bispos da América Latina nas Assembléias anteriores – Rio de Janeiro em 1955; Medellín em 1968; Puebla em 1979 –, e em Seu mesmo nome nos reunimos agora em Santo Domingo, para tratar o tema “Nova Evangelização, Promoção humana, Cultura cristã”, que engloba as grandes questões que, de aqui para o futuro, deve enfrentar a Igreja diante das novas situações que emergem na América Latina e no mundo.

Esta, queridos Irmãos, é uma hora de graça para todos nós e para a Igreja que peregrina na América. Na verdade, para a Igreja universal que nos acompanha com sua oração, com essa comunhão profunda de corações que o Espírito Santo gera em todos os membros do único Corpo de Cristo. Hora de graça e também de grande responsabilidade. Diante dos nossos olhos já se vislumbra o terceiro milênio. E se a Providência divina nos convocou para Lhe dar graças pelos quinhentos anos de fé e de vida cristã no Continente americano, com maior razão podemos dizer que nos convocou também para renovar-nos interiormente, e para “distinguir os sinais dos tempos”(cf. Mt 16, 3). Na verdade, a chamada à nova evangelização, é antes de tudo uma chamada à conversão. De fato, mediante o testemunho de uma Igreja cada vez mais fiel à sua identidade e mais viva em todas as suas manifestações, os homens e os povos poderão continuar a encontrar Jesus Cristo e, n’Ele, a verdade da sua vocação e da sua esperança, o caminho em direção a uma humanidade melhor.

Olhando para Cristo, “com o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus” (Hb 12, 2), seguimos a senda percorrida pelo Concílio Vaticano II, cujo XXX aniversário da sua inauguração foi ontem lembrado. Daí que, ao inaugurar esta magna Assembléia, desejo recordar aquelas expressivas palavras pronunciadas pelo meu venerável predecessor, o Papa Paulo VI, na abertura da segunda sessão conciliar:

“Cristo!
Cristo, nosso princípio.
Cristo, nossa vida e nosso guia.
Cristo, nossa esperança e nosso fim...

Que não desça sobre esta Assembléia outra luz, a não ser a luz de Cristo, luz do mundo.
Que nenhuma outra verdade atraia a nossa mente, fora das palavras do Senhor, único Mestre.
Que não tenhamos outra aspiração, que não seja o desejo de Lhe sermos absolutamente fiéis.
Que nenhuma outra esperança nos sustente, a não ser aquela que, mediante a Sua palavra, conforta a nossa debilidade...”.

I. JESUS CRISTO ONTEM, HOJE E SEMPRE

2. Esta Conferência reúne-se para celebrar Jesus Cristo, para dar graças a Deus por Sua presença nestas terras americanas, donde, faz hoje 500 anos, começou a difundir-se a mensagem da salvação; reúne-se para celebrar a implantação da Igreja que, durante estes cinco séculos, tão abundantes frutos de santidade e de amor deu ao Novo Mundo. Jesus Cristo é a verdade eterna que se manifestou na plenitude dos tempos. E precisamente, para transmitir a Boa Nova a todos os povos, fundou a Sua Igreja com a missão específica de evangelizar: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura" (Mc 16,15). Pode-se dizer que nestas palavras está contida a solene proclamação da evangelização. Assim, pois, desde o dia em que os Apóstolos receberam o Espírito Santo, a Igreja recebeu a tarefa da Evangelização. São Paulo o exprime numa frase lapidar e emblemática: “Evangelizare Iesum Christum"; “Anunciar Jesus Cristo" (Gl 1,16). Foi o que fizeram os discípulos do Senhor, em todos os tempos e em todas as latitudes do mundo.

3. Neste singular processo, o ano de 1492 encerra uma data chave. Com efeito, no dia 12 de outubro – faz hoje exatamente cinco séculos – o Almirante Cristóvão Colombo com suas três caravelas procedentes da Espanha, chegou a estas terras e nelas fincou a cruz de Cristo. No entanto, a evangelização propriamente dita começou com a segunda viagem dos descobridores, que vieram acompanhados dos primeiros missionários. Iniciava-se assim a semeadura do dom precioso da fé. E como não dar graças a Deus por ela, junto convosco, queridos Irmãos Bispos, que hoje tornais presentes aqui em Santo Domingo todas as Igrejas particulares da América Latina? Como não dar graças pela semente plantada ao longo destes cinco séculos por tantos e tão intrépidos missionários!

Com a chegada do Evangelho à América, a história da salvação se expande, cresce a família de Deus, multiplica-se “para a glória de Deus o número dos que Lhe dão graças" (2Cor 4,15). Os povos do Novo Mundo eram “povos novos...totalmente desconhecidos para o Velho Mundo até ao ano de 1492", porém, “eram conhecidos desde toda a eternidade por Deus, e por ele sempre abraçados com a paternidade que o Filho revelou na plenitude dos tempos" (Gl 4,4) (Homilia, 1º de janeiro de 1992). Nos povos da América, Deus escolheu para Si um novo povo, incorporou-o ao Seu desígnio redentor, fazendo-o participar do Seu Espírito. Mediante a evangelização e a fé em Cristo, Deus renovou Sua aliança com a América Latina. Demos, pois, graças a Deus pela plêiade de evangelizadores que deixaram sua pátria e deram sua vida para semear no Novo Mundo a vida nova da fé, da esperança e do amor. O seu móbil não era a lenda do “Eldorado", nem mesmo interesses pessoais, mas a chamada urgente a evangelizar irmãos que não conheciam a Jesus Cristo. Eles anunciaram “a bondade de Deus nosso Salvador e o seu amor pelos homens" (Tt 3,4), a povos que ofereciam aos seus deuses inclusive sacrifícios humanos. Eles testemunharam, com a sua vida e com a sua palavra, a humanidade que brota do encontro com Cristo. Pelo seu testemunho e sua pregação, o número de homens e mulheres, que se abriam à graça de Cristo, multiplicou-se “como as estrelas do céu e inumerável como as areias das praias" (Hb 11,12).

4. Desde os primeiros passos da evangelização, a Igreja Católica, movida pela fidelidade ao Espírito de Cristo, foi defensora infatigável dos índios, protetora dos valores que havia em suas culturas, promotora de humanidade diante dos abusos de colonizadores, às vezes sem escrúpulos. A denúncia das injustiças e das violações feita por Montesinos, Las Casas, Córdoba, Frei Juan dal Valle e muitos outros, foi como um clamor que propiciou uma legislação inspirada no reconhecimento do valor sagrado da pessoa. A consciência cristã aflorava com valentia profética nessa cátedra de dignidade e de liberdade que foi, na Universidade de Salamanca, a Escola de Vitória (cf. Discurso, 14 de maio de 1991), e em tantos outros exímios defensores dos nativos, na Espanha e na América Latina. Nomes que são bem conhecidos e que, por ocasião do V Centenário, foram lembrados com admiração e gratidão. De minha parte, e para precisar os perfis da verdade histórica pondo em relevo as raízes cristãs e a identidade católica do Continente, sugeri que se celebrasse um Simpósio Internacional sobre a História da Evangelização da América, organizado pela Pontifícia Comissão para a América Latina. Os dados históricos mostram que foi levada a cabo uma válida, fecunda e admirável obra evangelizadora e que, através dela, ganhou de tal modo espaço na América a verdade sobre Deus e sobre o homem que, de fato, ela mesma constitui uma espécie de tribunal de acusação dos responsáveis daqueles abusos.

