MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
JOÃO PAULO II
PARA A CELEBRAÇÃO DO
XXXIII DIA MUNDIAL DA PAZ
1° DE JANEIRO DE 2000
« PAZ NA TERRA AOS HOMENS, QUE DEUS AMA! »
1. Este é o anúncio feito pelos Anjos quando, há 2000 anos, nasceu Jesus Cristo (cf. Lc 2,14) e que ouviremos ressoar jubilosamente na noite santa de Natal, noite da solene abertura do Grande Jubileu.
Esta mensagem de esperança, que nos chega da gruta de Belém, queremos oferecê-la ao início do novo milénio: Deus ama todos os homens e mulheres da terra e dá-lhes a esperança de um tempo novo, um tempo de paz. O seu amor, plenamente revelado no Filho encarnado, é o fundamento da paz universal. Acolhido no mais íntimo do coração, esse amor reconcilia cada um com Deus e consigo mesmo, renova as relações entre os homens e gera aquela sede de fraternidade que é capaz de afastar a tentação da violência e da guerra.
O Grande Jubileu está indissoluvelmente ligado com esta mensagem de amor e reconciliação, que traduz as mais autênticas aspirações da humanidade do nosso tempo.
2. Tendo pela frente um ano tão denso de significado, a todos renovo cordialmente os meus votos de paz. A todos declaro que a paz é possível. Há-de ser implorada como um dom de Deus, mas também, com a sua ajuda, construída dia-a-dia através das obras da justiça e do amor.
Certamente são muitos e complexos os problemas que tornam árduo e tantas vezes desalentador o caminho da paz, mas esta constitui uma exigência profundamente enraizada no coração de cada homem. Por isso, não deve esmorecer a vontade de procurá-la. Na base de tal busca, há-de estar a certeza de que a humanidade, apesar de ferida pelo pecado, pelo ódio e pela violência, é chamada por Deus a formar uma única família. Este desígnio divino deve ser reconhecido e secundado, promovendo a busca de relações harmoniosas entre as pessoas e os povos, numa cultura comum de abertura ao Transcendente, de promoção do homem e de respeito pela natureza.
Esta é a mensagem de Natal, esta é a mensagem do Jubileu, estes são os votos que formulo no início de um novo milénio.
Com a guerra, quem perde é a humanidade
3. No século que deixámos para trás, a humanidade foi duramente provada por uma sequência infinda e horrenda de guerras, conflitos, genocídios, « limpezas étnicas », que causaram sofrimentos indescritíveis: milhões e milhões de vítimas, famílias e países destruídos, vagas de refugiados, miséria, fome, doenças, subdesenvolvimento, enorme perda de recursos. Na raiz de tanto sofrimento, está uma lógica de prepotência, alimentada pelo desejo de dominar e explorar os outros, por ideologias de poder ou utopia totalitária, por nacionalismos insensatos ou antigos ódios tribais. Às vezes foi necessário opor resistência armada à violência brutal e sistemática que mirava inclusive ao extermínio total ou à sujeição de povos e regiões inteiras.
O século XX deixa-nos em herança sobretudo uma advertência: as guerras são frequentemente causa de outras guerras, porque alimentam ódios profundos, criam situações de injustiça e espezinham a dignidade e os direitos das pessoas. Em geral, não resolvem os problemas que as motivaram; e, por isso, além de terrivelmente devastadoras, são também inúteis. Com a guerra, quem perde é a humanidade. Só na paz e com a paz é que se pode garantir o respeito da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos inalienáveis.(1)
4. No cenário de guerra do século XX, a honra da humanidade foi salva por aqueles que falaram e trabalharam em nome da paz.
É forçoso recordar quantos — e são inúmeros — contribuíram para a afirmação dos direitos humanos e a sua solene proclamação, para a derrota dos totalitarismos, para o fim do colonialismo, para o avanço da democracia, para a criação de grandes organismos internacionais. Ofereceram-nos exemplos luminosos e proféticos aqueles que orientaram as suas opções de vida pelo valor da não-violência. O seu testemunho de coerência e fidelidade, mantido muitas vezes até ao martírio, deixou escritas páginas esplêndidas e ricas de lições.
Entre os que agiram em nome da paz, há que incluir aqueles homens e mulheres que, com o seu desvelo, tornaram possíveis grandes progressos em todos os campos da ciência e da técnica, consentindo vencer doenças terríveis, melhorar e prolongar a vida.
