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VISITA PASTORAL A BOLONHA E EMÍLIA ROMANHA
18 DE ABRIL DE 1982

SANTA MISSA EM BOLONHA

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Domingo, 18 de Abril de 1982 

 

1. "Esta é a vitória que vence o mundo: A nossa fé" (1 Jo 5, 4).

Na liturgia da hodierna Oitava da Páscoa fala-nos sobretudo o evangelista João, Apóstolo e testemunha. Testemunha ocular do Ressuscitado.

E suas são as palavras pronunciadas no início referentes à fé como vitória que vence o mundo.

Reflectindo atentamente sobre o conjunto dos textos litúrgicos deste domingo, podemos encontrar neles como uma "genealogia" destas palavras, fortes e determinantes.

2. Acontece que João, como todos os Apóstolos, participa nos acontecimentos pascais que tiveram lugar em Jerusalém entre a Quinta-Feira Santa e o "primeiro dia da semana". Ele é testemunha ocular da morte de Cristo: o único entre os Apóstolos a encontrar-se ao lado da Mãe de Jesus, juntamente com algumas mulheres que seguiam o Mestre. É testemunha da morte e da sepultura.

É também uma das primeiras testemunhas do sepulcro vazio. Quando Maria de Magdala correu a dar a notícia aos Apóstolos, ele, indo com Pedro, foi o primeiro a chegar ao sepulcro. E então escrevia: "Viu e acreditou" ( Jo 20, 8), acrescentando logo: ."Não tinham, efectivamente, entendido ainda a Escritura, segundo a qual Ele devia ressuscitar dos mortos" ( ib. 20, 9).

Ele sabe da ressurreição não só pela Escritura, mas também pela visão directa. Foi testemunha ocular. Um dia escreverá na sua Carta sobre o que os Apóstolos, inclusive ele, ouviram, viram com os próprios olhos, contemplaram e apalparam com as próprias mãos (cf. 1 Jo 1, 1).

3. João, por conseguinte, é testemunha da primeira vinda de Cristo entre os Apóstolos, depois da ressurreição.

Deste modo a imagem, que ele traz na memória, é completa. Fazendo referência ao Salmo da liturgia de hoje, poder-se-iam referir a Cristo as palavras:

"Empurraram-me violentamente para cair, / Mas o Senhor amparou-me" ( Sl 117/118, 13).

João foi testemunha ocular de ambos os factos: quer do momento em que o seu Mestre foi "empurrado violentamente" para o abismo da morte, quer, em seguida, do momento em que "o Senhor o amparou" mediante "a ressurreição dos mortos". Todo o mistério da Páscoa se realizou sob os olhos de João, Apóstolo e Evangelista.

O Mistério da Páscoa revelou-se aos seus olhos como " a vitória que vence o mundo".

Vence o mundo com a sua realidade objectiva.

E trouxe a vitória também para as mentes e os corações dos homens. Primeiro, daqueles mais próximos, que — como ele — "não tinham... entendido a Escritura", ou seja tudo o que no Antigo Testamento prenunciava a ressurreição. A eloquência da morte de Cristo — e ainda para mais daquela terrível morte na cruz — foi tão esmagadora, tão humanamente "convincente" e unívoca, a ponto de lhes tornar difícil aceitar esta noticia, inaudita realidade: primeiro o sepulcro vazio, e depois Cristo entre os vivos " inter mortuos vivens".

4. João foi testemunha da primeira vinda do Ressuscitado ao Cenáculo "na tarde desse dia, o primeiro da semana". Foi também testemunha da incredulidade de Tomé. Tomé não estava com os Apóstolos no Cenáculo naquela primeira tarde. Quando os outros lhe disseram: "Vimos o Senhor!" (Jo 20, 25), reagiu de modo bastante significativo. Eis as suas palavras bem conhecidas: "Se eu não vir o sinal dos cravos nas Suas mãos, se não meter o dedo no lugar dos cravos e não meter a mão no Seu lado, não acreditarei" (ib. 20, 25).