Da fecundidade da semente evangélica depositada nestas terras abençoadas, pude ser testemunha durante as viagens apostólicas, que o Senhor me permitiu realizar nas vossas Igrejas particulares. Como não manifestar abertamente minha ardente gratidão a Deus, por ter-me concedido conhecer a realidade viva da Igreja na América Latina! Nas minhas viagens ao Continente, assim como durante as vossas visitas “ad Limina", e em outros diversos encontros – que fortaleceram os vínculos da colegialidade episcopal e a co-responsabilidade na solicitude pastoral por toda a Igreja – pude comprovar repetidamente o vigor da fé das vossas comunidades eclesiais e também medir a dimensão dos desafios para a Igreja, ligada indissoluvelmente à mesma sorte dos povos do Continente.

5. Esta Conferência Geral reúne-se para preparar as linhas mestras de uma ação evangelizadora, que ponha Cristo no coração e nos lábios de todos os latino-americanos. Esta é a nossa tarefa: fazer que a verdade sobre Cristo e a verdade sobre o homem penetrem ainda mais profundamente em todos os segmentos da sociedade e a transformem (cf. Discurso à Pontifícia Comissão para a América Latina, 14 de junho de 1991). Nas suas deliberações e conclusões, esta Conferência deverá saber conjugar os três elementos doutrinais e pastorais, que constituem como as três coordenadas da nova evangelização: Cristologia, Eclesiologia e Antropologia. Contando com uma profunda e adequada Cristologia (cf. Discurso à II Assembléia Plenária da Pontifícia Comissão para América Latina, 3), e baseados numa sadia antropologia e com uma clara e reta visão eclesiológica, deveis enfrentar os desafios que se apresentam hoje à ação evangelizadora da Igreja na América. Em continuação, desejo compartilhar convosco algumas reflexões que, seguindo a pauta do tema da Conferência e como sinal de profunda comunhão e co-responsabilidade eclesial, vos ajudem na vossa solicitude de Pastores, dedicados generosamente ao serviço do rebanho que o Senhor vos confiou. Trata-se de apresentar algumas prioridades, a partir da perspectiva da nova evangelização.

II. NOVA EVANGELIZAÇÃO

6. A nova evangelização é a idéia central de toda a temática desta Conferência. Desde o meu encontro, no Haiti, com os Bispos do CELAM em 1983, venho pondo uma particular ênfase nesta expressão, para das errar assim um novo ardor e novos esforços evangelizadores na América e no mundo inteiro; ou seja, para dar à ação pastoral “um novo impulso, capaz de suscitar, numa Igreja ainda mais arraigada na força e na potência imorredouras do Pentecostes, tempos novos de evangelização" (Evangelii nuntiandi, 2). A nova evangelização não consiste num “novo evangelho", que surgiria sempre de nós mesmos, da nossa cultura ou da nossa análise, sobre as necessidades do homem. Por isso, não seria “evangelho" mas pura invenção humana, e a salvação não se encontraria nele. Nem mesmo consiste em retirar do Evangelho tudo aquilo que parece dificilmente assimilável. Não é a cultura a medida do Evangelho, mas Jesus Cristo é a medida de toda a cultura e de toda obra humana. Não, a nova evangelização não nasce do desejo de “agradar aos homens" ou de “procurar o seu favor" (cf Gl 1,10), mas da responsabilidade pelo dom que Deus nos fez em Cristo, pelo qual temos acesso à verdade sobre Deus e sobre o homem, e à possibilidade da vida verdadeira. A nova evangelização tem, como ponto de partida, a certeza de que em Cristo há uma “riqueza insondável" (Ef 3,8), que não extingue nenhuma cultura de qualquer época, e à qual nós homens sempre poderemos recorrer para enriquecer-nos (cf. Assembléia especial do Sínodo dos Bispos da Europa, Declaração final, 3). Essa riqueza é, antes de tudo, o próprio Cristo, sua pessoa, porque Ele mesmo é a nossa salvação. Nós homens de qualquer época e de qualquer cultura, aproximando-nos d'Ele mediante a fé e a incorporação ao seu Corpo, que é a Igreja, podemos encontrar a resposta àquelas perguntas, sempre antigas e sempre novas, que se nos apresentam, no mistério da nossa existência, e que de modo indelével levamos gravadas em nosso coração desde a criação e desde a ferida do pecado.

7. A novidade não afeta o conteúdo da mensagem evangélica que não muda, pois Cristo é “sempre o mesmo: ontem, hoje e sempre". Por isso, o Evangelho há de ser proclamado em total fidelidade e pureza, assim como foi conservado e transmitido pela Tradição da Igreja. Evangelizar é anunciar uma pessoa, que é Cristo. De fato, “não haverá nunca evangelização verdadeira se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré Filho de Deus, não forem anunciados" (Evangelii nuntiandi, 22). Por isso, as cristologias redutivas, cujos desvios assinalei em diversas ocasiões (cf. Discurso inaugural da Conferência de Puebla, 28 de janeiro de 1979, I, 4), não podem aceitar-se como instrumentos da nova evangelização. Ao evangelizar, a unidade da fé da Igreja tem que resplandecer não somente no magistério autêntico dos Bispos, mas também no serviço à verdade por parte dos pastores de almas, dos teólogos, dos catequistas, e de todos os que estão comprometidos na proclamação e pregação da fé. A este respeito, a Igreja estimula, admira e respeita a vocação do teólogo, cuja “função é adquirir uma compreensão sempre mais profunda da Palavra de Deus, contida na Escritura inspirada e transmitida pela Tradição viva da Igreja" (Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, n. 6). Esta vocação, nobre e necessária, surge no interior da Igreja e pressupõe a condição de crente no próprio teólogo, com uma atitude de fé que ele mesmo deve testemunhar na comunidade. “A reta consciência do teólogo católico supõe, portanto, a fé na Palavra de Deus (...), o amor à Igreja, da qual ele recebe a sua missão, e o respeito pelo Magistério divinamente assistido" (Ibid, 38). A teologia está chamada a prestar um grande serviço à nova evangelização.

