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SOLENE RITO DE BEATIFICAÇÃO DE 99 MÁRTIRES DA DIOCESE DE ANGERS (FRANÇA)
 E DO PADRE GIOVANNI MAZZUCCONI

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Basílica Vaticana
Domingo, 19 de Fevereiro de 1984

 

Caros Irmãos e Irmãs

1. "Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?" (Rom. 8, 35).

Tal é a pergunta expressa certa vez pelo Apóstolo Paulo na sua carta aos Romanos. Tinha ele então diante dos olhos os sofrimentos e as perseguições da primeira geração de discípulos, testemunhas de Cristo. As palavras de tribulação, de angústia, de fome, de nudez, de perigo, de perseguição, de suplício, de massacre "como ovelhas destinadas ao matadouro" descreviam realidades bem precisas, que eram — ou iam ser — a experiência de muitos dos que tinham aderido a Cristo, ou melhor que tinham acolhido na fé o amor de Cristo. Ele mesmo teria podido enumerar as provas pelas quais tinha passado (cf. 2 Cor. 6, 4-10), ao esperar o seu próprio martírio aqui, em Roma. E a Igreja hoje, com os mártires dos séculos XVIII e XIX, pergunta-se por sua vez "quem poderá separar-nos do amor de Cristo?".

São Paulo apressa-se em dar uma resposta certa a esta pergunta: "Nada poderá separar-nos do amor de Deus que está em Jesus Cristo, Nosso Senhor"; nada, nem a morte, nem as forças misteriosas do mundo, nem o futuro, nem criatura alguma (cf. Rom. 8, 38-39).

Dado que Deus entregou o seu Filho unigénito pelo mundo, e este Filho deu a sua vida por nós, um tal amor não será desmentido. Ele é mais forte do que tudo. Conservará na vida eterna aqueles que amaram a Deus a ponto de darem a sua vida por Ele. Os regimes que perseguem, passam. Mas esta glória dos mártires perdura. "Em tudo isto, somos nós mais que vencedores por Aquele que nos amou" (Rom. 8, 37).

2. Esta é a vitória obtida pelos mártires elevados hoje à gloria dos altares pela beatificação.

a) São eles, em primeiro lugar, os numerosíssimos mártires que, na diocese de Angers, durante a Revolução francesa, aceitaram a morte porque queriam, segundo a palavra de Guillaume Repin, "conservar a sua fé e a sua religião", firmemente apegados à Igreja católica e romana: sacerdotes, eles recusavam prestar um juramento considerado cismático, não queriam abandonar o seu encargo pastoral; leigos, eles permaneciam fiéis a estes sacerdotes, a missa celebrada por eles, aos sinais do seu culto a Maria e aos santos. Sem dúvida, num contexto de grandes tensões ideológicas, políticas e militares, pôde-se fazer pesar sobre eles suspeitas de infidelidade à pátria, tento sido, à espera das sentenças, acusados de compromissos com "as forças contra-revolucionárias"; é, aliás, o que ocorre em quase todas as perseguições, de ontem e de hoje. Mas para os homens e as mulheres cujos nomes foram marcados — entre muitos outros sem dúvida de igual modo merecedores —, o que eles verdadeiramente viveram, o que responderam aos interrogatórios dos tribunais, não deixa dúvida alguma sobre a determinação de permanecerem fiéis — com o perigo da própria vida — ao que a fé exigia deles, nem sobre o motivo profundo da sua condenação, o ódio a esta fé que os seus juízes desprezavam como "devoção insustentável" e "fanatismo". Ficamos admirados diante das respostas decisivas, calmas, breves, sinceras, humildes, que nada têm de provocatório, mas são nítidas e firmes a respeito do essencial: a fidelidade à Igreja. Assim falam os sacerdotes, todos guilhotinados como o seu venerável decano Guillaume Repin, as religiosas que não consentem mesmo deixar crer que tenham prestado juramento, os quatro homens leigos: é suficiente citar o testemunho de um deles (Antoine Fournier): "Sofreríeis, portanto, a morte em defesa da vossa religião? — Sim". De igual modo falam as oitenta mulheres, que não podem ser acusadas de rebelião armada! Alguns tinham já manifestado o desejo de antes morrer pelo nome de Jesus do que renunciar à religião (Rene Feillatreau),

Verdadeiros cristãos, eles dão testemunho também pela sua recusa de odiar os seus algozes, pelo seu perdão, pelo seu desejo de paz para todos: "Não pedi ao Bom Deus senão pela paz e a união do mundo inteiro" (Marie Cassin). Enfim, os derradeiros momentos deles manifestam a profundidade da própria fé. Alguns cantam hinos e salmos ate ao lugar do suplício; "pedem alguns minutos para fazer a Deus o sacrifício da própria vida, o que por eles era feito com tanto fervor que os seus próprios algozes se admiravam disto", Irmã Marie-Anne, Filha da Caridade, assim reconforta a sua Co-irmã: "Vamos ter a felicidade de ver a Deus, e de O possuir por toda a eternidade.. e seremos possuídas por Ele sem temor de estarmos separadas d'Ele" (testemunho do Padre Gruget).