Não posso ainda deixar de mencionar também os meus Predecessores, de venerável memória, que guiaram a Igreja no século XX. Com o seu magistério sublime e a sua acção incansável, guiaram a Igreja na promoção de uma cultura de paz. Emblemática dessa multiforme acção, é a intuição feliz e clarividente de Paulo VI que instituiu, em 8 de Dezembro de 1967, o Dia Mundial da Paz. Ano após ano, foi-se consolidando como uma experiência fecunda de reflexão e planificação em comum.
A vocação de ser uma única família
5. « Paz na terra aos homens, que Deus ama! » Este voto evangélico sugere-nos uma pergunta veemente: o século que agora começa decorrerá sob o signo da paz e da fraternidade restabelecida entre os homens e povos? Não podemos certamente prever o futuro; mas é possível estabelecer este princípio impelente: haverá paz na medida em que toda a humanidade for capaz de redescobrir a sua vocação primordial de ser uma única família, na qual a dignidade e os direitos das pessoas — de qualquer estado, raça, religião — sejam afirmados como anteriores e predominantes relativamente a qualquer diferenciação e especificação.
Uma tal consciência pode proporcionar alma, sentido e orientação ao contexto mundial actual, caracterizado pelos dinamismos da globalização. Ainda que não isentos de riscos, tais dinamismos contêm oportunidades extraordinárias e promissoras que apontam precisamente para a meta referida, ou seja, para fazer da humanidade uma só família, fundada sobre os valores da justiça, da equidade, da solidariedade.
6. Mas, para isso, é necessário realizar uma inversão de perspectiva: em tudo há-de prevalecer, não o bem particular duma comunidade política, étnica ou cultural, mas o bem da humanidade. A prossecução do bem comum duma comunidade política particular não pode estar em contraste com o bem comum da humanidade inteira, expresso no reconhecimento e no respeito dos direitos humanos sancionados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. Por isso, há que superar as concepções e práticas, frequentemente condicionadas e determinadas por fortes interesses económicos, que subordinam ao dado absolutizado da nação e do Estado qualquer outro valor. Nesta perspectiva, as divisões e diferenças políticas, culturais e institucionais, em que se articula e organiza a humanidade, são legítimas na medida em que se harmonizem com a pertença à família humana e consequentes exigências éticas e jurídicas.
Os crimes contra a humanidade
7. Deste princípio, deriva um corolário de enorme valor: quem ofende os direitos humanos, ofende a consciência humana enquanto tal, ofende a própria humanidade. Por isso, o dever de tutelar tais direitos transcende as fronteiras geográficas e políticas dentro das quais são espezinhados. Os crimes contra a humanidade não podem considerar-se assunto interno duma nação. A instituição em acto de um Tribunal Penal Internacional para julgar esses crimes, qualquer que seja a forma e o lugar onde se verifiquem, é um passo importante nessa direcção. Devemos dar graças a Deus por continuar a crescer, na consciência dos povos e das nações, a convicção de que os direitos humanos, porque universais e indivisíveis, não têm fronteiras.
8. No nosso tempo, têm vindo a diminuir as guerras entre os Estados. Este facto, de per si consolador, fica duramente redimensionado, quando se consideram os conflitos armados que existem dentro dos Estados. E, infelizmente, são muito numerosos, presentes praticamente em todos os Continentes e, não raro, violentíssimos. A maior parte deles tem remotos motivos históricos de natureza étnica, tribal ou mesmo religiosa, aos quais se vêm juntar actualmente outras razões de natureza ideológica, social e económica.
Estes conflitos internos, geralmente disputados com uma utilização impressionante de armas de pequeno calibre ou de armas chamadas « ligeiras » mas de facto tremendamente letais, têm muitas vezes graves implicações que ultrapassam as fronteiras do Estado, envolvendo interesses e responsabilidades externas. Embora seja verdade que, pelo seu alto grau de complexidade, é muito difícil compreender e avaliar as causas e os interesses em jogo, um facto, porém, resta incontestável: quem sofre as consequências mais dramáticas desses conflitos são as populações civis, devido, para além do mais, à inobservância prática quer das leis comuns quer das próprias leis da guerra. Em vez de serem protegidos, os civis são muitas vezes o primeiro alvo das forças contrapostas, se é que não acabam mesmo por ser envolvidos em acções armadas directas, numa perversa espiral que faz deles simultaneamente vítimas e verdugos de outros civis.