8. Certamente é a verdade que nos torna livres (cf. Jo 8, 32). Existem, porém, posições inaceitáveis sobre o que é a verdade, a Liberdade, a consciência. Chega-se, inclusive, a justificar a dissensão recorrendo “ao pluralismo teológico, levado às vezes até a um relativismo, que põe em perigo a integridade da fé". Não faltam os que pensam que “os documentos do Magistério não seriam nada mais que o reflexo de uma teologia opinável" (Ibid, 34); e “surge assim uma espécie de 'magistério paralelo' dos teólogos, em oposição e em concorrência com o Magistério autêntico" (ibid.). Por outro lado, não podemos minimizar o fato de que “os comportamentos de oposição sistemática à Igreja, que chegam até mesmo a constituir-se em grupos organizados", a contestação e a discórdia, da mesma forma que “causam graves inconvenientes para a comunhão da Igreja", são também um obstáculo para a evangelização (cf. Ibid., 32). A confissão da fé  “Jesus Cristo é sempre o mesmo: ontem, hoje e sempre" (Hb 13,8) – que é como o pano de fundo do tema desta IV Conferência –, nos leva a recordar o seguinte versículo: “Não vos deixeis seduzir pela diversidade de doutrinas estranhas" (Hb 13,9). Vós, amados Pastores, deveis zelar sobretudo pela fé da gente simples que, em caso contrário, se veria desorientada e confundida.

9. Todos os evangelizadores deverão dar também uma especial atenção à catequese. No início do meu Pontificado quis dar um novo impulso a esta tarefa pastoral, mediante a Exortação Apostólica Catechesi tradendae, e recentemente aprovei o Catecismo da Igreja Católica, que recomendo como o melhor dom que a Igreja pode fazer aos seus Bispos e ao Povo de Deus. Trata-se de um valioso instrumento para a nova evangelização, onde se compendia toda a doutrina que a Igreja deve ensinar.

Confio igualmente que o Movimento Bíblico continue desenvolvendo sua benéfica tarefa na América Latina, e que as Sagradas Escrituras nutram cada vez mais a vida dos fiéis, para o qual faz-se imprescindível que os agentes da pastoral aprofundem incansavelmente na Palavra de Deus, vivendo-a e transmitindo-a aos demais com fidelidade, ou seja, “tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé" (Dei Verbum, 12). Da mesma forma, o Movimento litúrgico deverá dar um renovado impulso à vivência íntima dos mistérios da nossa fé, levando ao encontro de Cristo Ressuscitado na liturgia da Igreja. É na celebração da Palavra e dos Sacramentos, mas sobretudo na celebração da Eucaristia, fonte e coroa da vida da Igreja e de toda a Evangelização, que se realiza nosso encontro salvífico com Cristo, a quem nos unimos misticamente formando a sua Igreja (cf. Lumen gentium, 7). Por isso, exorto-vos a dar um novo impulso à celebração digna, viva e participada das assembléias litúrgicas, com esse profundo sentido da fé e da contemplação dos mistérios da salvação, tão enraizado em vossos povos.

10. A novidade da ação evangelizadora a que temos convocado afeta a atitude, o estilo, o esforço e a programação ou, como propus em Haiti, o ardor, os métodos e a expressão (cf. Discurso aos Bispos do CELAM, 9 de março de 1983). Uma evangelização nova no seu ardor supõe uma fé sólida, uma caridade pastoral intensa e uma fidelidade a toda prova que, sob o influxo do Espírito, gerem uma mística, um incontido entusiasmo na tarefa de anunciar o Evangelho. Na linguagem neotestamentária é a “parresia" que inflama o coração do apóstolo (cf. At 5, 28-29; cf. Redemptoris missio, 45). Esta “parresia" há de ser também o selo do vosso apostolado na América. Nada vos pode fazer calar. Sois arautos da verdade. A verdade de Cristo há de iluminar as mentes e os corações com a ativa, incansável e pública proclamação dos valores cristãos. Por outra parte, os novos tempos exigem que a mensagem crista chegue ao homem de hoje, mediante novos métodos de apostolado, e que seja expressada numa linguagem e forma acessíveis ao homem latino-americano, necessitado de Cristo e sedento do Evangelho: como tornar acessível, penetrante, válida e profunda a resposta ao homem de hoje, sem alterar ou modificar em nada o conteúdo da mensagem evangélica? Como chegar ao coração da cultura que queremos evangelizar? Como falar de Deus num mundo em que está presente um processo crescente de secularização?

11. Como o manifestastes nos encontros e nos colóquios que mantivemos ao longo destes anos, tanto em Roma como nas minhas visitas às vossas Igrejas particulares, hoje a fé simples da vossa gente sofre a investida da secularização, com o conseqüente enfraquecimento dos valores religiosos e morais. Nos ambientes urbanos cresce uma modalidade cultural que, confiando somente na ciência e nos adiantamentos da técnica, se apresenta como hostil à fé. Transmitem-se uns “modelos" de vida, em contraste com os valores do Evangelho. Sob a pressão do secularismo, chega-se a apresentar a fé como se fosse uma ameaça à liberdade e à autonomia do homem. No entanto, não podemos esquecer que a história recente mostrou que quando, ao amparo de certas ideologias, se negam a verdade sobre Deus e a verdade sobre o homem, é impossível construir uma sociedade de rosto humano. Com a queda dos regimes do chamado “socialismo real" na Europa oriental, é de se esperar que também neste Continente se tirem as conclusões pertinentes em relação ao valor efêmero de tais ideologias. A crise do coletivismo marxista não teve somente raízes econômicas, como salientei na Encíclica Centesimus annus (n. 41), visto que a verdade sobre o homem está íntima e necessariamente ligada à verdade sobre Deus. A nova evangelização há de dar assim uma resposta integral, pronta, ágil, que fortaleça a fé católica, nas suas verdades fundamentais, nas suas dimensões individuais, familiares e sociais.

III. PROMOÇÃO HUMANA

13. Levando-se em conta que a Igreja está consciente de que o homem não o homem abstrato, mas o homem concreto e histórico é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão (Redemptor hominis, 14), a promoção humana há de ser conseqüência lógica da evangelização, para a qual tende a libertação integral da pessoa (cf. Evangelii nuntiandi, n. 29´39). Olhando para este homem concreto, vós, Pastores da Igreja, constatais a difícil e delicada realidade social pela qual atravessa hoje a América Latina, onde contemplas camadas de população na pobreza e na marginalização. Por isso, solidários com o clamor dos pobres, vos sentis chamados a assumir o papel do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37), onde o amor a Deus se demonstra no amor à pessoa humana. É o que nos lembra o Apóstolo Tiago com aquelas sérias palavras: "Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem do alimento cotidiano, e alguém de vós lhes disser: `Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos´, porém não lhes der as coisas necessárias ao corpo, de que lhe aproveitará?" (Tg 2,15-16). A preocupação pelo social "faz parte da missão evangelizadora da Igreja" (Sollicitudo rei socialis, 41).  Efetivamente, para a Igreja, ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas conseqüências diretas na vida da sociedade e enquadra o trabalho diário e as lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador (Centesimus annus, 5). Como afirma o Concílio Vaticano II na Constituição pastoral Gaudium et spes, o problema da promoção humana não pode ser posto à margem da relação do homem com Deus (cf. n. 43 e 45). De fato, contrapor a promoção humana e o projeto de Deus sobre a humanidade, é uma grave distorção, fruto de uma certa mentalidade de inspiração secularista. A genuína promoção humana há de respeitar sempre a verdade sobre Deus e a verdade sobre o homem, os direitos de Deus e os direitos do homem.

