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VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL
(30 DE JUNHO - 12 DE JULHO DE 1980)

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS MORADORES DA FAVELA DO VIDIGAL
NO RIO DE JANEIRO

Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980

 

1. Quando Jesus subiu ao monte e começou a proclamar às multidões que O circundavam o seu ensinamento que costumamos chamar de Sermão da Montanha, brotaram de seus lábios antes de tudo as Bem-aventuranças. Oito bem-aventuranças, a primeira das quais declara: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).

Existe uma só montanha na Galiléia sobre a qual Jesus pronunciou as suas bem-aventuranças. Contudo, são tantos os lugares de toda a terra, onde estas mesmas afirmações são anunciadas e escutadas. E são tantos os corações que não cessam de refletir sobre o significado daquelas palavras pronunciadas de uma vez por todas. Não cessam de meditá-las. E seu único desejo é, com todo coração, pô-las em prática. Buscam viver a verdade das oito bem-aventuranças. Certamente existem em terras brasileiras muitos lugares assim. E também aqui existiram e existem muitíssimos destes corações.

Quando pensei de que maneira deveria apresentar-me diante dos habitantes desta terra que visito pela primeira vez, senti o dever de apresentar-me antes de tudo com o ensinamento das oito bem-aventuranças. E veio-me o desejo de falar destas coisas a vocês, moradores do Vidigal. Através de vocês gostaria de falar também a todos os que no Brasil vivem em condições parecidas com as de vocês. Bem-aventurados os pobres em espírito.

2 . Entre vocês são muitos os pobres. E a Igreja em terra brasileira quer ser a Igreja dos pobres. Ela deseja que neste grande país se realize esta primeira bem-aventurança do Sermão da Montanha.

Os pobres em espírito são aqueles que são mais abertos a Deus e às “maravilhas de Deus” (At 2,11). Pobres porque prontos a aceitar sempre aquele dom do alto, que provém do próprio Deus. Pobres em espírito – aqueles que vivem na consciência de ter recebido tudo das mãos de Deus como um dom gratuito, e que dão valor a cada bem recebido. Constantemente agradecidos, repetem sem cessar: “Tudo é graça!”, “demos graças ao Senhor nosso Deus”. Deles Jesus diz, ao mesmo tempo, que são “puros de coração”, “mansos”; são eles os que “têm fome e sede de justiça”, os que são frequentemente “afligidos”; os que são “operadores de paz” e “perseguidos por causa da justiça”. São eles, enfim, os “misericordiosos”(cf. Mt 5,3-10).

De fato, os pobres, os pobres em espírito são mais misericordiosos. Os corações abertos para Deus são, por isso mesmo, mais abertos para os homens. Estão prontos para ajudar prestativamente. Prontos a partilhar o que têm. Prontos a acolher em casa uma viúva ou um órfão abandonados. Encontram sempre ainda um lugar a mais no meio das estreitezas em que vivem. E assim mesmo encontram sempre um bocado de alimento, um pedaço de pão em sua pobre mesa.

Pobres, mas generosos. Pobres, mas magnânimos. Sei que existem muitos destes aqui entre vocês a quem agora faro, mas também em diversos outros lugares do Brasil.

3. As palavras de Cristo sobre os pobres em espírito fazem, porventura, esquecer as injustiças? Permitem elas que deixemos sem solução os diversos problemas que se levantam no conjunto do assim chamado problema social? Estes problemas que permanecem na história da humanidade assumem aspectos diversos nas diversas épocas da história e têm sua intensidade de acordo com a dimensão de cada sociedade em particular, assumindo ao mesmo tempo a proporção de inteiros continentes e enfim de todo o mundo. É natural que estes problemas assumam também uma dimensão própria desta terra, uma dimensão brasileira.

As palavras de Cristo declarando felizes “os pobres em espírito” não visam suprimir todos estes problemas. Ao contrário: elas os colocam em evidência, focalizando-os neste ponto mais essencial que é o homem, que é o coração inumano, que é cada homem sem excepção. O homem diante de Deus e, ao mesmo tempo, diante dos outros homens.

Pobre em espírito não significa exatamente “o homem aberto aos outros”, isto é, a Deus e ao próximo?

Não é verdade que esta bem-aventurança dos “pobres em espírito”, contém ao mesmo tempo uma advertência e uma acusação? Não é certo que ela diz aos que não são “pobres em espírito” que eles se encontram fora do Reino de Deus, que o Reino de Deus não é e não será participado por eles? Pensando em tais homens que são “ricos”, fechados a Deus e aos homens, sem misericórdia... não dirá Cristo em outra passagem: “ai de vós?”. “Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome. Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis. Ai de vós, quando todos os homens disserem bem de vós. Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas”(Lc 6,24-26).