Demasiados e horríveis foram, e continua a ser, os cenários sinistros onde crianças, mulheres e idosos indefesos se tornam, sem culpa alguma e contra a sua vontade, vítimas preferidas dos conflitos que ensanguentam os nossos dias; são realmente demasiados para não ver que chegou o momento de mudar de rumo, com decisão e grande sentido de responsabilidade.
O direito à assistência humanitária
9. Seja como for, perante situações tão dramáticas e complexas há que defender, contra todas as supostas « razões » da guerra, o valor preponderante do direito humanitário e, por conseguinte, o dever de garantir o direito à assistência humanitária das populações que padecem a guerra e dos refugiados.
O reconhecimento e efectivo cumprimento destes direitos não deve ficar sujeito a interesses de qualquer uma das partes em conflito. Pelo contrário, há o dever de individuar todos os modos, sejam institucionais ou não, que possam concretizar da melhor forma possível os objectivos humanitários. De facto, a legitimação moral e política de tais direitos assenta no princípio, segundo o qual o bem da pessoa humana tem precedência sobre tudo o resto e transcende qualquer instituição humana.
10. Desejo reiterar aqui a minha profunda convicção de que, à vista dos conflitos armados modernos, o instrumento da negociação entre as partes, com oportunas intervenções de mediação e pacificação levadas a cabo por organismos internacionais e regionais, reveste-se da máxima relevância, quer para prevenir os conflitos quer, uma vez desencadeados, para fazê-los cessar, restabelecendo a paz através dum justo equilíbrio dos direitos e dos interesses em jogo.
Esta convicção acerca do papel positivo de organismos de mediação e pacificação estende-se às organizações humanitárias não governamentais e às organizações religiosas, que, discreta e desinteressadamente, promovem a paz entre os vários grupos, ajudam a superar antigos rancores, a reconciliar inimigos e a abrir a estrada para um futuro novo e comum. Ao mesmo tempo que presto homenagem à sua nobre dedicação pela causa da paz, desejo louvar, em sentida lembrança, todos aqueles que deram a vida para que outros pudessem viver: por eles, elevo a Deus a minha oração e convido os crentes a fazerem o mesmo também.
A « ingerência humanitária »
11. Quando, evidentemente, as populações civis correm o risco de sucumbir sob os golpes de um injusto agressor e de nada serviram os esforços feitos pela política e pelos meios de defesa não violenta, é legítimo e até forçoso empreender iniciativas concretas para desarmar o agressor. Tais iniciativas, porém, devem ser circunscritas no tempo e precisas nos seus objectivos, conduzidas no pleno respeito do direito internacional, garantidas por uma autoridade reconhecida a nível supranacional e, em todo o caso, nunca deixadas à mera lógica das armas.
Por isso, é preciso fazer o máximo e o melhor uso do que está previsto na Carta das Nações Unidas, definindo sucessivamente os instrumentos e modalidades eficazes de intervenção, no quadro da legalidade internacional. A este respeito, a própria Organização das Nações Unidas deve oferecer a todos os Estados membros uma équa oportunidade de participar nas decisões, superando privilégios e discriminações que debilitam o seu papel e credibilidade.
12. Abre-se aqui um novo campo de reflexão e deliberação tanto para a política como para o direito, um campo que — assim todos o esperamos — há-de ser cultivado com ardor e sabedoria. Sem mais adiamentos, é necessária uma renovação do direito internacional e das instituições internacionais, que tenha o ponto de partida e o critério fundamental de estruturação no primado do bem da humanidade e da pessoa humana sobre qualquer outra coisa. Tal renovação revela-se ainda mais urgente, quando consideramos o paradoxo da guerra no nosso tempo, incluindo os recentes conflitos, onde ao máximo de segurança dos exércitos correspondiam desconcertantes condições de perigo para as populações civis. Não é legítimo, em tipo algum de conflito, descurar o direito dos civis à sua incolumidade.
Referidas as perspectivas jurídicas e institucionais, permanece fundamental para todos os homens e mulheres de boa vontade, chamados a empenhar-se pela paz, o dever de educarem para a paz, de desenvolverem estruturas de paz e instrumentos de não-violência, de realizarem todos os esforços possíveis para fazer sentar à mesa das negociações as partes em conflito.
