CARTA DO PAPA FRANCISCO
AOS BISPOS DA ÍNDIA PARA PROVIDENCIAR
A CURA PASTORAL DOS FIÉIS SÍRIO-MALABARES
Amados irmãos no Episcopado!
1. A admirável varietas Ecclesiarum, resultado do longo desenvolvimento histórico, cultural, espiritual e disciplinar, constitui um tesouro da Igreja, «regina in vestitu deaurato circumdata varietate»,[1] que espera o seu esposo com a fidelidade e a paciência da virgem sábia, com uma abundante reserva de óleo para que a luz da sua lâmpada possa iluminar todas as pessoas na longa noite da espera da chegada do Senhor.
Entre as terras e as nações, nas quais esta variedade da vida eclesial resplandece com grande esplendor, encontra-se também a Índia. A Igreja católica na Índia tem a sua origem na pregação do Apóstolo Tomé, e desenvolveu-se através dos contactos com as Igrejas de tradição caldeia e antioquena e, a partir do século XVI, graças aos esforços enviados pelos missionários latinos. Deste modo, a história do cristianismo neste grande país levou finalmente à configuração de três distintas Igrejas sui iuris, que correspondem a expressões eclesiais da mesma fé celebrada em diferentes ritos, correspondentes às três tradições litúrgicas, espirituais, teológicas e disciplinares. Não obstante ao longo da história esta situação tenha manifestado por vezes algumas tensões, hoje podemos admirar uma realidade cristã rica e formosa, complexa e ao mesmo tempo única.
2. Para a Igreja católica é essencial mostrar o seu semblante ao mundo em toda a sua beleza, ou seja, com a riqueza das suas tradições. Por este motivo, a Congregação para as Igrejas Orientais, que este ano celebra o seu centenário, desejada pela clarividência do Papa Bento XV em 1917, deu impulso ao restabelecimento, onde era necessário, das tradições católicas orientais, garantindo a salvaguarda e o respeito pela dignidade e pelos direitos destas antigas Igrejas.
3. O Concílio Vaticano II abraçou esta visão da Igreja e recordou a todos os fiéis a necessidade de guardar e preservar o tesouro da tradição particular de cada uma das Igrejas. «É também por isso que na comunhão eclesial existem legitimamente Igrejas particulares com tradições próprias, sem detrimento do primado da cátedra de Pedro, que preside à universal assembleia da caridade,[2] protege as legítimas diversidades e vigia para que as particularidades ajudem a unidade e não a prejudiquem de forma alguma».[3]
4. Como indica a Lumen gentium, compete ao Bispo de Roma favorecer a unidade na diversidade do Corpo de Cristo. Nesta tarefa, os Romanos Pontífices são fiéis intérpretes e executores da voz do Concílio Vaticano II, que exprime o desejo ardente de que as Igrejas Orientais, veneradas pela sua antiguidade, «floresçam e realizem com novo vigor apostólico a missão que lhes foi confiada»;[4] não somente para que se tornem cada vez mais instrumento daquela «peculiar obrigação de favorecer... a unidade de todos os cristãos, principalmente dos orientais»,[5] mas também, em virtude da «igual dignidade de que gozam [...], elas têm as mesmas obrigações, inclusive no que diz respeito à pregação do Evangelho no mundo inteiro».[6]
Há trinta anos o meu predecessor, de feliz memória, São João Paulo II, escreveu uma carta aos Bispos da Índia. Inspirando-se no Concílio Vaticano II, ele procurou aplicar o ensinamento conciliar no contexto indiano. Nesse país, mesmo depois de muitos séculos, os cristãos só constituem uma pequena parte da população e, por conseguinte, existe uma particular necessidade de manifestar a unidade e de evitar todas as aparências de divisão. No entanto, o santo Pontífice afirmou que esta carência de unidade e a preservação da diversidade não se opõem uma à outra. «Esta necessidade de ser fiél às tradições e à herança do próprio rito não pode, de maneira alguma, ser considerada como uma interferência na tarefa da Igreja, que consiste em “reconduzir à unidade todos os filhos de Deus dispersos pelo mundo” (Jo 11, 52), e nem sequer na missão da Igreja de promover a comunhão de todas as pessoas com o Redentor».[7]
5. Há cinco décadas, quando a Igreja sírio-malabar se difundiu em alguns territórios da Índia central e setentrional, mediante as «eparquias missionárias», era convicção geral dos Bispos latinos dispor de uma única jurisdição, ou seja, um bispo num determinado território. Hoje estas eparquias desmembradas das dioceses latinas têm uma jurisdição exclusiva sobre aqueles territórios, tanto sobre os fiéis latinos como sobre os sírio-malabares. Todavia, graças à experiência destas últimas décadas, que se desenvolveu quer nos territórios tradicionais das Igrejas orientais, quer no vasto mundo da chamada diáspora, onde estes fiéis se estabeleceram há tempos, a experiência de uma colaboração fecunda e harmoniosa entre os bispos católicos de diferentes Igrejas sui iuris num mesmo território demonstra não apenas uma justificação eclesiológica, mas também a utilidade pastoral desta solução. Num mundo em que um grande número de cristãos são obrigados a imigrar, as jurisdições sobrepostas já se tornaram habituais, revelando-se cada vez mais como instrumento eficaz para assegurar o cuidado pastoral aos fiéis, no pleno respeito pelas suas tradições eclesiais.