“Ai de vós” – esta palavra soa severa e ameaçadoramente, sobretudo na boca deste Cristo que costumava falar com bondade e mansidão e costumava repetir: “Bem-aventurados”. E contudo dirá também: “Ai de vós”.

4. A Igreja em todo o mundo quer ser a Igreja dos pobres. A Igreja em terras brasileiras quer também ser a Igreja dos pobres – isto é, quer extrair toda a verdade contida nas bem-aventuranças de Cristo e sobretudo nesta primeira – “bem-aventurados os pobres em espírito...”. Quer ensinar esta verdade e quer pô-la em prática, assim como Jesus veio fazer e ensinar.

A Igreja deseja, pois, extrair do ensinamento das oito bem-aventuranças tudo aquilo que nelas se refere a cada homem: àquele que é pobre, que vive na miséria, àquele que vive em abundância e bem-estar e, enfim, àquele que possui excessivamente e que tem de sobra. A mesma verdade da primeira bem-aventurança refere-se a cada um de modo diverso.

Aos pobres – àqueles que vivem na miséria – ela diz que estão particularmente próximos de Deus e de Seu reino. Mas, ao mesmo tempo, diz que não lhes é permitido – como não é permitido a ninguém – reduzirem-se arbitrariamente à miséria a si próprios e às suas famílias: é necessário fazer tudo aquilo que é lícito para assegurar a si e aos seus tudo aquilo que é necessário à vida e à manutenção. Na pobreza é necessário conservar sobretudo a dignidade humana, e também aquela magnanimidade, aquela abertura do coração para com os outros, a disponibilidade pela qual se distinguem exatamente os pobres – os pobres em espírito.

Àqueles que vivem na abundância ou ao menos em um relativo bem-estar, para a qual têm o necessário (ainda que talvez não lhes sobre grande coisa!), a Igreja, que quer ser a Igreja dos pobres, diz: Usufruí os frutos do vosso trabalho e de uma lícita industriosidade, mas, em nome das palavras de Cristo, em nome da fraternidade inumana e da solidariedade social, não vos fecheis em vós mesmos! Pensai nos mais pobres! Pensai naqueles que não têm o suficiente, que vivem na miséria crônica, que sofrem fome! E partilhai com eles! Partilhai de modo programático e sistemático. A abundância material não vos prive dos frutos espirituais do Sermão da Montanha, não vos separe das bem-aventuranças dos pobres em espírito.

E a Igreja dos pobres diz o mesmo, com maior força, àqueles que têm de sobra, que vivem na abundância, que vivem no luxo. Diz-lhes: Olhai um pouco ao redor! Não vos dói o coração? Não sentis remorso na consciência por causa de vossa riqueza e abundância? Se não – se quereis somente “ter” sempre mais, se o vosso ídolo são o lucro e prazer – recordai que o valor do homem não é medido segundo aquilo que ele “têm”, mas segundo aquilo que ele “é”. Portanto, aquele que acumulou multo e acha que tudo se resume nisto, lembre-se de que pode valer (no seu íntimo e aos olhos de Deus) muito menos do que algum daqueles pobres e desconhecidos – que talvez possa “ser muito menos homem” do que ele.

A medida das riquezas, do dinheiro e do luxo não é equivalente à medica da verdadeira dignidade do homem.

Portanto, àqueles que têm em superabundância evitem o fechar-se em si mesmos, o apego à própria riqueza, a cegueira espiritual. Evitem tudo isto com todas as forças. Não cesse de acompanhá-los toda a verdade do Evangelho e sobretudo a verdade contida nestas palavras:

“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus...” (Mt 5,3).

Que esta verdade os inquiete.

Seja para eles uma admoestação contínua e um desafio.

Não lhes permita nem ao menos por um minuto tornarem-se cegos pelo egoísmo e pela satisfação dos próprios desejos.

Se tens muito, se tens tanto, recorda-te que deves dar muito, que há tanto que dar. E deves pensar como der, como organizar toda a vida sócio-econômica e cada um dos seus setores, a fim de que esta vida tenda à igualdade entre os homens e não a um ateísmo entre eles.

Se conheces muito e estás colocado no alto da hierarquia social, não te deves esquecer, nem sequer por um segundo, de que, quanto mais alto alguém está, mais deve servir! Servir aos outros. De outra forma encontrar-te-ás em perigo de afastar a ti e tua vida do campo das bem-aventuranças e em particular da primeira delas: “Bem-aventurados os pobres em espírito”. São “pobres em espírito” também os “ricos” que, à medica da própria riqueza, não cessam de “der-se a si mesmos” e de “servir aos outros”.