A paz na solidariedade
13. « Paz na terra aos homens, que Deus ama! » Da problemática da guerra, o olhar volta-se naturalmente para outra dimensão que lhe está particularmente conexa: a questão da solidariedade. A tarefa nobilíssima e difícil da paz, inscrita na vocação da humanidade de ser uma família e de se reconhecer como tal, encontra uma base de apoio no princípio do destino universal dos bens da terra, princípio que não tira legitimidade à propriedade privada, mas abre a concessão e gestão da mesma à sua imprescindível função social, em benefício do bem comum e especialmente dos membros mais débeis da sociedade. (2) Infelizmente este princípio fundamental está muito descuidado, como o demonstra a persistência e aumento do desnível entre o « Norte » do mundo, cada vez mais saturado de bens e recursos e formado por um número sempre maior de idosos, e o « Sul », onde se concentra a grande maioria das jovens gerações, mas privadas ainda de perspectivas credíveis de progresso social, cultural e económico.
Ninguém se iluda de que a simples ausência de guerra, apesar de tão desejada, seja sinónimo de paz duradoura. Não há paz verdadeira, sem equidade, verdade, justiça e solidariedade. Está destinado à falência qualquer projecto que deixe separados dois direitos indivisíveis: o direito à paz e o direito a um progresso integral e solidário. « As injustiças, as excessivas desigualdades de ordem económica ou social, a inveja, a desconfiança e o orgulho que grassam entre os homens e as nações, são uma constante ameaça à paz e provocam as guerras. Tudo o que se faz para combater estas desordens, contribui para edificar a paz e evitar a guerra ».(3)
14. Ao início dum novo século, a pobreza de biliões de homens e mulheres é a questão que, em absoluto, mais interpela a nossa consciência humana e cristã; e torna-se ainda mais dramática devido à constatação de que os maiores problemas económicos do nosso tempo não dependem da falta de recursos, mas do facto de que as actuais estruturas económicas, sociais e culturais sentem dificuldade em assumir as exigências dum autêntico progresso.
Com toda a razão, os pobres, quer dos países em vias de desenvolvimento quer dos países prósperos e ricos, « pedem o direito de participar no usufruto dos bens materiais e de fazer render a sua capacidade de trabalho, criando assim um mundo mais justo e mais próspero para todos. A elevação dos pobres é uma grande ocasião para o crescimento moral, cultural e até económico da humanidade inteira ». (4) Vejamos os pobres não como um problema, mas como possíveis sujeitos e protagonistas dum futuro novo e mais humano para todo o mundo.
Urgência duma revisão da economia
15. Nesta linha, é forçoso interrogar-se também sobre o mal-estar crescente que sentem hoje em dia muitos especialistas e agentes económicos face aos problemas que se levantam no âmbito da pobreza, da paz, da ecologia, do futuro dos jovens, quando reflectem sobre a função do mercado, a omnipresente dimensão monetária e financeira, a separação entre o económico e o social, e outros temas semelhantes da actividade económica.
Chegou talvez o momento de uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins. A este respeito, torna-se urgente reconsiderar a própria concepção do bem-estar, para que não fique dominada estritamente por uma perspectiva utilitarista, deixando um espaço completamente marginal e excedente para valores como a solidariedade e o altruísmo.
16. Desejo convidar os cultores da ciência económica, os agentes do sector e ainda os responsáveis políticos a darem-se conta da urgência de fazer com que a prática económica e as respectivas políticas procurem o bem de todo o homem e do homem todo. Exige-o não só a ética, mas também uma sã economia. Parece, de facto, confirmado pela experiência que o sucesso económico está cada vez mais condicionado pelo facto de serem valorizadas as pessoas e suas capacidades, promovida a participação, cultivados mais e melhor os conhecimentos e as informações, incrementada a solidariedade.
Trata-se de valores que, longe de serem estranhos à ciência e à acção económica, contribuem para fazer delas realidades integralmente « humanas ». Uma economia que não tenha em consideração a dimensão ética nem se preocupe com servir o bem da pessoa — de toda a pessoa e da pessoa toda —, de per si não se pode sequer chamar « economia », entendida como uma gerência racional e proveitosa da riqueza material.