Oito dias depois, João foi testemunha do acontecimento, que descreveu de modo muito pormenorizado. Cristo veio outra vez ao Cenáculo, estando as portas fechadas, e, depois de ter saudado os Apóstolos, dirigiu-se directamente a Tomé. Dirigiu-se-lhe como se conhecesse a sua reacção de uma semana antes e tivesse ouvido as palavras então pronunciadas por Tomé. "Chega aqui", disse Jesus, "o teu dedo e vê as Minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no Meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente!" ( ib. 20, 27).

João viu tudo isto com os próprios olhos. E ouviu com os próprios ouvidos também a resposta de Tomé: "Meu Senhor e meu Deus!" (ib. 20, 28), uma profissão de fé na Divindade de Cristo, que é talvez ainda mais resoluta e imediata do que a de Pedro em Cesareia de Filipe!

E por fim as palavras do Senhor: "Porque Me viste, acreditaste. Bem-aventurados os que, sem terem visto, acreditaram!" ( ib. 20, 29).

Precisamente baseado em tais experiências, João havia de descobrir os pensamentos e as palavras, escritos na sua primeira Carta: "Esta é a vitória que vence o mundo: A nossa fé". Tal parece ser a primeira "genealogia" destas palavras de João, Apóstolo e Evangelista, que lemos na liturgia de hoje.

5. " Todo o que nasce de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: A nossa fé. Quem é que vence o mundo senão aquele que crê que Jesus é Filho de Deus?" ( 1 Jo 5, 4-5).

O homem contemporâneo pode perguntar-se: É realmente necessário vencer o mundo? Não se trata só e exclusivamente de "organizar o mundo", e de "organizar-se no mundo"!

Por acaso não se porá tal pergunta o homem contemporâneo? Sim, ele pensa deste modo. Antes, considera esta pergunta fundamental e definitiva. Façamo-la, pois, também nós agora, para vermos o alcance que tem o seu justo sentido.

Dado que o Criador disse ao ser humano, homem e mulher: Dominai a terra (cf. Gén 1, 28), então, sem dúvida alguma, o dever do homem e do cristão é "organizar o mundo". O ensinamento do último Concílio está cheio de pensamentos autenticamente cristãos a este propósito.

Também na liturgia de hoje, a primeira leitura, tirada dos Actos dos Apóstolos, mostra como a primeira geração dos discípulos de Cristo, já em Jerusalém, entendia cristãmente "organizar-se no mundo":

"Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum... Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, conforme a necessidade que tivesse" (Act 4, 32.34-35).

De tal modo procuram "organizar o seu mundo" aqueles, no meio dos quais os Apóstolos com grande poder "davam testemunho da Ressurreição do Senhor Jesus, gozando todos de grande simpatia" ( ib. 4, 33).

Sabe-se que desde os tempos mais remotos, permanece na Igreja a firme convicção sobre o destino dos bens materiais para a "utilidade comum", sobre a subordinação deles para o bem comum: assunto, que sempre, mas sobretudo no último século, se tornou tão vital.

E sabe-se também, por exemplo pelas Cartas de São Paulo, como era apreciado e como era compreendido o trabalho. A mesma coisa díga-se no que se refere ao matrimónio, à vida familiar. São todas componentes humanas, que poderiam ser vistas como resposta concreta ao interrogativo sobre o modo como "organizar o mundo" e como "organizar a vida humana no mundo".

6. Em tais condições, primeiro os apóstolos e depois os seus sucessores, de geração em geração, incessantemente e "com grande poder davam testemunho da Ressurreição do Senhor", um testemunho que, ao mesmo tempo, não deixa de ser desafio que acompanha a vitória que vence o mundo (cf. 1 Jo 5, 4).

Esta vitória é algo mais do que "organizar o mundo", isto é aceitá-lo como um bem vindo das mãos do Criador, que foi reconfirmado e de novo dado ao homem por Aquele que amou e "remiu o mundo".

A ressurreição de Cristo — e a fé nascida da mesma, como escreve maravilhosamente o apóstolo João — foi ao mesmo tempo a confirmação de que o homem não pode limitar-se apenas a "organizar a sua vida no mundo".