5. Assim, pois, a Igreja dos pobres fala primeiro e acima de tudo ao homem. A cada homem e por isto a todos os homens. É a Igreja universal. A Igreja do Mistério da Incarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só casta. E fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista. Tenhamos em conta cada realidade inumana, cada injustiça, cada tensão, cada luta. A Igreja dos pobres não quer servir àquilo que causa as tensões e fez explodir a luta entre os homens. A única luta, a única batalha a que a Igreja quer servir é a nobre luta pela verdade e pela justiça e a batalha pelo bem verdadeiro, a batalha na qual a Igreja é solidária com cada homem. Nesta estrada, a Igreja luta com a “espada da palavra”, não poupando os encorajamentos, mas também as admoestações, às vezes multo severas (tal como Cristo o fez). Muitas vezes até ameaçando e demonstrando as consequências da falsidade e do mal. Nesta sua luta evangélica, a Igreja dos pobres não quer servir a fins imediatos políticos, às lutas pelo poder, e ao mesmo tempo procura com grande diligência que suas palavras e ações não sejam usadas para tal fim, que sejam “instrumentalizadas”.

A Igreja dos pobres fala, pois, ao “homem”: a cada homem e a todos. Ao mesmo tempo fala às sociedades, às sociedades na sua globalidade e às diversas camadas sociais, aos grupos e profissões diversas. Fala igualmente aos sistemas e às estruturas sociais, sócio-econômicas e sócio-políticas. Fala a língua do Evangelho, explicando-o também à luz do progresso da ciência inumana, mas sem introduzir elementos estranhos, heterodoxos, contrários ao seu espírito. Fala a todos em nome de Cristo, e fala também em nome do homem (particularmente àqueles aos quais o nome de Cristo não diz tudo, não exprime toda a verdade sobre o homem que este nome contém).

A Igreja dos pobres fala, pois, assim: Fazei tudo, Vós, particularmente, que tendes poder de decisão, Vós dos quais depende a situação do mundo, fazei tudo para que a vida de cada homem, na vossa terra, se torne “mais humana”, mais digna do homem!

Fazei tudo a fim de que desapareça, ao menos gradativamente, aquele abismo que separa os “excessivamente ricos”, pouco numerosos, das grandes multidões dos pobres, daqueles que vivem na miséria. Fazei tudo para que este abismo não aumente mas diminua, para que se tenda à igualdade social. A fim de que a distribuição injusta dos bens ceda o lugar a uma distribuição mais justa...

Fazei-o por consideração a cada homem que é o vosso próximo e vosso concidadão. Fazei-o por consideração ao bem comum de todos. E fazei-o por consideração a vós mesmos. Só tem razão de ser a sociedade socialmente justa, que se esforça por ser sempre mais justa. Somente tal sociedade tem diante de si o futuro. A sociedade que não é socialmente justa e não ambiciona tornar-se tal, põe em perigo o seu futuro. Pensai, pois, no passado e olhai para o dia de hoje, e projetai o futuro melhor da vossa inteira sociedade!

Tudo isto se inclui no que disse Cristo no Sermão da Montanha. No conteúdo desta única frase: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus”.

Queridos irmãos e irmãs:

Com esta mensagem, renovo meus sentimentos de profundo afeto, e em penhor de abundantes graças de Deus para vocês e suas famílias, deixo-lhe a minha Bênção Apostólica.

Desejei visitar em vocês do Vidigal, todos os favelados onde quer que se encontrem, no dileto Brasil, que agora percorro em peregrinação apostólica. Ao vir aqui, interessai-me, como Pai e Pastor, preocupado pela sorte de filhos multo amados, e perguntei sobre todos e sobre tudo aqui nesta favela.

Falaram-me de vocês e como no meio de carências, lutas e agruras, há solidariedade e ajuda mútua entre todos, graças a Deus. Falaram-me também do “mutirão”, graças ao qual ficou pronta a capela que daqui a pouco vou benzer. É sempre lindo e importante que as pessoas todas se unam, se dêem as mãos, somem esforços e, juntas, consigam o que sozinhas não podem alcançar.

Regozijo-me com quantos, direta ou indiretamente, na área desta favela, conseguiram resolver, de modo justo e pacífico, questões que, arrumadas, não deixarão de contribuir para fazer a vida de todos mais inumana e para tornar esta cidade maravilhosa sempre mais cidade de irmãos.

Vim aqui, não por curiosidade, mas porque amo vocês e lhes quero bem e desejaria dizer, com São Paulo: “Pela afeição que sentíamos por vós, desejávamos compartilhar convosco, não só o Evangelho, mas a própria vida”(cf. 1Ts 2,8). Junto com vocês, com um “coração puro” de maus sentimentos, quereria dizer sempre não á indiferença, ao desinteresse, e a todas as formas de desamor; e sim à solidariedade, à fraternidade e ao amor porque “Deus é amor”(1Jo 4,16).

E assim, saúdo vocês, as suas famílias, em especial os jovens e crianças, e a todos aqui do Vidigal, dizendo que penso e rezo por vocês, para a divina Providência ser secundada pelas providências humanas, para que vocês melhorem sua vida.

E agora, vou abençoar a todos.

 



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