Hoje, estes noventa e nove mártires de Angers são associados, na glória da beatificação, ao primeiro deles, o Padre Noel Pinot, beatificado há quase sessenta anos.

Sim, as palavras do Apóstolo Paulo verificam-se aqui com evidência: "Em tudo isto, somos nós mais que vencedores por Aquele que nos amou ".

b) Análogo testemunho de fé adamantina e de caridade ardente foi dado à Igreja e ao mundo pelo Padre Giovanni Mazzucconi, que consumou no martírio a sua jovem existência de sacerdote e de missionário, membro, entre os primeiros, do Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras; sentia que as missões eram "o secreto desejo" do seu coração. No horizonte da sua vida entrevia uma união ainda mais profunda com Cristo, união que o teria associado aos sofrimentos e à cruz do seu Senhor e Mestre, precisamente, por causa do seu empenho incansável na evangelização: "Feliz o dia em que me será dado sofrer muito por uma causa tão santa e tão piedosa, mas ainda mais feliz aquele em que fosse achado digno de derramar por ela o meu sangue e encontrar no meio dos tormentos a morte".

Mas, a mensagem cristã, que Mazzucconi proclamava aos indígenas de Woodlark, era uma aberta condenação da conduta deles que chegava até aos horrores do infanticídio. E, apesar da imensa caridade e da assídua dedicação do beato, a sua pregação provocava irritação e ódio. Mas ele estava sobrenaturalmente sereno, no meio das dificuldades, das febres das oposições, porque vivia intimamente unido a Deus. Parafraseando palavras de São Paulo, podia escrever: "Sei que Deus é bom e me ama imensamente. Todo o resto: a calmaria e a tempestade, o perigo e a segurança, a vida e a morte, não são senão expressões mutáveis e momentâneas do querido Amor imutável e eterno".

3. Para todos estes mártires, de épocas diversas, cumpriram-se as palavras de Cristo aos apóstolos: "Tende cuidado com os homens: hão-de entregar-vos aos tribunais...; sereis levados perante governadores... por Minha causa... O irmão entregará o seu irmão à morte... E vós sereis odiados por todos, por causa do Meu nome" (Mt. 10, 17-22). De facto, muitos dos mártires de Angers foram aprisionados na própria casa ou no seu esconderijo, porque outros os tinham denunciado. Enfureceram-se contra eles, homens e mulheres sem defesa, com um desprezo dificilmente compreensível. Conheceram a humilhação da represália e das prisões insalubres; enfrentaram tribunais e execuções sumárias.

O Padre Mazzucconi, depois, recebeu o golpe mortal de machado de um indígena, que, tendo subido à nave e aproximando-se, fingindo saudá-lo com amizade, lhe estendia a mão para ser apertada.

Tudo isto acontecerá — dizia Jesus — "para dar um testemunho a eles e aos pagãos". Sim, os nossos mártires puderam dar testemunho perante os seus juízes e os seus algozes, e diante daqueles que assistiam como espectadores ao suplício deles, a tal ponto que estes "não podiam conter-se de estar admirados e de dizer, afastando-se, que havia naquelas mortes algo de extraordinário, que só a religião pode inspirar nos últimos instantes" (Diário do Padre Simon Gruget). Jesus anunciara tal mistério: "Aquele que se mantiver firme até ao fim será salvo" (Mt. 10, 22). "E como perseverar?". Não vos preocupeis nem com o que haveis de falar nem com o que haveis de dizer; nesta altura, ser-vos-á inspirado o que tiverdes de dizer... É o Espírito do vosso Pai que falará por vós" (Mt, 10, 19-20). Sim, os que permanecem fiéis ao Espírito Santo estão seguros de poder contar com a sua força, no momento de dar testemunho de uma maneira que desconcerta os homens.

4. É mediante o poder de Deus que os mártires obtiveram vitória. Eles contemplaram a força do amor de Deus: "Se Deus é por nós, quem será contra nós?" (Rom. 8, 31). Eles fixaram o seu olhar no sacrifício de Cristo: "Deus... entregou o próprio Filho por todos nós; como não havia de nos dar também, com Ele, todas as coisas?" (Rom. 8, 32).

