MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
JOÃO PAULO II
PARA A CELEBRAÇÃO DO
XXXII DIA MUNDIAL DA PAZ
1° DE JANEIRO DE 1999
NO RESPEITO DOS DIREITOS HUMANOS,
O SEGREDO DA VERDADEIRA PAZ
1. Na primeira Encíclica, a Redemptor hominis, que, há quase vinte anos, dirigi a todos os homens e mulheres de boa vontade, já sublinhava a importância do respeito dos direitos humanos. A paz floresce quando tais direitos são integralmente observados, enquanto a guerra nasce da sua violação e torna-se causa de novas e mais graves violações (1).
No limiar dum novo ano, o último antes do Grande Jubileu, desejo deter-me uma vez mais, sobre este tema de capital importância, com todos vós, homens e mulheres das várias partes do mundo, convosco, responsáveis políticos e guias religiosos dos povos, com todos vós que amais a paz e quereis consolidá-la no mundo.
Por ocasião do Dia Mundial da Paz, gostaria de partilhar convosco esta minha convicção: quando a promoção da dignidade da pessoa é o princípio orientador que nos inspira, quando a busca do bem comum constitui o empenho predominante, estão a ser colocados alicerces sólidos e duradouros para a edificação da paz. Ao contrário, quando os direitos humanos são ignorados ou desprezados, quando a procura de interesses particulares prevalece injustamente sobre o bem comum, então inevitavelmente está-se a semear os germes da instabilidade, da revolta e da violência.
Respeito da dignidade humana, património da humanidade
2. A dignidade da pessoa humana é um valor transcendente, como tal sempre reconhecido por todos aqueles que se entregaram sinceramente à busca da verdade. Na realidade, toda a história da humanidade deve ser interpretada à luz desta certeza. Cada pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-28) e por conseguinte orientada radicalmente para o seu Criador, está em relação constante com quantos se encontram revestidos da mesma dignidade. Assim, a promoção do bem do indivíduo conjuga-se com o serviço ao bem comum, quando os direitos e os deveres se correspondem e reforçam mutuamente.
A história contemporânea pôs tragicamente em relevo o perigo que deriva do esquecimento da verdade da pessoa humana. Estão patentes aos nossos olhos os frutos de ideologias tais como o marxismo, o nazismo, o fascismo, ou ainda de certos mitos como a superioridade racial, o nacionalismo e o particularismo étnico. Não menos perniciosos, embora nem sempre tão evidentes, são os efeitos do consumismo materialista, que coloca como objectivo último da vida a exaltação do indivíduo e a satisfação egocêntrica das aspirações pessoais; nesta perspectiva, as consequências negativas sobre os outros são consideradas totalmente irrelevantes. No entanto, é preciso insistir que nenhuma afronta à dignidade humana pode ser ignorada, qualquer que seja a sua fonte, a forma realmente assumida, o lugar onde se verifique.
Universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos
3. Em 1998, completou-se o cinquentenário da adopção da « Declaração Universal dos Direitos do Homem ». Esta foi deliberadamente unida à Carta das Nações Unidas, partilhando ambas da mesma inspiração. A Declaração tem como premissa basilar a afirmação de que o reconhecimento da dignidade congénita de todos os membros da família humana e também dos seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (2). Todos os documentos internacionais posteriores sobre os direitos humanos corroboram esta verdade, reconhecendo e afirmando que eles derivam da dignidade e do valor inerente à pessoa humana (3).
A Declaração Universal é clara: os direitos que proclama, não os confere, apenas os reconhece; de facto, são inerentes à pessoa humana e à sua dignidade. Em consequência, ninguém pode legitimamente privar destes direitos um seu semelhante, seja ele quem for, porque isso significaria violentar a sua natureza. Todos os seres humanos, sem excepção, são iguais em dignidade. Pela mesma razão, tais direitos tocam todas as fases da vida e todo o contexto político, social, económico ou cultural. Formam um conjunto unitário, visando resolutamente a promoção do bem, em todos os seus aspectos, da pessoa e da sociedade.