O homem não pode entregar-se total e definitivamente a si próprio nem a própria essência ao mundo, mesmo julgando que, fazendo-o, reentra de maneira exclusiva e completa em plena posse de si mesmo. É uma grande ilusão do pensamento materialista contemporâneo.

De facto o mundo, em definitivo, atraiçoa o homem. No fim, para o ser humano não existe outra palavra senão a palavra "morte" — a realidade da morte.

A realidade da morte é um grande tema da existência humana. É um daqueles temas-chaves, com os quais é necessário abrir o enigma da ausência do homem. Algumas orientações do pensamento contemporâneo, não necessariamente cristãs, encontram de novo esta chave.

E também cada um de nós a encontra quotidianamente e sempre de novo, embora nem sempre saiba que esta é também a chave da sabedoria: a chave do interrogativo sobre o homem, sobre a essência mesma do homem e da sua dignidade.

Às vezes a morte atinge-nos como uma grande ruína. Assim aconteceu, por exemplo, nesta cidade, há quase dois anos, quando mãos assassinas fizeram ir pelos ares uma ala da estação ferroviária e precedentemente causaram a destruição do combóio "Italicus", para não falar da mais remota de Marzabotto. Em tais casos ficamos transtornados, falamos de uma catástrofe, de um grande drama... e com razão. É assim. O elemento essencial da dramaticidade da existência humana no mundo é a morte.

Deste modo, ou noutro, o mundo deixa de ser a dimensão adequada da existência humana. O homem separa-se dela. O mundo, o mundo visível, repele-o da sua superfície. Poder-se-ia dizer: "tem sobre ele, sobre o homem, a sua vitória". Se é verdade que o ser humano pertence completamente ao mundo, em tal caso o mundo, mediante a morte, submete-o completamente a si, tem sobre ele a própria vitória.

Pode tratar-se, então, apenas do facto que o homem se "organize no mundo"?

7. Quando o Apóstolo e Evangelista João escreve: "A vitória que vence o mundo: A nossa fé" (1 Jo 5, 4), afirma com estas palavras que o ser humano não pertence completamente ao mundo: pertence a Deus. A ressurreição de Jesus Cristo voltou a confirmar esta verdade fundamental sobre o homem. Eram necessárias a morte e a ressurreição de Jesus para que o homem reconhecesse o sentido definitivo da sua transcendência. Para que compreendesse que deve "organizar o mundo" e pode também (e deve) "organizar-se no mundo", sem porém lhe entregar completamente a própria essência. Sem abandonar-se a ele. O homem pode confiar-se apenas a Deus. Como fez Jesus Cristo.

A morte e a ressurreição de Cristo são um incessante desafio ao homem na sua essência humana, na sua humanidade. E na sua relação com o mundo, no seu estilo de vida.

Vós, caros Irmãos e Irmãs, como viveis? Como vivemos todos nós? O horizonte da nossa vida não se limita apenas ao desejo de "organizar-se no mundo"? Não damos porventura completamente a este mundo a nossa essência humana?

A morte de cada homem é um desafio para os outros. A morte violenta de tantos dos nossos irmãos, que morreram na explosão na estação de Bolonha, foi um desafio para toda a cidade, para a sociedade italiana, para os outros...

E a morte de Cristo, juntamente com a ressurreição, é um desafio e ao mesmo tempo um apelo.

Ei-la, a "vitória que vence o mundo".

8. O cristianismo não é um "conjunto de museu". Não pode er considerado como tradição tolerável só enquanto não impedir de "organizar-se neste mundo". Não o é. Não o é de modo algum!

É, antes, uma grande realidade: é a realidade de Jesus Cristo para cada homem. E a realidade que toca sempre e continuamente o problema do homem. Toca-o exactamente no ponto, que muitos pelo contrário evitam. Os sistemas de pensamento e as ideologias iludem-no de modo sistemático, afirmando ao mesmo tempo representarem o progresso.

E Jesus Cristo, incessantemente — mediante a sua morte e ressurreição —, põe diante do homem e da humanidade o problema da "vitória que vence o mundo". E o homem deve escolher: ou existir neste mundo como aquele que será em definitivo Vencedor, ou como aquele que será em definitivo vencido pelo mundo.