14. Vós, amados Pastores, tocais de perto a situação angustiosa de tantos irmãos que carecem do mais necessário para uma vida autenticamente humana. Apesar do progresso registrado em alguns campos, persiste e inclusive cresce o fenômeno da pobreza. Os problemas agravam-se com a perda do poder aquisitivo da moeda, devido à inflação, às vezes descontrolada, e da deterioração das relações de intercâmbio, com a conseqüente diminuição dos preços de certas matérias primas e com o peso insuportável da dívida externa, da qual derivam desastrosas conseqüências sociais. A situação faz-se ainda mais dolorosa com o grave problema do crescente desemprego, que não permite levar o pão para o lar e impede o acesso a outros bens fundamentais (cf. Laborem exercens, 18). Sentindo vivamente a gravidade desta situação, não deixei de dirigir instantes apelos a favor de uma ativa, justa e urgente solidariedade internacional. É um dever de justiça que afeta toda a humanidade, mas sobretudo os países ricos que não podem eximir-se da sua responsabilidade para com os países em vias de desenvolvimento. Esta solidariedade é uma exigência do bem comum universal, que deve ser respeitado por todos os integrantes da família humana (cf. Gaudium et spes, 26).

15. O mundo não pode ficar tranqüilo e satisfeito diante da situação caótica e desconcertante que se apresenta diante dos nossos olhos: nações, setores da população, famílias e indivíduos cada vez mais ricos e privilegiados diante de povos, famílias e multidões de pessoas submergidas na pobreza, vítimas da fome e das doenças, carentes de moradias dignas, de assistência sanitária, de acesso à cultura. Tudo isso é testemunho eloqüente de uma desordem real e de uma injustiça institucionalizada, à qual se somam, às vezes, o atraso em tomar medidas necessárias, a passividade e a imprudência, bem como a falta de uma séria moral administrativa. Diante de tudo isso, impõe-se uma "mudança de mentalidade, de comportamento e de estruturas" (Centesimus annus, 60), a fim de superar o abismo existente entre os países ricos e os países pobres (cf. Laborem exercens, 16; Centesimus annus, 14), bem como as profundas diferenças existentes entre cidadãos de um mesmo país. Numa palavra: é preciso fazer valer o novo ideal de solidariedade diante da falaz vontade de dominar. Por outra parte, é desumana e falaz a solução que propõe a redução do crescimento demográfico, sem se importar com a moralidade dos meios usados para o conseguir. Não se trata de reduzir a todo o custo o número de convidados ao banquete da vida; o que é preciso é aumentar os meios e distribuir com maior justiça a riqueza, para que todos possam participar eqüitativamente dos bens da criação. São necessárias soluções em nível mundial, instaurando uma verdadeira economia de comunhão e participação de bens, tanto na ordem internacional como nacional. A este respeito, um fato que pode contribuir notavelmente para superar os problemas urgentes que afetam hoje este Continente é a integração latino-americana. É grave responsabilidade dos governantes favorecer o já iniciado processo de integração de alguns povos cuja mesma geografia, a fé cristã, a língua e a cultura uniram definitivamente no caminho da história. 

16. Em continuidade com as Conferências de Medellín e de Puebla, a Igreja reafirma a opção preferencial pelos pobres. Uma opção não exclusiva nem excludente, pois a mensagem da salvação está destinada a todos. "Uma opção, além disso, baseada especialmente na Palavra de Deus e não em critérios retirados das ciências humanas ou de ideologias contrárias entre si, que freqüentemente reduzem os pobres em categorias sociopolíticas e econômicas abstratas. Mas uma opção firme e irrevogável" (Discurso aos Cardeais e Prelados da Cúria Romana, 21 de dezembro de 1984, 9). Como afirma o Documento de Puebla, "ao aproximar-nos do pobre para acompanhá-lo e servi-lo, fazemos o que Cristo nos ensinou, quando se fez irmão nosso, pobre como nós. Por isso o serviço dos pobres é medida privilegiada, embora não exclusiva, de nosso seguimento de Cristo. O melhor serviço ao irmão é a evangelização, que o dispõe a realizar-se como filho de Deus, o liberta das injustiças e o promove integralmente" (Puebla, 1145). Tais critérios evangélicos de serviço ao necessitado evitarão qualquer tentação de convivência com os responsáveis das causas da pobreza, ou perigosos desvios ideológicos, incompatíveis com a doutrina e a missão da Igreja. A genuína praxes de libertação há de estar sempre inspirada pela doutrina da Igreja, como se explica nas Instruções da Congregação para a Doutrina da Fé (Libertatis nuntius, 1984, Libertatis conscientia, 1986), que conservam todo o seu valor e devem ser tidas em conta quando se trata do tema das teologias de libertação. Por outro lado, a Igreja não pode de maneira nenhuma deixar que lhe seja arrebatada, por qualquer ideologia ou corrente política, a bandeira da justiça, que é uma das primeiras exigências do Evangelho e, ao mesmo tempo, fruto da chegada do Reino de Deus.

17. Como já assinalou a Conferência de Puebla, existem grupos humanos particularmente submergidos na pobreza: é o caso dos índios (cf. 1265). A eles, e também aos afro-americanos, quis dirigir uma mensagem especial de solidariedade e de simpatia, que entregarei amanhã a um grupo de representantes de suas respectivas comunidades. Como gesto de solidariedade, a Santa Sé criou recentemente a Fundação Populorum Progressio, que dispõe de um fundo de ajuda a favor dos camponeses, dos índios e demais grupos humanos do setor rural, particularmente desprotegidos na América Latina. Nesta mesma linha de solicitude pastoral pela situação das categorias sociais mais carentes, esta Conferência Geral poderia considerar a oportunidade de que, num futuro não remoto, possa realizar-se um Encontro de representantes dos Episcopados de todo o Continente americano -  que poderia ter também caráter sinodal -, visando incrementar a cooperação entre as diversas Igrejas particulares nos distintos campos da ação pastoral, e no qual, no âmbito da nova evangelização e como expressão da comunhão episcopal, se enfrentem também os problemas relativos à justiça e à solidariedade entre todas as nações da América. A Igreja, no limiar já do terceiro milênio da era cristã e numa época em que caíram muitas barreiras e fronteiras ideológicas, sente como um dever iniludível unir espiritualmente ainda mais todos os povos que formam este grande Continente e, ao mesmo tempo, a partir da missão religiosa que lhe é própria, incentivar um espírito solidário entre todos eles, que permita encontrar vias de solução para as dramáticas situações de amplos setores de populações, que aspiram a um legítimo progresso integral e a condições de vida mais justas e mais dignas.