Tradicionalmente, os direitos humanos são agrupados em duas grandes categorias, incluindo numa delas os direitos civis e políticos, e na outra os direitos económicos, sociais e culturais. Ambas as categorias gozam, embora em grau diverso, da garantia de acordos internacionais; na realidade, os direitos humanos estão entrelaçados estritamente uns com os outros, pois constituem a expressão de dimensões diversas do único sujeito que é a pessoa. A promoção integral de todas as categorias dos direitos humanos é a verdadeira garantia do pleno respeito de cada um deles.
A defesa da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos é essencial para a construção duma sociedade pacífica e para o progresso integral de indivíduos, povos e nações. A afirmação desta universalidade e indivisibilidade não exclui, de facto, legítimas diferenças de ordem cultural e política na actuação dos diversos direitos, contanto que se respeitem em cada caso os níveis fixados pela Declaração Universal para a humanidade inteira.
Tendo presentes estes pressupostos fundamentais, queria agora pôr em evidência alguns direitos específicos, hoje particularmente expostos a violações mais ou menos manifestas.
O direito à vida
4. O primeiro dentre estes é o direito fundamental à vida. A vida humana é sagrada e inviolável desde a concepção ao seu ocaso natural. « Não matarás » é o mandamento divino que assinala um limite extremo que nunca é lícito ultrapassar. « A morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral » (4).
O direito à vida é inviolável. Isto implica uma opção positiva, uma opção a favor da vida. O desenvolvimento de uma cultura orientada neste sentido estende-se a todas as circunstâncias da existência e assegura a promoção da dignidade humana em cada situação. Uma verdadeira cultura da vida tanto protege o direito de vir ao mundo a quem ainda não nasceu, como defende os recém-nascidos, particularmente as meninas, do crime de infanticídio. Igualmente, assegura aos inválidos o desenvolvimento das suas potencialidades, e cuidados adequados aos doentes e aos idosos.
Dos recentes avanços no campo da engenharia genética surge um desafio, que cria profundas inquietações. Para que a pesquisa científica neste âmbito esteja ao serviço da pessoa, é preciso que cada uma das suas etapas seja acompanhada cuidadosamente pela reflexão ética, que inspire adequadas normas jurídicas para salvaguarda da integridade da vida humana. Jamais a vida pode ser degradada ao nível de objecto.
Optar pela vida comporta a rejeição de todas as formas de violência: a violência da pobreza e da fome, que atinge tantos seres humanos; a dos conflitos armados; a violência da criminosa difusão das drogas e do tráfico de armas; a dos danos imprudentemente causados ao ambiente natural (5). Em todas as circunstâncias, o direito à vida deve ser promovido e tutelado com as garantias legais e políticas adequadas, uma vez que nenhuma das ofensas contra o direito à vida, contra a dignidade de qualquer pessoa é irrelevante.
Liberdade religiosa, coração dos direitos humanos
5. A religião exprime as aspirações mais profundas da pessoa humana, determina a sua visão do mundo, orienta o seu relacionamento com os outros: fundamentalmente oferece a resposta à questão do verdadeiro significado da existência, tanto no âmbito pessoal como social. Por isso mesmo, a liberdade religiosa constitui o coração dos direitos humanos. É de tal modo inviolável que exige que se reconheça à pessoa inclusivamente a liberdade de mudar de religião, se a sua consciência o pedir. Com efeito, cada um tem o dever de seguir em todas as ocasiões a sua consciência, e não pode ser forçado a agir contra ela (6). Por conseguinte, ninguém pode ser obrigado a aceitar à força uma determinada religião, quaisquer que sejam as circunstâncias ou as razões.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem reconhece que o direito à liberdade religiosa inclui a possibilidade de manifestar as próprias crenças quer individualmente quer em comum, tanto em público como em privado (7). Apesar disso, ainda hoje existem lugares em que o direito de reunião por motivo de culto não é reconhecido, ou é limitado aos membros duma única religião. Esta grave violação de um dos direitos fundamentais da pessoa é causa de enormes sofrimentos para os crentes. Quando um Estado concede estatuto especial a uma religião, não o pode fazer à custa das outras. E todavia, como é de conhecimento geral, há nações onde indivíduos, famílias e grupos inteiros continuam a ser discriminados e marginalizados por causa do seu credo religioso.