6. Também na Índia, as jurisdições sobrepostas já não deveriam representar um problema. Desde há tempos a vossa Igreja vive esta experiência, por exemplo em Kerala. A carta de São João Paulo II autorizava a ereção de uma eparquia sírio-malabar na região de Bombaim-Pune, que depois se tornou a Eparquia de Kalyan. Em 2012, a Eparquia de Faridabad dos sírio-malabares foi erigida na região de Deli e nos Estados confinantes; entretanto, os confins da Eparquia de Mandya foram ampliados em 2015, para abranger a área metropolitana de Bangalore. Nesse mesmo ano, foi erigida uma Eparquia e um Exarcado Apostólico para os fiéis sírio-malancares, de tal modo que, com estas Circunscrições Eclesiásticas, a Igreja sírio-malancar cuida dos seus fiéis no inteiro território da Índia.
Todos estes passos demonstram que, embora não sem problemas, dispor de mais bispos num mesmo território não compromete a missão da Igreja; pelo contrário, estes passos conferiram mais energia às Igrejas locais, para os seus esforços pastorais e missionários.
7. Em 2011, o meu predecessor Bento XVI manifestou a intenção de providenciar as necessidades pastorais dos fiéis sírio-malabares na Índia inteira, e eu mesmo, a seguir à sessão plenária da Congregação para as Igrejas Orientais, confirmei esta orientação em 2013. Atualmente existe um Visitador Apostólico para os fiéis sírio-malabares residentes na Índia fora do território próprio, na pessoa de Sua Excelência Reverendíssima D. Raphael Thattil, que forneceu relatórios detalhados à Sé Apostólica. Muitos encontros, nos níveis mais elevados da Igreja, continuaram a examinar esta questão. Agora, depois destes passos, considero que o tempo está maduro para completar este processo.
Portanto, autorizei a Congregação para as Igrejas Orientais a providenciar o cuidado pastoral dos fiéis sírio-malabares em toda a Índia, através da ereção de duas Eparquias e da extensão das fronteiras de duas já existentes.
Além disso, determino que tanto as novas Circunscrições como as já existentes sejam confiadas ao Arcebispo-Mor de Ernakulam-Angamaly e ao Sínodo dos Bispos da Igreja sírio-malabar, segundo a norma do CCEO.