18. Não existe autêntica promoção humana, nem verdadeira libertação, nem opção preferencial pelos pobres, se não se parte dos mesmos fundamentos da dignidade da pessoa e do ambiente em que ela deve desenvolver-se, de acordo com o projeto do Criador. Por isso, não posso não recordar, entre os temas e as opções que requerem toda atenção da Igreja, o da família e da vida: duas realidades que vão estreitamente unidas, dado que "a família é como o santuário da vida" (Centesimus annus, 39). Com efeito, o futuro da humanidade passa pela família! É pois indispensável e urgente que cada homem de boa vontade se empenhe em salvar e promover os valores e as exigências da família" (Familiaris consortio, 86). Apesar dos problemas que afligem atualmente o matrimônio e a instituição familiar, esta, como "célula primeira e vital da sociedade" (Apostolicam actuositatem, 11), pode gerar energias formidáveis (cf. n. 43), necessárias para o bem da humanidade. Por isso, é preciso "anunciar com alegria e convicção a 'boa nova' acerca da família" (cf. Familiaris consortio, 86). É preciso anunciá-la aqui, na América Latina, onde, junto ao apreço que se tem pela família, alicerçada no matrimônio, proliferam, infelizmente, as uniões livres. Diante desse fenômeno e das crescentes pressões divorcistas, é urgente promover medidas adequadas a favor do núcleo familiar, em primeiro lugar para garantir a união de vida e de amor estável dentro do matrimônio, conforme o plano de Deus, bem como a serena educação dos filhos. Em estreita conexão com os problemas apontados, está o grave problema das crianças que vivem permanentemente nas ruas das grandes cidades latino-americanas, extenuadas pela fome e pelas doenças, sem qualquer proteção, sujeitas a tantos perigos, não excluída a droga e a prostituição. Eis aqui outra questão que deve fazer urgir vossa solicitude pastoral, lembrando as palavras de Jesus: Deixai que as crianças venham a Mim" (Mt 19,14). A vida desde a sua concepção no seio materno até à sua natural conclusão deve ser defendida com decisão e valentia. É necessário criar na América uma cultura da vida que frete a cultura da morte que, através do aborto, da eutanásia, da guerra, da guerrilha, do seqüestro, do terrorismo e de outras formas de violência ou exploração, pretende dominar em algumas nações. Neste espectro de atentados à vida, ocupa um lugar de destaque o tráfico de entorpecentes, que há de ser reprimido com todos os meios licitas à disposição.

19. Quem nos libertará destes sinais de morte? A experiência do mundo contemporâneo tem mostrado, cada vez mais, que as ideologias são incapazes de derrotar aquele mal que escraviza o homem. O único que pode libertar deste mal é Cristo. Ao celebrar o V Centenário da Evangelização, dirigimos, comovidos, nossos olhares para aquele momento de graça em que Cristo nos foi dado de uma vez para sempre. A dolorosa situação de tantas irmãs e irmãos latino-americanos não nos leva ao desespero. Pelo contrário, torna mais urgente a tarefa que a Igreja tem diante de si: reavivar no coração de cada batizado a graça recebida. "Recomendo-te" ― escrevia São Paulo a Timóteo ―  "que reanimes a graça de Deus, que está em ti" (2Tm 1,6). Como da acolhida do Espírito no Pentecostes nasceu o povo da Nova Aliança, somente esta acolhida fará surgir um povo capaz de gerar homens renovados e livres, conscientes da sua dignidade. Não podemos esquecer que a promoção integral do homem é de importância capital para o desenvolvimento dos povos da América Latina. Pois "o progresso de um povo não deriva primariamente do dinheiro, nem dos auxílios materiais, nem das estruturas técnicas, mas sobretudo da formação das consciências, do amadurecimento das mentalidades e dos costumes. O homem é que é o protagonista do desenvolvimento, não o dinheiro ou a técnica" (Redemptoris missio, 58). A maior riqueza da América Latina são suas gentes. A Igreja, "despertando as consciências com o Evangelho", contribui para despertar as energias adormecidas, a fim de as dispor a trabalhar na construção de uma nova civilização (cf. Ibid).

IV. CULTURA CRISTÃ

20. Embora o Evangelho não se identifique com nenhuma cultura em particular, deve sim inspirá-las para, desta maneira, as transformar a partir de dentro, enriquecendo-as com aqueles valores cristãos que derivam da fé. Na verdade, a evangelização das culturas representa a forma mais profunda e global de evangelizar uma sociedade, porque, através dela, a mensagem de Cristo penetra nas consciências das pessoas e se projeta no "ethos" de um povo, nas suas atitudes vitais, nas suas instituições e em todas as estruturas (cf. Discurso aos intelectuais e ao mundo universitário, Medellín, 5 de julho de 1986, 2). O tema "cultura" foi objeto de particular estudo e reflexão por parte do CELAM, nos últimos anos. Também a Igreja inteira concentra a sua atenção sobre esta importante matéria, "já que a nova evangelização deverá projetar-se sobre a cultura 'emergente', sobre todas as culturas, inclusive as culturas indígenas" (cf. Angelus, 28 de junho de 1992). Anunciar Jesus Cristo a todas as culturas é a preocupação central da Igreja e objeto da sua missão. Nos nossos dias, isto exige, em primeiro lugar, o discernimento das culturas como realidade humana a evangelizar e, conseqüentemente, a urgência de um novo tipo e alto nível de colaboração entre todos os responsáveis pela obra evangelizadora.