Que modelos de desenvolvimento?
17. Não obstante ser chamada a formar uma única família, a humanidade encontra-se ainda dramaticamente dividida em duas pela pobreza: no início do século XXI, mais de um bilião e quatrocentos milhões de pessoas vivem numa situação de pobreza extrema. Por isso, é particularmente urgente uma revisão dos modelos que inspiram as opções de desenvolvimento.
A este respeito, será preciso harmonizar melhor as legítimas exigências da eficiência económica com as da participação política e da justiça social, sem voltar a cair nos erros ideológicos cometidos no século XX. Concretamente, isso significa permear de solidariedade as redes das interdependências económicas, políticas e sociais, que os processos de globalização em acto tendem a aumentar.
Tais processos exigem um revisão da cooperação internacional em termos de uma nova cultura de solidariedade. Concebida como semente de paz, a cooperação não pode reduzir-se só à ajuda e assistência — quem sabe se a pensar nas vantagens que advirão dos recursos postos à disposição! Mas, deve traduzir-se num compromisso concreto e palpável de solidariedade, de modo que torne os pobres protagonistas do seu desenvolvimento e consinta ao maior número possível de indivíduos de dar asas, nas circunstâncias económicas e políticas concretas onde vivem, à criatividade típica da pessoa humana, de que depende também a riqueza das nações. (5)
É preciso, de modo particular, encontrar soluções definitivas para o velho problema da dívida internacional dos países pobres, continuando a garantir ao mesmo tempo os financiamentos necessários para a luta contra a fome, a subnutrição, as doenças, o analfabetismo e a degradação ambiental.
18. Hoje de forma mais urgente que no passado, há necessidade de cultivar a consciência para os valores morais universais, a fim de enfrentar os problemas do presente, cuja característica comum é a dimensão mundial que vão assumindo. A promoção da paz e dos direitos humanos, a resolução dos conflitos armados internos e externos aos Estados, a tutela das minorias étnicas e dos migrantes, a salvaguarda do ambiente, o combate contra doenças terríveis, a luta contra os traficantes de droga e de armas e contra a corrupção política e económica são problemas que nenhuma nação é capaz hoje de enfrentar sozinha; dizem respeito a toda a comunidade humana e, por isso, devem ser enfrentados e resolvidos numa acção conjunta.
Deve-se encontrar a estrada para discutir, com uma linguagem compreensível e comum, os problemas postos pelo futuro do homem. O fundamento deste diálogo é a lei moral universal, escrita no coração do homem. Seguindo esta « gramática » do espírito, a comunidade humana pode enfrentar os problemas da convivência e caminhar para o futuro respeitando o desígnio de Deus.(6)
Do encontro entre fé e razão, entre sentido religioso e sentido moral, provém um contributo decisivo para o diálogo e a colaboração entre os povos, entre as culturas e as religiões.
Jesus, dom de paz
19. « Paz na terra aos homens, que Deus ama! » Por todo o mundo, no contexto do Grande Jubileu, os cristãos estão decididos a comemorar solenemente a encarnação. Ao ouvirem novamente o anúncio feito pelos Anjos no céu de Belém (cf. Lc 2, 14), eles lembram a encarnação com a certeza de que Jesus « é a nossa paz » (Ef 2, 14), é um dom de paz para todos os homens. As primeiras palavras que Ele dirigiu aos discípulos depois da ressurreição foram: « A paz esteja convosco » (Jo 24, 19.21.26). Veio para unir o que estava dividido, para destruir o pecado e o ódio, despertando na humanidade a vocação à unidade e à fraternidade. Ele é, pois, « o princípio e o modelo da humanidade renovada e imbuída de amor fraterno, sinceridade e espírito de paz, à qual todos aspiram ». (7)
20. Neste ano jubilar, a Igreja, movida pela ardente lembrança do seu Senhor, deseja confirmar a própria vocação e missão de ser, em Cristo, « sacramento », ou seja, sinal e instrumento de paz no mundo e para o mundo. Para ela, cumprir a sua missão evangelizadora é trabalhar pela paz. « Assim a Igreja, a única grei de Deus, como um sinal levantado entre as nações, oferecendo o Evangelho da paz a todo o género humano, peregrina em esperança rumo à meta da pátria celeste ». (8)
Assim, para os fiéis católicos, a obrigação de construir a paz e a justiça não é secundária, mas essencial, e há-de ser cumprida com um coração aberto aos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, aos crentes de outras religiões e a todos os homens e mulheres de boa vontade, com quem partilham a mesma ânsia de paz e fraternidade.