Não se pode deixar de falar também noutro problema, indirectamente ligado com a liberdade religiosa. Às vezes, entre comunidades ou povos de convicções e culturas religiosas diferentes gera-se um crescendo de tensões tal que, por causa das fortes paixões em jogo, acaba por degenerar em violentos conflitos. O recurso à violência em nome do credo religioso constitui uma deformação dos próprios ensinamentos das maiores religiões. Como já tantas vezes reiteraram vários expoentes religiosos, também eu repito que o uso da violência nunca poderá encontrar justificações válidas na religião, nem promover o crescimento do sentimento religioso autêntico.
O direito de participação
6. Cada cidadão tem o direito de participar na vida da própria Comunidade: esta é uma convicção, hoje geralmente compartilhada. Todavia, este direito torna-se vão quando o processo democrático fica desprovido da sua eficácia por causa de favoritismos e de fenómenos de corrupção, que não só impedem a legítima participação na gestão do poder, mas dificultam também o acesso equitativo de todos aos bens e serviços comuns. Chega-se a manipular as eleições, para assegurar a vitória de certos partidos ou indivíduos. Trata-se duma afronta à democracia com sérias consequências, já que os cidadãos têm não só o direito, mas também a responsabilidade de participar: quando ficam impedidos de o fazer, perdem a esperança de poderem intervir eficazmente e deixam-se cair num comportamento de passivo desinteressamento. E assim torna-se praticamente impossível o desenvolvimento de um perfeito sistema democrático.
Recentemente têm-se adoptado diversas medidas para assegurar eleições legítimas em Estados que sentem dificuldades na passagem que estão a procurar fazer de uma forma de totalitarismo a um regime democrático. Embora úteis e eficazes em situações de emergência, tais iniciativas não podem todavia dispensar do esforço que se requer para criar nos cidadãos uma plataforma de convicções de tal forma assumidas que a manipulação do processo democrático fique definitivamente posta de parte.
No âmbito da comunidade internacional, nações e povos têm o direito de participar nas decisões que modificam, muitas vezes profundamente, o seu modo de viver. A especificidade técnica de certos problemas económicos provoca a tendência de limitar a sua discussão a círculos restritos, com o consequente perigo de concentrar o poder político e financeiro na mão de um número limitado de Governos ou de grupos de interesses. A busca do bem comum nacional e internacional requer uma real actuação, também no campo económico, do direito que todos têm de tomar parte nas decisões que lhes dizem respeito.
Uma forma particularmente grave de discriminação
7. Uma das formas mais dramáticas de discriminação é negar a grupos étnicos e minorias nacionais o direito fundamental de existirem como tais. Isto verifica-se através da sua supressão ou brutal transferência, ou então tentando debilitar de tal modo a sua identidade étnica que deixem simplesmente de ser identificáveis. Poder-se-á permanecer em silêncio perante crimes tão graves contra a humanidade? Nenhum esforço deve ser considerado excessivo, quando se trata de pôr fim a tais aberrações, indignas da pessoa humana.
Sinal positivo da crescente vontade que os Estados manifestam em reconhecer a própria responsabilidade na protecção das vítimas de semelhantes crimes e no esforço de prevenção dos mesmos é a recente iniciativa tomada numa Conferência Diplomática das Nações Unidas: por específica deliberação, ela aprovou os Estatutos dum Tribunal Internacional, destinado a individuar as culpas e punir os responsáveis por crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e de agressão. Esta nova instituição, se estiver constituída sobre boas bases jurídicas, poderá contribuir progressivamente para garantir, à escala mundial, a tutela eficaz dos direitos humanos.