21. Hoje em dia percebe-se uma crise cultural de proporções inimagináveis. Certo é que o substrato cultural atual apresenta um bom número de valores positivos, muitos deles fruto da evangelização e que são perfeitamente compatíveis com o Evangelho; ao mesmo tempo, porém, foram eliminados valores religiosos fundamentais e introduzidas concepções insidiosas, que são inaceitáveis sob o ponto de vista cristão. A ausência desses valores fundamentais cristãos na cultura moderna não apenas tem ofuscado a dimensão transcendente, arrastando muitas pessoas para a indiferença religiosa ― também na América Latina ― , mas é ainda causa determinante do desencanto social, no qual se gerou a crise desta cultura. Após a autonomia introduzida pelo racionalismo, tende-se hoje a assentar os valores, sobretudo, em consensos sociais subjetivos que, não raro, conduzem a posições contrárias inclusive à própria ética natural. Pense-se no drama do aborto, nos abusos no âmbito da engenharia genética, nos atentados à vida e à dignidade da pessoa. Face à pluralidade de opções que hoje se oferecem, requer-se uma profunda renovação pastoral, mediante o discernimento evangélico sobre os valores dominantes, as atitudes, os comportamentos coletivos, que seqüentemente representam um fato decisivo para optar tanto pelo bem como pelo mal. Nos nossos dias, torna-se necessário um esforço e um tato especial para inculturar a mensagem de Jesus, de tal modo que os valores cristãos possam transformar os diversos núcleos culturais, purificando-os, se necessário for, e possibilitando a consolidação de uma cultura cristã que renove, amplie e unifique os valores históricos, passados e presentes, para assim responder de modo adequado aos desafios do nosso tempo (cf. Redemptoris missio, 52). Um destes desafios à evangelização é intensificar o diálogo entre as ciências e a fé, em ordem a criar um verdadeiro humanismo cristão. Trata-se de mostrar que as ciências e a técnica contribuem para a civilização e a humanização do mundo, na medida em que estão penetradas pela sabedoria de Deus. A este propósito, desejo encorajar vivamente as Universidades e Centros de estudos superiores, especialmente os que dependem da Igreja, a renovar o seu empenhamento no diálogo entre fé e ciência.

22. A Igreja vê com preocupação a ruptura existente entre os valores evangélicos e as culturas modernas, pois estas correm o risco de fechar-se dentro de si mesmas, numa espécie de involução agnóstica e sem referência à dimensão moral (cf. Discurso ao Pontifício Conselho para a Cultura, 18 de janeiro de 1983). A este respeito, conservam pleno vigor as palavras do Papa Paulo VI: "A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas mediante o impacto da Boa Nova (Evangelii nuntiandi, 20). A Igreja, que considera o homem como seu "caminho" (cf. Redemptor hominis, 14), há de dar uma resposta adequada à atual crise da cultura. Frente ao complexo fenômeno da modernidade, é necessário dar vida a uma alternativa cultural plenamente cristã. Se a verdadeira cultura é a que exprime os valores universais da pessoa, quem pode projetar mais luz sobre a realidade do homem, sobre a sua dignidade e razão de ser, sobre a sua liberdade e destino do que o Evangelho de Cristo? Neste marco histórico do meio milênio da evangelização dos vossos povos, convido-vos, pois, queridos Irmãos, a que, com o ardor da nova evangelização, animados pelo Espírito do Senhor Jesus, torneis a Igreja presente na encruzilhada cultural do nosso tempo, para impregnar com os valores cristãos as próprias raízes da cultura emergente e de todas as culturas já existentes. Particular atenção haveis de prestar às culturas indígenas e afro-americanas, assimilando e pondo em relevo tudo o que nelas há de profundamente humano e humanizador. A sua visão da vida, que reconhece a sacralidade do ser humano e do mundo, o seu respeito profundo pela natureza, a humildade, a simplicidade, a solidariedade são valores que hão de estimular o esforço, por levar a cabo uma autêntica evangelização inculturada, que seja também promotora de progresso e conduza sempre à adoração de Deus "em espírito e verdade" (Jo 4,23). Mas o reconhecimento dos ditos valores não vos exime de proclamar em todo o momento que "Cristo é o único salvador de todos, o único capaz de revelar e de conduzir a Deus" (Redemptoris missio 5). "A evangelização da cultura é um esforço por compreender as mentalidades e as atitudes do mundo atual e iluminá-las a partir do Evangelho. É a vontade de chegar a todos os níveis da vida humana, para a tornar mais digna" (Discurso ao mundo da cultura, Lima, 15 de maio de 1988, 5). Porém este esforço de compreensão e iluminação deve ser sempre acompanhado pelo anúncio da Boa Nova (cf. Redemptoris missio, 46), de tal maneira que a penetração do Evangelho nas culturas não seja uma simples adaptação externa, mas um processo profundo e abrangente que englobe tanto a mensagem cristã como a reflexão e a práxis da Igreja, respeitando sempre as características e a integridade da fé (Cf. Ibid., 52). 

23. Sendo a comunicação entre as pessoas um admirável elemento gerador de cultura, os modernos meios de comunicação social revestem neste campo uma importância de primeira grandeza. Intensificar a presença da Igreja no mundo da comunicação há de ser certamente uma das vossas prioridades. Vêm-me à mente as graves palavras do meu venerado predecessor, o Papa Paulo VI: "A Igreja viria a sentir-se culpável diante do seu Senhor, se ela não lançasse mão destes meios potentes que a inteligência humana torna cada dia mais aperfeiçoados" (Evangelii nuntiandi, 45). Por outro lado, ocorre também vigiar sobre o uso dos meios de comunicação social na educação da fé e na difusão da cultura religiosa. Uma responsabilidade que compete sobretudo às casas editoriais, dependentes de Instituições Católicas, que devem "ser objeto de particular solicitude por parte dos Ordinários locais, para que as suas publicações sejam sempre conformes à doutrina da Igreja e contribuam eficazmente para o bem das almas" (Instrução sobre alguns aspectos do uso dos instrumentos de comunicação social na promoção da doutrina da fé, 15,2). São exemplos de inculturação do Evangelho também certas manifestações sócio-culturais, que se estão levantando em defesa do homem e do seu ambiente, e que têm de ser iluminadas pela luz da fé. É o caso do movimento ecológico a favor do respeito devido à natureza e contra a exploração desordenada dos seus recursos, com a conseqüente deterioração da qualidade de vida. A convicção de que "Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos" (Gaudium et spes, 69), há de inspirar um sistema de gestão dos recursos mais justo e melhor coordenado a nível mundial. A Igreja faz sua a preocupação pelo meio ambiente e convida os governos a protegerem este patrimônio, segundo os critérios do bem comum (cf. Mensagem para a XXV Jornada Mundial da Paz, 1º de janeiro de 1992).

24. O desafio que representa a cultura "emergente", não enfraquece, no entanto, nossa esperança, e damos graças a Deus porque na América Latina o dom da fé católica penetrou no âmago dos seus povos, conformando nestes quinhentos anos a alma cristã do Continente e inspirando muitas das suas instituições. De fato, a Igreja na América Latina conseguiu impregnar a cultura do povo, soube situar a mensagem evangélica na base do seu pensamento, nos seus princípios fundamentais de vida, nos seus critérios de juízo, nas suas normas de ação. Agora, é-nos apresentado o desafio formidável da contínua inculturação do Evangelho nos vossos povos, tema que tereis de abordar com clarividência e profundidade, durante os próximos dias. A América Latina, em Santa Maria de Guadalupe, oferece um grande exemplo de evangelização perfeitamente inculturada. De fato, na figura de Mana ― desde os começos da cristianização do Novo Mundo, e à luz do Evangelho de Jesus ―  encarnaram-se autênticos valores culturais indígenas. No rosto mestiço da Virgem de Tepeyac se resume o grande princípio da inculturação: a íntima transformação dos autênticos valores culturais, mediante a integração no cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas (cf. Redemptoris missio 52).