8. Faço votos a fim de que esta minha decisão seja recebida com espírito generoso e sereno, não obstante possa constituir um motivo de apreensão para alguns, uma vez que numerosos sírio-malabares, durante anos desprovidos do cuidado pastoral no rito que lhes é próprio, estão completamente imersos na vida da Igreja latina. No entanto, estou persuadido de que todas as partes interessadas hão de demonstrar que não há necessidade de se preocupar: a vida da Igreja não será abalada pelas medidas em questão. Com efeito, esta nossa providência não deve ser interpretada negativamente, como uma imposição aos fiéis de deixar as comunidades nas quais encontraram acolhimento, às vezes por várias gerações, e para as quais contribuíram de diversas maneiras, mas sobretudo como um convite e, ao mesmo tempo como uma oportunidade de realizar o crescimento na fé e na comunhão com a própria Igreja sui iuris, conservando aquela inestimável herança ritual da qual são portadores, transmitindo-a inclusive às gerações vindouras. Já no contexto da Eparquia de Faridabad, uma Instrução da Congregação para as Igrejas Orientais indicou que um fiel sírio-malabar, em virtude da própria lei, é membro da paróquia sírio-malabar onde tem o seu domicílio (CCEO, cân. 280 § 1), mas também pode, ao mesmo tempo, participar plenamente na vida e nas atividades da paróquia da Igreja latina. Não é exigida dispensa alguma da lei em vigor, para que os fiéis possam dar continuidade pacífica e serena à sua vida de fé, mas com a solicitude dos pastores, tanto latinos como sírio-malabares.[8]
9. O caminho da Igreja católica na Índia não pode consistir no isolamento e na separação, mas principalmente no respeito e na colaboração. A presença de diversos bispos das várias Igrejas sui iuris num mesmo território poderá certamente ser motivo de belíssima e vivificante comunhão e testemunho. Esta é a visão do Concílio Vaticano ii, que cito mais uma vez: «Daí [derivam], finalmente, os laços de íntima união entre as diversas partes da Igreja, quanto às riquezas espirituais, obreiros apostólicos e ajudas materiais. Pois os membros do Povo de Deus são chamados a repartir entre si os bens, valendo para cada Igreja as seguintes palavras do Apóstolo: “Cada um ponha ao serviço dos outros o dom que recebeu, como bons administradores da multiforme graça de Deus” (1 Pd 4, 10)».[9] Neste espírito, exorto todas as amadas Igrejas que vivem na Índia a ter generosidade e coragem de dar testemunho do Evangelho em espírito de fraternidade e de amor mútuo. Para a Igreja sírio-malabar, isto consiste na continuação do inestimável trabalho dos seus sacerdotes e religiosos nos ambientes latinos e na disponibilidade àqueles fiéis sírio-malabares que, não obstante tenham preferido frequentar as paróquias latinas, pedem algum tipo de assistência à sua Igreja de origem. Da parte dos latinos, esta generosidade pode adquirir a forma de acolhimento, nos seus edifícios, das comunidades sírio-malabares que ainda não providenciaram aos próprios. Além disso, deve prosseguir a cooperação entre todas as Igrejas sui iuris, como retiros e seminários para o clero, congressos sobre a Bíblia, celebração das festas comuns e esforços no campo do ecumenismo. Com o crescimento de amizades espirituais e da assistência recíproca, todas as tensões ou apreensões deveriam ser superadas rapidamente. Esta extensão dos espaços pastorais da Igreja sírio-malabar não seja sentida de forma alguma como um aumento de espaços de poder e de domínio, mas como o chamamento a viver uma comunhão mais profunda, que nunca pode ser entendida como uniformidade. Com as palavras do santo bispo Agostinho, cantor da Trindade e da admirável comunhão do Pai e do Filho e do Espírito, também eu vos recomendo, vos suplico: «Dilatentur spatia caritatis».[10] Que se dilatem o amor, a comunhão e o serviço.
Amados irmãos no Episcopado, confio cada um de vós à intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria, asseguro-vos a minha proximidade e as minhas orações. Concedo a minha Bênção apostólica a vós, à Igreja na Índia e ao seu nobre povo, peço-vos que não vos esqueçais de mim nas vossas preces.
Vaticano, 9 de outubro de 2017
Francisco
[1] Tirado do Salmo 44, citado também por Leão XIII na introdução da sua Carta Apostólica Orientalium dignitas, de 30 de novembro de 1894.
[2] Cf. Santo Inácio Mártir, Ad Rom., Praef.: ed. Funk I, p. 252.
[3] Concílio Ecum. Vaticano II, Constituição dogmática Lumen gentium, 13.
[4] Concílio Ecum. Vaticano II, Decreto Orientalium Ecclesiarum, 1.
[7] Epistula ad Indiae Episcopos, die 28 maii 1987.
[8] Cf. Prot. n. 197/2014 de 28 de janeiro de 2016.
[9] Concílio Ecum. Vaticano II, Constituição dogmática Lumen gentium, 13.
[10] Santo Agostinho, Sermo 69: pl 5, 440.441.
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