O direito à própria realização
8. Todo o ser humano possui capacidades naturais que aguardam por ser desenvolvidas. Disso depende a realização plena da sua personalidade e também a conveniente integração no contexto social do próprio ambiente. Por conseguinte, é necessário, antes de mais nada, prover a uma adequada educação de todos os que assomam à ribalta da vida: disso depende o seu bom êxito futuro.
Deste ponto de vista, como não preocupar-se ao constatar que, nalgumas regiões de entre as mais pobres do mundo, as oportunidades de formação, sobretudo no que diz respeito à instrução primária, têm realmente diminuído? Às vezes, isso fica-se a dever à situação económica do país, que não permite dar o devido salário aos professores. Noutros casos, parece que há dinheiro disponível para projectos de prestígio ou para a educação secundária, mas não para a instrução primária. Quando se limitam as oportunidades de formação, especialmente no caso das meninas, preparam-se estruturas de discriminação capazes de condicionar todo o desenvolvimento da sociedade. O mundo acabaria por ficar dividido segundo um novo critério: de um lado Estados e indivíduos dotados de tecnologias avançadas, e do outro países e pessoas com conhecimentos e habilitações extremamente limitados. Como é fácil de intuir, isso levaria apenas a aumentar as disparidades económicas, actualmente já tão profundas, não só entre os Estados mas também no interior de cada um deles. Educação e formação profissional devem ser colocadas em primeira linha, quer nos planos dos países em vias de desenvolvimento quer nos programas de renovação urbana e rural dos povos economicamente mais avançados.
Outro direito fundamental, de cuja satisfação está dependente a obtenção dum nível de vida digno, é o direito ao trabalho. De contrário, como se poderia acudir à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e a tantas outras necessidades da vida? Porém, hoje, a falta de trabalho é um grave problema: há, em muitas partes do mundo, inúmeras pessoas atingidas pelo fenómeno devastador do desemprego. É necessário e urgente que da parte de todos, particularmente de quantos têm nas mãos as rédeas do poder político e económico, se faça tudo o que for possível para dar remédio a uma situação tão aflitiva. E não se pode limitar às intervenções de emergência naturalmente necessárias em caso de desemprego, doença ou circunstâncias idênticas que fogem ao controle do indivíduo,(8) mas há que esforçar-se para que os desempregados sejam postos em condições de assumir a responsabilidade pela sua própria existência, emancipando-se de um regime de humilhante assistencialismo.
Progresso global na solidariedade
9. A corrida vertiginosa para a globalização dos sistemas económicos e financeiros torna patente a urgência de estabelecer quem deve garantir o bem comum global e a actuação dos direitos económicos e sociais. É que o livre mercado, por si só, não consegue fazê-lo, uma vez que existem numerosas carências humanas que, de facto, não têm acesso ao mercado. « Ainda antes da lógica da troca de valores equivalentes e das formas de justiça que lhe são próprias, existe algo que é devido ao homem porque é homem, em virtude da sua eminente dignidade » (9).
Os efeitos das recentes crises económicas e financeiras abateram-se gravosamente sobre inumeráveis pessoas, que ficaram reduzidas a condições de pobreza extrema. Muitas delas tinham chegado, ainda há pouco tempo, a uma situação que lhes permitia olhar o futuro com alentadora esperança. E sem qualquer responsabilidade da sua parte, viram tais esperanças cruelmente despedaçadas, com consequências trágicas para elas mesmas e para os seus filhos. E como ignorar as flutuações das praças financeiras? Urge uma nova visão de progresso global na solidariedade, que preveja um desenvolvimento integral e sustentável da sociedade, capaz de permitir a todos os seus membros de realizarem as próprias potencialidades.