V. UMA NOVA ERA SOB O SIGNO DA ESPERANÇA

25. Eis aqui, queridos irmãos e irmãs, alguns dos desafios que se apresentam à Igreja nesta hora da nova evangelização. Diante deste panorama, cheio de interrogações, mas também repleto de promessas, devemos perguntar-nos qual é o caminho que deve seguir a Igreja na América Latina, para que a sua missão dê, na próxima etapa da sua história, os frutos que espera o Dono da messe (cf. Lc 10,2; Mc 4,20). Vossa Assembléia deverá delinear a fisionomia de uma Igreja viva e dinâmica que cresce na fé, se santifica, ama, sofre, se compromete e espera em seu Senhor, como nos lembra o Concílio Ecumênico Vaticano II, ponto de referência obrigatório na vida e na missão de todo o Pastor (cf. Gaudium et spes, 2). A tarefa que vos espera nos próximos dias é árdua, mas está marcada pelo signo da esperança que vem de Cristo Ressuscitado. Vossa missão é a de serdes arautos da esperança, de que nos fala o Apóstolo Pedro (cf. 1Pd 3,15): esperança que se apoia nas promessas de Deus, na fidelidade à sua palavra e que tem como certeza inquebrantável a ressurreição de Cristo, sua vitória definitiva sobre o pecado e a morte, primeiro anúncio e raiz de toda a evangelização, fundamento de toda a promoção humana, princípio de toda a autêntica cultura cristã, que não pode deixar de ser a cultura da ressurreição e da vida, vivificada pelo sopro do Espírito de Pentecostes. Amados Irmãos no Episcopado, na unidade da Igreja local, que tem origem na Eucaristia, encontra-se todo o Colégio Episcopal com o Sucessor de Pedro à frente, como pertencendo à própria essência da Igreja particular (cf. Carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre alguns aspectos da Igreja entendida como Comunhão, 14). Em torno do Bispo e em perfeita comunhão com ele, devem florescer as paróquias e as comunidades cristãs, como células vivas e pujantes de vida eclesial. Por isso, a nova evangelização requer uma vigorosa renovação de toda a vida diocesana. As paróquias, os movimentos apostólicos e associações laicais, e todas as comunidades eclesiais em geral, hão de ser sempre evangelizadas e evangelizadoras. De modo particular, as Comunidades eclesiais de base devem se caracterizar por uma decidida projeção universalista e missionária, que lhes infunda um renovado dinamismo apostólico (cf. Evangelii nuntiandi, 58; Puebla 640-642). Elas, que devem estar sempre marcadas por uma clara identidade eclesial, hão de ter na Eucaristia, a que preside o Sacerdote, o centro da vida e da comunhão dos seus membros, em estreita união com seus pastores e em plena sintonia com o Magistério da Igreja.

26. Condição indispensável para a nova evangelização é poder contar com evangelizadores numerosos e qualificados. Por isso, a promoção das vocações sacerdotais e religiosas, bem como de outros agentes de pastoral, há de ser uma prioridade dos Bispos e um compromisso de todo o Povo de Deus. É preciso dar, em toda a América Latina, um impulso decisivo à Pastoral vocacional e enfrentar, com critérios acertados e com esperança, o que se relacionar com os Seminários e Centros de formação dos religiosos e religiosas, bem como com o problema da formação permanente do Clero e de uma melhor distribuição dos sacerdotes entre as diversas Igrejas locais, em que se deve ter em conta também o apreciável trabalho dos diáconos permanentes. Para tudo isto, existem orientações apropriadas na Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores dobo vobis. No que diz respeito aos religiosos e às religiosas, que na América Latina levam o peso de uma parte considerável da ação pastoral, desejo mencionar a Carta Apostólica Os Caminhos do Evangelho, que lhes dirigi com data de 29 de junho de 1990. Também quero lembrar aqui os Institutos Seculares, com sua pujante vitalidade no meio do mundo, e os membros das Sociedades de Vida Apostólica que desenvolvem uma grande atividade missionária. Na hora presente, os membros dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica, tanto masculinos como femininos, devem concentrar-se mais na tarefa especificamente evangelizadora, desenvolvendo toda a riqueza de iniciativas e tarefas pastorais que brotam de seus diversos carismas. Fiéis ao espírito dos seus Fundadores, devem caraterizar-se por um profundo sentido de Igreja e pelo testemunho de uma estreita colaboração e submissão na pastoral, cuja direção compete aos Ordinários das dioceses e, a nível nacional, às Conferências Episcopais. Como recordei na minha Carta às contemplativas da América Latina (12 de dezembro de 1989), a ação evangelizadora da Igreja está sustentada por esses santuários da vida contemplativa, tão numerosos em toda a América, que constituem um testemunho da radicalidade da consagração a Deus, que tem de ocupar sempre o primeiro lugar em nossas opções.

27. Na Exortação Apostólica pós-sinodal Christifideles laici sobre "vocação e missão dos leigos na Igreja", quis pôr em particular evidência que na "grande, comprometedora e magnífica empresa" da nova evangelização é indispensável o trabalho dos leigos, especialmente dos catequistas e "delegados da Palavra". A Igreja espera muito de todos aqueles leigos que, com entusiasmo e eficácia evangélica, agem através dos novos movimentos apostólicos, que hão de estar coordenados na pastoral de conjunto e que respondem à necessidade de uma maior presença da fé na vida social. Nesta hora em que convoquei todos para trabalhar com ardor apostólico na vinha do Senhor, sem que ninguém ficasse excluído, "os fiéis leigos devem sentir-se parte viva e responsável desta tarefa, chamados como são a anunciar e a viver o Evangelho ao serviço dos valores e das exigências das pessoas e da sociedade" (n. 64). Digna de todo elogio, como transmissora da fé, é a mulher latino-americana, cujo papel na Igreja e na sociedade deve ser posto na devida evidência (cf. Carta Apostólica Mulieris dignitatem). Particular solicitude pastoral deve-se prestar aos doentes, tendo em vista também a força evangelizadora do sofrimento (cf. Carta Apostólica Salvifici doloris, sobre o sentido cristão do sofrimento humano, 11 de fevereiro de 1984). Lanço um apelo especial aos jovens da América Latina. Por um lado, eles ― tão numerosos num Continente jovem ―  são os sujeitos da nova evangelização, mas deverão ser, além disso, os protagonistas do anúncio no novo milênio, já à porta. Eles são os jovens a quem temos de apresentar Jesus Cristo e a beleza da vocação cristã, mas são também aqueles a quem há que libertar das ilusões do consumismo e sobretudo oferecer-lhes ideais altos e nobres, que os apóiem nas suas aspirações de uma sociedade mais justa e fraterna.

