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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
À CÚRIA ROMANA NA APRESENTAÇÃO DE VOTOS NATALÍCIOS

Sala das Bênçãos
Quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

[Multimídia]

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Queridos irmãos e irmãs!

1. O Senhor concede-nos, uma vez mais, a graça de celebrar o mistério do seu nascimento. Cada ano, aos pés do Menino deitado na manjedoura (cf. Lc 2, 12), temos a possibilidade de olhar a nossa vida sob esta luz especial: não é a luz da glória deste mundo, mas «a Luz verdadeira, que (…) a todo o homem ilumina» (Jo 1, 9). Na humildade do Filho de Deus que desce à nossa condição humana, temos uma escola de adesão à realidade. Assim como Ele escolhe a pobreza, que não se reduz a mera ausência de bens, mas é essencialidade, assim também cada um de nós é chamado a voltar ao essencial da própria vida, para deitar fora tudo o que é supérfluo e que pode tornar-se um impedimento no caminho da santidade. E este caminho de santidade não se há de trocar por nada.

2. Mas é importante ter claro que, ao examinar a própria existência ou o tempo passado, se deve tomar sempre como ponto de partida a memória do bem. Com efeito, só quando estamos conscientes do bem que o Senhor nos fez é que podemos também dar nome ao mal, que praticamos ou padecemos. A noção da nossa pobreza esmagar-nos-ia, se não estivesse acompanhada pela consciência do amor de Deus. Neste sentido, a atitude interior, a que deveremos dar mais importância, é a gratidão.

Para nos explicar em que consiste a gratidão, o Evangelho narra-nos o caso dos dez leprosos que foram, todos, curados por Jesus, mas só um regressou para agradecer: um samaritano (cf. Lc 17, 11-19). A este homem, além da cura física, o ato de agradecimento obteve-lhe a salvação total (cf. 17, 19). O bem encontrado, que Deus lhe concedeu, não se detém à superfície, mas toca o coração. Assim, sem a prática constante da gratidão, acabaríamos elaborando apenas a lista das nossas quedas e deixaríamos na escuridão o que mais importa, isto é, as graças que o Senhor nos concede cada dia.

3. Aconteceram muitas coisas neste último ano, e queremos, antes de mais nada, agradecer ao Senhor por todos os benefícios que nos concedeu. E, entre todos estes benefícios, queira Deus que se conte também o da nossa conversão. Esta nunca é um discurso acabado. A pior coisa que nos pode acontecer é pensar que já não precisamos de conversão quer a nível pessoal quer comunitário.

Converter-se é aprender a tomar a sério cada vez mais a mensagem do Evangelho, procurando pô-la em prática na nossa vida. Não é simplesmente manter-se longe do mal, mas praticar todo o bem possível: isto é converter-se! Perante o Evangelho, permanecemos sempre como crianças necessitadas de aprender. Presumir que já aprendemos tudo faz-nos cair no orgulho espiritual.

Em 2022, completaram-se sessenta anos do início do Concílio Vaticano II. E este, que foi senão um grande tempo de conversão para toda a Igreja? A propósito, dizia São João XXIII: «Não é o Evangelho que muda, somos nós que começamos a compreendê-lo melhor». A conversão, que o Concílio nos ofereceu, foi a tentativa de compreender melhor o Evangelho, torná-lo atual, vivo e operante neste momento histórico.

E assim – como, aliás, já acontecera mais vezes na história da Igreja – também na nossa época nos sentimos, como comunidade de crentes, chamados à conversão. E este itinerário está longe de terminar. A reflexão atual sobre a sinodalidade da Igreja nasce, precisamente, da convicção de que o percurso de compreensão da mensagem de Cristo não tem fim e desafia-nos sem cessar.