Numa palavra, eles participaram no mistério da Redenção, que, consumado por Cristo no Calvário, se prolonga no coração dos homens ao longo do curso da sua história. Convidei recentemente todos os fiéis da Igreja a meditarem neste sofrimento redentor. Para os mártires, a Cruz de Cristo foi, ao mesmo tempo, a fonte misteriosa da sua coragem, o sentido da sua prova, o modelo para testemunharem o amor do Pai mediante o próprio sacrifício, unido ao de Cristo, e para chegarem com Ele à ressurreição.

5. A segurança dos mártires era assim expressa pelo inspirado Autor do Livro da Sabedoria (cf. Sab. 3, 1-11): "As almas dos justos estão na mão de Deus... a sua saída deste mundo foi considerada uma desgraça, a sua morte como uma destruição: mas eles estão em paz. Se eles, aos olhos dos homens, foram atormentados, a sua esperança está cheia de imortalidade... Porque Deus, que os provou, achou-os dignos de Si". Em 1793 e 1794, para os beatos companheiros de Guillaume Repin; em 1855, para o Beato Giovanni Mazzucconi, aqueles que os faziam morrer, e em certo número dos seus compatriotas, pensavam num castigo e num aniquilamento; acreditava-se que as fossas em que tinham sido lançados em desordem seriam esquecidas para sempre. Mas eles "estão na mão de Deus". "Deus aceitou-os como holocausto. No tempo da sua recompensa os justos resplandecerão e propagar-se-ão como centelhas na palha. Dominarão os povos.., e o Senhor reinará sobre eles para sempre" (Sab. 3, 6-8). A memória da Igreja não os esquecerá: muito cedo foram venerados, escutou-se a mensagem deles, foram invocados, depositou-se confiança na intercessão deles junto de Deus. E hoje eles resplandecem, brilham aos nossos olhos, porque a Igreja sabe que são Beatos, e "habitarão com Deus no amor" (cf. Sab. 3, 9).

6. Esta Beatificação será uma etapa nova para todos nós, para a Igreja, e em particular para os Bispos, os sacerdotes, as religiosas e os fiéis das dioceses do Oeste da França, às quais pertencem estes bem-aventurados, bem como para o Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras, para a cidade de Lecco e para toda a Arquidiocese de Milão, sem esquecer a Papuásia-Nova Guiné. É para todos uma alegria profunda saber estarem junto de Deus os que lhes são próximos pelo sangue ou país, poder admirar a fé e a coragem dos seus compatriotas e dos seus co-irmãos. Mas estes mártires convidam-nos também a pensar na multidão de crentes que sofrem a perseguição ainda hoje, no mundo, de um modo oculto, lancinante, de igual modo tão grave, pois ela comporta a falta de liberdade religiosa, a discriminação, a impossibilidade de se defender, o internamento, a morte civil, como eu dizia em Lourdes em Agosto passado: a provação deles tem muitos pontos comuns com a dos nossos bem-aventurados. Enfim, devemos pedir para nós mesmos a coragem da fé, da fidelidade indefectível a Jesus Cristo, à sua Igreja, tanto no tempo de prova como na vida quotidiana. O nosso mundo muitas vezes indiferente ou ignorante espera dos discípulos de Cristo um claro testemunho, que equivale a dizer-lhe, como os mártires hoje celebrados: Jesus Cristo está vivo; a oração e a Eucaristia são essenciais para vivermos da sua vida, a devoção a Maria mantém-nos discípulos seus; a nossa adesão à Igreja não faz senão uma só coisa com a nossa fé; a unidade fraterna é o sinal por excelência dos cristãos; a verdadeira justiça, a pureza, o amor, o perdão e a paz são os frutos do Espírito de Jesus; o ardor missionário faz parte deste testemunho; não podemos conservar escondida a nossa lâmpada acesa.

7. Esta beatificação tem lugar no coração do Ano Jubilar da Redenção. Estes mártires ilustram a graça de Redenção que eles próprios receberam. Seja dada toda a glória a Deus, Pai, Filho e Espírito Santo! "Deus, nós Vos louvamos... De Vós dá testemunho a estirpe dos mártires".

Louvado seja Deus por reavivar deste modo o entusiasmo da nossa fé, da nossa acção de graças, da nossa vida! Hoje, é com o sangue dos nossos Beatos que são escritas para nós as inspiradas palavras de São Paulo: "Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? Nem a vida, nem a morte... nem o presente, nem o futuro.., nem criatura alguma, nada poderá separar-nos do amor de Deus que está em Jesus Cristo, Nosso Senhor!

Amém.

 



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