28. Todos são chamados a construir a civilização do amor neste Continente da esperança. Mais ainda, a América Latina, que recebeu a fé transmitida pelas Igrejas do Velho Mundo, tem de preparar-se para difundir a mensagem de Cristo pelo mundo inteiro, dando "da sua pobreza" (cf. Mensagem aos III e IV Congressos Missionários Latino-Americanos, Santa Fé de Bogotá, 1987, e Lima, 1991). "Chegou o momento de empenhar todas as forças eclesiais na nova evangelização e na missão ad gentes. Nenhum crente em Cristo, nenhuma instituição da Igreja se pode esquivar deste dever supremo: anunciar Cristo a todos os povos" (Redemptoris missio, 3). Este momento chegou também para a América Latina. "É dando a fé que ela se fortalece! A nova evangelização dos povos cristãos, também nas Igrejas da América, encontrará inspiração e apoio no empenho pela missão universal" (ibid., 2). Para a América Latina, que recebeu Cristo há já quinhentos anos, o maior sinal de agradecimento pelo dom recebido, e da sua vitalidade crista, é empenhar-se ela mesma na missão. 

29. Amados Irmãos no Episcopado, como sucessores dos Apóstolos, deveis dedicar todo o desvelo à vossa grei, "no meio da qual vos colocou o Espírito Santo para apascentardes a Igreja de Deus" (At 20,28). Por outro lado, como membros do Colégio Episcopal, em estreita unidade afetiva e efetiva com o Sucessor de Pedro, sois chamados a conservar a comunhão e a solicitude por toda a Igreja. E, nesta circunstância, como membros da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, incumbe-vos uma responsabilidade histórica. Em virtude da mesma fé, da Palavra revelada, da ação do Espírito e por meio da Eucaristia à qual preside o Bispo, a Igreja particular mantém com a Igreja Universal uma peculiar relação de mútua interioridade, porque nela se encontra e opera verdadeiramente a Igreja de Cristo que é Una, Santa, Católica e Apostólica (cf. Christus Dominus, 11). Nela deve resplandecer a santidade de vida, a que todo o evangelizador é chamado, dando testemunho de uma intensa vivência do mistério de Jesus Cristo, sentido e experimentado fortemente na Eucaristia, na escuta assídua da Palavra, na oração, no sacrifício, na entrega generosa ao Senhor, que nos Sacerdotes e demais pessoas consagradas se exprime de modo especial pelo celibato. Não se pode esquecer que a primeira forma de evangelização é o testemunho (cf. Redemptoris missio, 42-43), isto é, a proclamação da mensagem da salvação através das obras e da coerência de vida, levando assim a cabo a sua encarnação na história quotidiana dos homens. A Igreja, desde o princípio da sua história, fez-se presente e operante não apenas mediante o anúncio explicito do Evangelho de Cristo, mas também, e sobretudo, através da irradiação da vida cristã. Por isso, a nova evangelização exige coerência de vida, testemunho sólido e unitário de caridade, sob o signo da unidade, para que o mundo creia (cf. Jo 17,23).

30. Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o Pastor dos pastores, está no vosso meio, pois vos reunistes em Seu nome (cf. Mt 18,20). Convosco está o Espírito do Senhor que guia a Igreja para a plenitude da verdade e a rejuvenesce com a Palavra do Evangelho, como em novo Pentecostes. Na comunhão dos Santos, vela sobre vossos trabalhos uma plêiade de Santos e Santas latino-americanos, que evangelizaram este Continente com sua palavra e suas virtudes, e muitos deles o fecundaram com seu sangue. Eles são os frutos mais excelsos da Evangelização. Como no Cenáculo do Pentecostes, acompanha-vos a Mãe de Jesus, a Mãe da Igreja. Sua presença entranhável em todos os rincões da América Latina e nos corações de seus filhos é garantia do sentido profético e do ardor evangélico que deve acompanhar vossos trabalhos.

31. "Bem-aventurada és tu que acreditaste, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas" (Lc 1,45). Estas palavras, que Isabel dirige a Maria, portadora de Cristo, são aplicáveis à Igreja, da qual a Mãe do Redentor é tipo e modelo. Feliz és tu, América, Igreja da América, portadora de Cristo também, que recebeste o anúncio da salvação e creste "nas coisas que te foram ditas da parte do Senhor"! A fé é a tua ventura, a fonte da tua alegria. Felizes vós, homens e mulheres da América Latina, adultos e jovens, que conhecestes o Redentor! Junto com toda a Igreja, e com Maria, podeis dizer que o Senhor "pôs os olhos na humildade de sua serva" (Lc 1,48). Felizes vós, os pobres da terra, porque chegou para vós o Reino de Deus! "O que o Senhor te disse, se cumprirá". Sê fiel ao teu batismo reaviva neste Centenário a imensa graça recebida, dirige teu coração e teu olhar ao centro, à origem, Àquele que é o fundamento de toda a felicidade, a plenitude de tudo! Abre-te a Cristo, acolhe o Espírito, para que em todas as tuas comunidades tenha lugar um novo Pentecostes! E surgirá de ti uma humanidade nova, bem-aventurada; e experimentarás de novo o braço poderoso do Senhor, e "o que o Senhor te disse se cumprirá". O que te disse, América, é Seu amor por ti, é Seu amor pelos teus homens, por tuas famílias, pelos teus povos. E esse amor se cumprirá em ti, e te encontrarás de novo a ti mesma, encontrarás teu rosto, "te proclamarão bem-aventurada todas as gerações" (Lc 1,48). Igreja da América, o Senhor passa hoje ao teu lado. Chama-te. Nesta hora de graça, pronuncia de novo teu nome, renova sua aliança contigo. Oxalá ouças hoje sua voz, para que conheças a verdadeira e plena felicidade, e entres em seu descanso! (cf. Sl 94,7.11). Terminemos invocando Maria, a Estrela da primeira e da nova evangelização. A Ela, que sempre esperou, confiamos nossa esperança. Em suas mãos, colocamos nossos cuidados pastorais e todos os trabalhos desta Conferência, encomendando a seu coração de Mãe o êxito e a projeção da mesma sobre o futuro do Continente. Que Ela nos ajude a anunciar Seu Filho: "Jesus Cristo ontem, hoje e sempre!".

Amém.

 



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