Esta é a escolha mais importante para o futuro do homem. Também para a paz e a guerra. Também para a justiça social. E, sobretudo, é a opção fundamental para a moral, para a cultura e para a dignidade do homem.

9. "Todo o que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus" ( 1 Jo 5, 1).

O homem tem uma sua grande genealogia, que por Cristo foi reconfirmada com o Evangelho e sigilada com a morte e a ressurreição.

O homem tem a sua grande genealogia, no nome da qual não pode entregar ao mundo toda a sua essência.

Não pode confiar apenas à "matéria cósmica" esta imagem e semelhança com Deus, que traz em si.

O homem tem a sua grande genealogia que celebramos todos os anos, de modo particular quando celebramos o mistério pascal de Cristo.

No nome desta genealogia — todo o que "ama aquele que gerou ama também quem d'Ele nasceu" (1 Jo 5, 1).

É realmente assim? Amamos todos os que foram gerados por Deus? Cada um que foi concebido no seio da mãe?

10. Hoje, na liturgia, fala sobretudo João, testemunha de Cristo ressuscitado. São estas as suas outras palavras: "Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: Quando amamos a Deus e guardamos os Seus mandamentos. Porque este é o amor de Deus: Que guardemos os Seus mandamentos; e os Seus mandamentos não são pesados" (1 Jo 5, 2-3).

Assim escreve João, testemunha da ressurreição de Cristo. A ressurreição dá testemunho do amor — o testemunho da ressurreição realiza-se mediante o amor: o amor de Deus e do homem.

A vitória que vence o mundo obtém-se, em definitivo, mediante o amor. A fé, de facto, conduz ao amor e vive graças ao amor. Graças ao amor, respira com o hálito do Espírito. "E o Espírito é o que testifica, porque o Espirito é a verdade" (1 Jo 5, 6).

O amor constitui também a força insubstituível da construção de uma cultura, na construção do mundo, em que o homem vive na medida da sua verdadeira dignidade. Assim, portanto, aquela "vitória que vence o mundo" diz . respeito contemporaneamente ao mundo: um mundo sempre "melhor", em que a vida humana é também mais humana.

Disto sabiam Dante Alighieri e Nicolau Copérnico, cujos rostos olham para nós no vestíbulo da antiquíssima universidade de Bolonha.

Nisto pensava Paulo VI, quando proclamava a "civilização do amor" como programa para o mundo contemporâneo.

11. Caros Irmãos e Irmãs! Filhos e filhas desta venerável cidade, pela qual passaram, além de Dante e de Copérnico, os Santos Vital e Agrícola, Petrónio e Domingos, e muitos Papas, entre os quais recordo sobretudo Bento XIV.

Hoje o sucessor de Pedro celebra juntamente convosco a Oitava da Páscoa.

Hoje também, juntamente com o Salmista, cantamos as palavras: "A pedra que os edificadores rejeitaram, / tornou-se pedra angular. / Este é o dia que fez o Senhor: / Regozijemo-nos e alegremo-nos n'Ele" (Sl 117/118, 22.24).

A pedra angular é Cristo: crucificado e ressuscitado, Pascha nostruml!

E portanto ponhamo-nos a pergunta. Pergunte-se cada um de vós, que aqui "organizais o mundo" e "organizais a vossa vida humana neste mundo": edificamos nós sobre esta pedra angular? Ou rejeitamos esta pedra angular?

Outrora, numa tarde semelhante à de hoje, na Oitava do dia de Páscoa, veio Cristo de novo ao Cenáculo, onde estavam reunidos os apóstolos, e disse a Tomé:

"Noli esse incredulus, sed fidelis".

Tomé respondeu: "Meu Senhor e meu Deus" ( Jo 20, 28).

Desde então Cristo tornou-se a pedra angular para a sua vida.

Oxalá sobre cada um de nós se realizem as palavras ditas por Cristo a Tomé: "Bem-aventurados os que, sem terem visto, acreditaram" ( ib. 20, 29).

Que todos vós, "crendo, tenhais a vida em Seu nome" (ib. 20, 31).

Amém.

 



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