O contrário da conversão é o fixismo, ou seja, a sub-reptícia convicção de não precisar de qualquer nova compreensão do Evangelho. Trata-se do erro de querer cristalizar a mensagem de Jesus numa forma única e sempre válida; ao passo que a forma deve poder sempre mudar a fim de a substância permanecer sempre a mesma. A verdadeira heresia não consiste apenas em pregar outro Evangelho, como nos lembra Paulo (cf. Gal 1, 9), mas também em deixar de o traduzir nas linguagens e formas contemporâneas, como fez precisamente o Apóstolo dos Gentios. Conservar a mensagem de Cristo significa mantê-la viva, não enclausurá-la.

4. O verdadeiro problema, que muitas vezes esquecemos, é que a conversão não apenas nos torna cientes do mal e faz-nos escolher o bem, mas ao mesmo tempo leva o mal a evoluir, a tornar-se cada vez mais insidioso, a disfarçar-se sob novas formas para termos dificuldade em o reconhecer. É uma verdadeira luta. O tentador volta sempre, e volta travestido.

Jesus, no Evangelho, usa uma comparação que nos ajuda a compreender esta obra que é feita de tempos e modos diferentes: «Quando um homem forte e bem armado guarda a sua casa, os seus bens estão em segurança; mas, se aparece um homem mais forte e o vence, tira-lhe as armas em que confiava e distribui os seus despojos» (Lc 11, 21-22). O nosso primeiro grande problema é confiarmos demais em nós mesmos, nas nossas estratégias, nos nossos programas. É o espírito pelagiano, de que já falei várias vezes. Assim, alguns falhanços acabam por ser uma graça, porque nos lembram que não devemos confiar em nós próprios, mas apenas no Senhor. Algumas quedas, mesmo como Igreja, são um grande apelo a colocar de novo Cristo no centro. Pois, «quem não está comigo está contra Mim, e quem não junta comigo, dispersa» (Lc 11, 23). É tão simples!

Queridos irmãos e irmãs, é demasiado pouco denunciar o mal, inclusive aquele que se esconde entre nós. O que se deve fazer à vista dele, é decidir-se por uma conversão. A simples denúncia pode dar-nos a ilusão de termos resolvido o problema, mas na realidade aquilo que conta é realizar mudanças que nos ponham na condição de não mais nos deixarmos enclausurar pelas lógicas do mal, que muitas vezes são lógicas mundanas. Neste sentido, uma das virtudes mais úteis que havemos de praticar é a da vigilância. Jesus descreve a necessidade desta atenção a nós mesmos e à Igreja – a necessidade da vigilância – com um exemplo elucidativo: «Quando um espírito maligno sai dum homem – diz Jesus –, vagueia por lugares áridos em busca de repouso; e, não o encontrando, diz: “Vou voltar para a minha casa donde saí”. Ao chegar, encontra-a varrida e arrumada. Vai, então, e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele; e, entrando, instalam-se ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro» (Lc 11, 24-26). A nossa primeira conversão repõe uma certa ordem: o mal, que individuamos e tentamos erradicar da nossa vida, afasta-se efetivamente de nós; mas seria ingénuo pensar que vai ficar longe por muito tempo. Na realidade, pouco depois volta a apresentar-se-nos sob uma nova roupagem. Se antes aparecia rude e violento, agora, ao invés, comporta-se de forma mais elegante e educada. E assim temos necessidade mais uma vez de o individuar e desmascarar. São – perdoai-me a expressão – os «demónios educados»: entram com educação, sem me aperceber. Só a prática diária do exame de consciência é que nos pode fazer dar conta disso. Daqui se vê como é importante o exame de consciência para velar pela casa.