Empenhar-se generosamente pela paz
21. É motivo de esperança constatar como, não obstante muitos e graves obstáculos, continuam diariamente a desenvolver-se iniciativas e projectos de paz, com a generosa colaboração de tantas pessoas. A paz é um edifício sempre em construção. Para a sua edificação concorrem:
– os pais que, em família, vivem e testemunham a paz e para ela educam os seus filhos;
– os professores que sabem transmitir valores autênticos, presentes em todas as áreas do saber e no património histórico e cultural da humanidade;
– os trabalhadores esforçando-se por alargar a sua luta secular pela dignidade do trabalho às novas situações que, a nível internacional, reclamam justiça e solidariedade;
– os governantes que colocam no centro da acção política deles e dos seus países uma determinação firme e convicta pela paz e pela justiça;
– todos aqueles que, nas Organizações Internacionais, muitas vezes com escassez de meios, actuam na primeira linha, onde ser « agente de paz » é empresa arriscada inclusive para a própria incolumidade pessoal;
– os membros das Organizações Não Governamentais que, em diversas partes do mundo e nas mais variadas situações, se consagram, com o estudo e a acção, à prevenção e resolução dos conflitos;
– os crentes, que, convictos de que a fé autêntica nunca é fonte de guerra nem de violência, promovem, através do diálogo ecuménico e do diálogo interreligioso, as razões da paz e do amor.
22. O meu pensamento dirige-se particularmente a vós, queridos jovens, que experimentais de modo especial a bênção da vida e tendes o dever de não malbaratá-la. Nas escolas e nas universidades, nos locais de trabalho, nos tempos livres e no desporto, em tudo o que fazeis, deixai-vos guiar constantemente por este pensamento: a paz dentro e fora de vós, a paz sempre, a paz com todos, a paz para todos.
Aos jovens que, infelizmente, conheceram a trágica experiência da guerra e experimentam sentimentos de ódio e ressentimento, desejo suplicar-vos: fazei o possível por encontrar novamente o caminho da reconciliação e do perdão. É um caminho difícil, mas é o único que vos permite olhar o futuro com esperança para vós, vossos filhos, vossos países e a humanidade inteira.
Terei ocasião de retomar este diálogo convosco, jovens amigos, quando nos encontrarmos em Roma, no próximo mês de Agosto, durante a Jornada que vos é dedicada.
O Papa João XXIII, num dos seus últimos discursos, dirigiu-se uma vez mais « aos homens de boa vontade » para convidá-los a empenharem-se num programa de paz fundado no « evangelho da obediência a Deus, da misericórdia, do perdão ». E acrescentava: « Então, sem dúvida alguma, a chama luminosa da paz percorrerá a sua estrada, acendendo a alegria e derramando a luz e a graça no coração dos homens sobre toda a superfície da terra, fazendo-lhes descobrir, para além de todas as fronteiras, rostos de irmãos, rostos de amigos ».(9) Possais vós, jovens do ano 2000, descobrir e fazer descobrir rostos de irmãos e rostos de amigos!
Neste Ano Jubilar em que a Igreja se empenhará com súplicas especiais pela paz, voltemo-nos com filial devoção para a Mãe de Jesus, invocando-A como Rainha da paz, para que Ela espalhe largamente os dons da sua bondade materna sobre todo o género humano, ajudando-o a tornar-se uma só família, na solidariedade e na paz.
Vaticano, 8 de Dezembro do ano 1999.
IOANNES PAULUS PP. II
Notas
1) Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1999, n. 1.
2) Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1o de Maio de 1991), 30-43: AAS 83 (1991), 830-848.
3) Catecismo da Igreja Católica, n. 2317.
4) João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 28: AAS 83 (1991), 828.
5) Cf. João Paulo II, Discurso à ONU no cinquentenário da sua fundação (5 de Outubro de 1995), 13: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 14-10-1995), 492-493.
6) Cf. ibid., 3: o.c., 491.
7) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 8.
8) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 2.
9) Discurso por ocasião da entrega do prémio Balzan (10 de Maio de 1963): AAS 55 (1963), 455.
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