Neste contexto, lanço um apelo premente àqueles que têm responsabilidade nas relações financeiras a nível mundial, para que tenham a peito a solução do problema inquietante da dívida internacional das nações mais pobres. Instituições financeiras internacionais deram início, com tal objectivo, a uma iniciativa concreta, digna de apreço. Faço apelo a todos os que estão envolvidos neste problema, sobretudo às nações mais ricas, para que forneçam o apoio necessário à mesma e seja assim coroada de sucesso. Exige-se, sem demora, um esforço vigoroso que consinta ao maior número possível de países sair, por ocasião do ano 2000, duma situação claramente insustentável. Se o diálogo entre as instituições interessadas for animado pela vontade de chegar a acordo, há-de conduzir — estou certo — a uma solução satisfatória e definitiva. Deste modo, as nações mais desfavorecidas poderão conhecer um progresso duradouro, e o milénio que temos à nossa frente tornar-se-á, para elas também, um tempo de renovada esperança.
Responsabilidade pelo meio ambiente
10. Relacionado com a promoção da dignidade humana está também o direito a um meio ambiente saudável, já que o mesmo põe em evidência a dinâmica das relações entre o indivíduo e a sociedade. Um conjunto de normas internacionais, regionais e nacionais sobre o meio ambiente está gradualmente a dar forma jurídica a tal direito. Todavia, as medidas jurídicas, sozinhas, não bastam. O perigo de danos graves à terra e ao mar, ao clima, à flora e à fauna exige uma profunda mudança no estilo de vida típico da actual civilização de consumo, sobretudo nos países mais ricos. Também não se deve subestimar outro risco, embora menos drástico: aqueles que vivem miseravelmente nas áreas rurais podem, forçados pela necessidade, chegar a desfrutar para além dos devidos limites a pouca terra de que dispõem. Por conseguinte, há que favorecer uma formação específica que lhes ensine como harmonizarem o cultivo da terra com o respeito do meio ambiente.
O presente e o futuro do mundo dependem da salvaguarda da criação, porque existe uma interacção constante entre a pessoa humana e a natureza. Colocar o bem do ser humano no centro da atenção pelo meio ambiente é, na realidade, a maneira mais segura para preservar a criação; é que, deste modo, fomenta-se a responsabilidade de cada um pelos recursos naturais e pelo seu uso sensato.
O direito à paz
11. A promoção do direito à paz assegura, de certo modo, o respeito de todos os outros direitos, já que favorece a construção duma sociedade no interior da qual as relações de força são substituídas por relações de colaboração em ordem ao bem comum. O nosso tempo prova largamente a falência do recurso à violência como meio para resolver os problemas políticos e sociais. A guerra destrói, não edifica; enfraquece os alicerces morais da sociedade e cria novas divisões e tensões sem fim. Apesar disso, os noticiários continuam a registar guerras e conflitos armados com vítimas sem conta. Quantas vezes os meus Predecessores e eu mesmo pedimos o fim destes horrores! Continuarei a fazê-lo, enquanto não se tiver compreendido que a guerra é a falência de todo o autêntico humanismo (10).
Graças a Deus, os passos dados nalgumas regiões para a consolidação da paz são consideráveis. Há que reconhecer o grande mérito daqueles políticos corajosos que têm a audácia de prosseguir com as conversações, mesmo quando a situação parece torná-las impossíveis. Ao mesmo tempo, porém, como não denunciar os massacres que continuam noutras regiões, com o desenraizamento de povos inteiros das suas terras e a destruição de casas e colheitas? Perante as vítimas já sem conta, peço aos Responsáveis das nações e aos homens de boa vontade para irem em socorro daqueles que vivem, sobretudo na África, implicados em atrozes conflitos, por vezes ditados por interesses económicos externos, e ajudem-nos a pôr-lhes termo. Um passo concreto nessa direção é seguramente a abolição do tráfico de armas para os países em guerra e o apoio aos Responsáveis daqueles povos para buscarem o caminho do diálogo. Este é o caminho digno do homem, este é o caminho da paz!