No século XVII – por exemplo – deu-se o conhecido caso das monjas de Port Royal. Uma das suas abadessas, Madre Angélica, começara bem: com grande «carisma», reformara-se a si mesma e ao mosteiro, afastando da clausura até os pais. Era uma mulher cheia de talento, nascida para governar, mas depois tornou-se a alma da resistência jansenista, mostrando um fechamento intransigente inclusive diante da autoridade eclesiástica. Dizia-se dela e das suas monjas: «puras como anjos, orgulhosas como demónios». Tinham expulso o demónio, mas depois este voltou sete vezes mais forte e, sob a roupagem da austeridade e do rigor, trouxera rigidez e a presunção de serem melhores que os outros. Volta sempre: o demónio, expulso, volta; travestido, ma volta. Estejamos atentos!

5. No Evangelho, Jesus narra muitas parábolas dirigidas sobretudo a pessoas bem-pensantes, a escribas e fariseus, com a intenção de pôr a descoberto o engano de se sentirem justos e desprezarem os outros (cf. Lc 18, 9). Por exemplo, nas chamadas parábolas da misericórdia (cf. Lc 15), narra não só os casos da ovelha perdida e do filho mais novo daquele pai infeliz, que se vê tratado como morto precisamente por este filho; são histórias que nos lembram que o primeiro modo de pecar é partir de casa, perder-se, fazer coisas claramente erradas. Mas, nas referidas parábolas, Jesus fala também da dracma perdida e do filho mais velho, com uma lição elucidativa: podemo-nos perder também em casa, como no caso da moeda daquela mulher; e é possível viver infeliz, mesmo permanecendo formalmente no recinto do próprio dever, como acontece ao filho mais velho do pai misericordioso. Se é fácil, para quem sai, dar-se conta da distância, quem fica em casa tem dificuldade para se aperceber de quanto se viva no inferno: dificuldade essa, resultante da convicção de que somos apenas vítimas, tratadas injustamente pela autoridade constituída e, em última análise, pelo próprio Deus. Quantas vezes acontece isto, aqui em casa.

A todos nós, queridos irmãos e irmãs, terá sucedido perder-se como aquela ovelha ou distanciar-se de Deus como o filho mais novo. São pecados que nos humilharam e por isso mesmo, por graça de Deus, conseguimos enfrentá-los sem evasivas. Mas a grande atenção que se nos exige neste momento da nossa existência está ligada ao facto de a nossa vida atual se desenrolar formalmente em casa, dentro dos muros da instituição, ao serviço da Santa Sé, no próprio coração do corpo eclesial; e, por isso mesmo, podemos cair na tentação de pensar que nos encontramos em segurança, somos melhores, já não devemos converter-nos.

Corremos mais perigo do que todos os outros, porque nos encontramos insidiados pelo «demónio educado», que vem sem fazer rumor, mas trazendo flores. Desculpai-me, irmãos e irmãs, se às vezes digo coisas que podem soar duras e fortes, não é por não acreditar no valor da amabilidade e da ternura, mas porque é bom reservar as carícias para os extenuados e oprimidos, e encontrar a coragem de «afligir os consolados» – como gostava de dizer o Servo de Deus D. Tonino Bello –, porque às vezes a sua consolação não é um dom do Espírito, mas engano do demónio.

6. Por fim gostaria de reservar uma última palavra para o tema da paz. Entre os títulos que o profeta Isaías atribui ao Messias, temos o de «Príncipe da Paz» (9, 5). Nunca sentimos, como neste momento, tão grande desejo de paz! Penso na martirizada Ucrânia e também em tantos conflitos que estão ocorrendo em várias partes do mundo. A guerra e a violência são sempre um falimento. A religião não se deve prestar para alimentar conflitos. O Evangelho é sempre Evangelho da paz e não se pode, em nome de Deus algum, declarar «santa» uma guerra.

Onde reinam morte, divisão, conflito, sofrimento inocente, lá podemos apenas reconhecer Jesus crucificado. E, neste momento, gostava que o pensamento de todos nós se voltasse precisamente para aqueles que mais sofrem. A isto mesmo nos podem ajudar as palavras de Dietrich Bonhoeffer, que assim escrevia do cárcere onde estava preso: «Vendo a realidade duma perspetiva cristã, não pode constituir um particular problema o facto de se passar o Natal na cela duma prisão. Provavelmente muitos, nesta casa, celebrarão um Natal mais rico de significado e mais autêntico do que acontece lá onde, desta Festa, se conserva só o nome. Um prisioneiro compreende melhor do que ninguém que miséria, sofrimento, pobreza, solidão, desamparo e culpa têm, aos olhos de Deus, um significado completamente diferente do dos juízos dos homens; que Deus volta o olhar precisamente para aqueles de quem os homens costumam afastá-lo; que Cristo nasceu num estábulo, porque não encontrara lugar na hospedaria; tudo isto, para um prisioneiro, é verdadeiramente uma feliz notícia» (Resistenza e resa, Cinisello Balsamo – Milão, 1988, 324).

7. Queridos irmãos e irmãs, a cultura da paz não se constrói apenas entre os povos e entre as nações; começa no coração de cada um de nós. Enquanto sofremos com o embravecer de guerras e violências, podemos e devemos dar a nossa contribuição para a paz, procurando extirpar do próprio coração toda a raiz de ódio e ressentimento contra os irmãos e irmãs que vivem junto de nós. Na Carta aos Efésios, lemos estas palavras (que encontramos também na Hora de Completas): «Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade. Sede, antes, bondosos uns para com os outros, compassivos; perdoai-vos mutuamente, como também Deus vos perdoou em Cristo» (4, 31-32). Podemos interrogar-nos: Quanta aspereza há no nosso coração? O que é que a alimenta? Donde nasce a indignação que muitas vezes cria distância entre nós e alimenta cólera e ressentimento? Porque é que a maledicência, em todas as suas declinações, se torna a única maneira que adotamos para falar da realidade?

Se é verdade que queremos que o clamor da guerra cesse deixando lugar à paz, então cada um comece por si mesmo. São Paulo diz-nos claramente que a benevolência, a misericórdia e o perdão são o remédio que temos para construir a paz.

A benevolência é escolher sempre a modalidade do bem para nos relacionarmos entre nós. Não existe só a violência das armas, mas também a violência verbal, a violência psicológica, a violência do abuso de poder, a violência oculta das murmurações que fazem tão mal e destroem imenso. À vista do Príncipe da Paz que vem ao mundo, deponhamos toda a arma de qualquer género. Cada um não se aproveite da própria posição e função para mortificar o outro.

A misericórdia consiste em aceitar que o outro possa ter também os seus limites. Também neste caso é justo admitir que pessoas e instituições, precisamente por serem humanas, são limitadas. Uma Igreja pura para os puros é apenas o renascimento da heresia cátara. Se não fosse assim, o Evangelho e a Bíblia em geral não nos teriam contado limitações e defeitos de muitos que hoje reconhecemos como santos.

Finalmente o perdão é conceder sempre uma nova possibilidade, ou seja, compreender que só por tentativas se consegue ser santo. É assim que Deus procede com cada um de nós: sempre nos perdoa, sempre nos põe de pé e dá ainda outra possibilidade. E deve ser assim entre nós. Irmãos e irmãs, Deus nunca Se cansa de perdoar, somo nós que nos cansamos de pedir perdão.

Toda a guerra, para ser extinta, precisa de perdão; caso contrário, a justiça torna-se vingança, e o amor acaba reconhecido apenas como uma forma de fraqueza.

Deus fez-Se criança; e esta criança, tendo crescido, deixou-Se pregar na cruz. Não há realidade mais frágil do que um homem crucificado e contudo, naquela fragilidade, manifestou-se a omnipotência de Deus. No perdão, opera sempre a omnipotência de Deus. Assim, que as prendas deste Natal sejam a gratidão, a conversão e a paz!

A todos desejo um feliz Natal! E uma vez mais peço para não vos esquecerdes de rezar por mim. Obrigado!



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