De coração preocupado, penso a quem vive e cresce num contexto de guerra, em quem não conheceu mais nada senão conflitos e violências. Quantos sobreviventes carregarão pelo resto dos seus anos as feridas duma experiência tão terrível! E que dizer das crianças-soldado? Será possível alguma vez aceitar que se arruinem vidas apenas desabrochadas? Treinadas para matar e muitas vezes forçadas a fazê-lo, estas crianças não passarão sem ter graves problemas com a sua posterior integração na sociedade civil. Interrompe-se a sua educação e mortificam-se as suas capacidades de trabalho, com enormes consequências para o seu futuro! As crianças têm necessidade de paz; têm direito a ela.
À recordação destas crianças desejo unir também as que são vítimas das minas anti-homem e doutros engenhos de guerra. Apesar dos esforços já realizados para a sua eliminação, está-se a assistir a um paradoxo incrível e desumano: ignorando a vontade claramente expressa por Governos e povos de se pôr definitivamente fim ao uso de arma tão traiçoeira, continuou-se a semear outras minas, mesmo em lugares já bonificados.
Germes de guerra vão sendo espalhados também pela proliferação, maciça e fora de qualquer controle, de armas pequenas e ligeiras que passam — segundo parece — livremente duma área de conflito para outra, gerando violência ao longo do seu trajecto. Compete aos Governos adoptar medidas apropriadas para o controle da produção, venda, importação e exportação destes instrumentos de morte. Só assim será possível enfrentar eficazmente, no seu conjunto, o problema do tráfico maciço e ilícito de armas.
Uma cultura dos direitos humanos, responsabilidade de todos
12. Não é possível, num documento como este, alongar-me mais sobre o tema. Queria, no entanto, sublinhar que nenhum direito humano está seguro, se falta o compromisso de tutelá-los todos. Quando se aceita, sem reagir, a violação de um só dos direitos humanos fundamentais, põem-se em risco todos os outros. Por isso, é indispensável uma visão global dos direitos humanos e um sério empenhamento na sua defesa. Só quando uma cultura dos direitos humanos, respeitadora das diversas tradições, se tornar parte integrante do património moral da humanidade, é que será possível olhar com serena confiança o futuro.
De facto, como poderia haver guerra, se todo o direito humano fosse respeitado? O cumprimento integral dos direitos humanos é a estrada mais segura para se estreitarem sólidas relações entre os Estados. A cultura dos direitos humanos não pode ser senão uma cultura de paz. Cada violação deles contém em si mesma os germes dum possível conflito. Já o meu venerando Predecessor, o Servo de Deus Pio XII, fazia esta pergunta, no fim da segunda guerra mundial: « Quando um povo é esmagado pela força, haverá alguém com coragem de prometer segurança ao resto do mundo no contexto duma paz duradoura? ».(11)
Para promover uma cultura dos direitos humanos que atinja as consciências, é necessária a colaboração de todas as forças sociais. Queria, porém, fazer uma referência específica ao papel dos meios de comunicação social, tão importantes para a formação da opinião pública e, consequentemente, para a orientação do comportamento dos cidadãos. Tal como não seria possível negar a sua parte de responsabilidade em violações de direitos humanos que tivessem a sua matriz na exaltação da violência por eles eventualmente cultivada, assim também é obrigatório atribuir-lhes o mérito das nobres iniciativas de diálogo e solidariedade que amadureceram graças às mensagens por eles difundidas a favor da compreensão recíproca e da paz.
Tempo de opções, tempo de esperança
13. O novo milénio está à porta, e a sua proximidade tem alimentado em muitos corações a esperança dum mundo mais justo e solidário. É uma aspiração que pode, antes deve ser realizada!
É nesta perspectiva que agora me dirijo de modo particular a vós, queridos Irmãos e Irmãs em Cristo, que nas diversas partes do mundo assumis como norma de vida o Evangelho: fazei-vos arautos da dignidade do homem! A fé ensina-nos que toda a pessoa foi criada à imagem e semelhança de Deus. Perante a recusa do homem, o amor do Pai celeste permanece fiel; o seu amor não tem fronteiras. Ele enviou o Filho, Jesus, para redimir toda a pessoa, restituindo-lhe plenamente a sua dignidade.(12) Diante de uma tal atitude, como poderemos excluir alguém dos nossos cuidados? Pelo contrário, devemos reconhecer Cristo nos mais pobres e marginalizados, que a Eucaristia, comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo oferecidos por nós, nos compromete a servir.(13) Como indica claramente a parábola do rico, que ficará sempre sem nome, e do pobre chamado Lázaro, « no estridente contraste entre ricos insensíveis e os pobres necessitados de tudo, Deus está da parte destes últimos ».(14) Desta parte, devemos colocar-nos também nós.
O terceiro e último ano de preparação para o Jubileu caracteriza-se como uma peregrinação espiritual para o Pai: cada qual é convidado a percorrer um caminho de autêntica conversão, que implica o abandono do mal e a escolha positiva do bem. Já no limiar do Ano 2000, é nosso dever tutelar, com renovado empenho, a dignidade dos pobres e marginalizados, e reconhecer concretamente os direitos daqueles que não têm direitos. Elevemos juntos a voz em favor deles, vivendo em plenitude a missão que Cristo confiou aos seus discípulos! É este o espírito do Jubileu, já iminente.(15)
Jesus ensinou-nos a chamar a Deus com o nome de Pai, Abba, revelando-nos assim a profundidade da nossa relação com Ele. Infinito e eterno é o seu amor por cada pessoa e por toda a humanidade. A este propósito, são eloquentes as seguintes palavras de Deus, do livro do profeta Isaías:
« Acaso pode uma mulher esquecer-se do menino que amamenta,
não ter carinho pelo fruto das suas entranhas?
Ainda que ela se esquecesse dele,
Eu nunca te esqueceria.
Eis que Eu te tatuei nas palmas das minhas mãos » (49, 15-16).
Aceitemos o convite para partilhar este amor! Nele, está o segredo do respeito dos direitos de toda a mulher e de todo o homem. Assim, o alvorecer do novo milénio encontrar-nos-á mais decididos a construirmos juntos a paz.
Vaticano, 8 de Dezembro do ano 1998.
IOANNES PAULUS PP. II
1) Cf. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 17: AAS 71 (1979), 296.
2) Cf. Declaração Universal dos Direitos do Homem, primeira linha do Preâmbulo.
3) Veja-se, de modo particular, a Declaração de Viena (25 de Junho de 1993), Preâmbulo, 2.
4) João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitæ (25 de Março de 1995), 57: AAS 87 (1995), 465.
5) Cf. ibid., 10: o.c., 412.
6) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Dignitatis humanæ, 3.
7) Cf. art. 18.
8) Cf. Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 25, § 1.
(9) João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 34: AAS 83 (1991), 836.
10) Ver, a este respeito, o Catecismo da Igreja Católica, nn. 2307-2317.
11) Discurso a uma Comissão de Representantes do Congresso dos Estados Unidos da América (21 de Agosto de 1945): Discorsi e radiomessaggi di S. S. Pio XII, VII (1945-1946), 141.
(12) Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 13-14: AAS 71 (1979), 282-286.
(13) Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1397.
(14) João Paulo II, Alocução mariana do Angelus, 27 de Setembro de 1998: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 3 de Outubro de 1998), p. 1.
(15) Cf. João Paulo II, Carta ap. Tertio millennio adveniente (10 de Novembro de 1994), 49-51: AAS 87 (1995), 35-36.
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