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VIAGEM APOSTÓLICA A GENEBRA (SUÍÇA)
15 DE JUNHO DE 1982

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
NA 68ª SESSÃO DA CONFERÊNCIA
INTERNACIONAL DO TRABALHO

Palácio das Nações
Genebra, 15 de Junho de 1982

 

Senhor Presidente
Senhor Director-Geral
Senhores Ministros
Senhoras e Senhores Delegados
Senhoras e Senhores

1. Desejo primeiramente exprimir a minha alegria pela ocasião que me é oferecida de me encontrar aqui hoje e de tomar a palavra diante desta ilustre assembleia reunida para a 68ª Sessão da Conferência Internacional do Trabalho. Os factos que vós conheceis impediram-me de aceitar o convite que me tinha dirigido o Director-Geral a fim de participar na Sessão precedente. Agradeço a Deus ter-me conservado a vida e ter-me restabelecido a saúde. A impossibilidade em que me encontrei de vir aqui em 1981 aumentou ainda em mim o desejo profundo que sentia de me encontrar convosco, pois me sinto ligado ao mundo do trabalho por laços múltiplos. O menor destes não é certamente a consciência de uma responsabilidade particular em relação com os numerosos problemas inerentes à realidade do trabalho humano: problemas importantes, muitas vezes difíceis, sempre fundamentais, problemas que formam a razão de ser da vossa Organização. O convite, que o Director-Geral repetiu desde a minha convalescença, alegrou-me por conseguinte de maneira particular. Entretanto, publiquei a minha encíclica Laborem exercens sobre o trabalho humano com a intenção de fornecer o contributo para o desenvolvimento da doutrina social da Igreja católica, cujos grandes documentos, a começar da Rerum novarum do Papa Leão XIII, encontraram eco respeitoso e favorável nas reuniões da Organização Internacional do Trabalho, sempre sensível aos diversos aspectos da problemática complexa do trabalho humano durante as diferentes etapas históricas da sua existência e nas suas actividades.

Seja-me permitido exprimir aqui a minha gratidão pelo vosso convite e pelo acolhimento caloroso que me foi reservado. Ao mesmo tempo, quero dizer-vos quanto aprecio as palavras amáveis que o Director-Geral acaba de me dirigir; devido a elas, é-me mais fácil dirigir-vos a palavra pela minha vez. Hóspede desta Assembleia, falo-vos em nome da Igreja católica e da Sé Apostólica, colocando-me no terreno da missão universal de ambas, que têm, primeiro que tudo, carácter religioso e moral. A este título, a Igreja e a Santa Sé partilham a solicitude da vossa Organização no que diz respeito aos objectivos fundamentais, e ao mesmo tempo atingem a família completa das Nações na finalidade que ela se propõe, quer dizer: contribuir para o progresso da humanidade.

2. Dirigindo-me a vós todos, Senhoras e Senhores, desejo, por meio das vossas pessoas, prestar homenagem primeiramente ao trabalho do homem, qualquer que seja e onde quer que se faça no conjunto do globo; a todo o trabalho — como a cada um dos homens e das mulheres que o realizam — sem distinção entre as características especificas dele, quer se trate de um trabalho "físico" ou de um trabalho "intelectual"; sem distinção também entre as suas determinações particulares, quer se trate de um trabalho de "criação" ou de "reprodução", quer se trate do trabalho de investigação teórica que dá as bases ao trabalho dos outros, ou do trabalho que está em organizar-lhe as condições e as estruturas, ou se trate, por fim, do trabalho dos chefes intermediários ou do dos operários que executam as tarefas necessárias à realização dos programas fixados. Em cada uma das suas formas, este trabalho merece respeito particular, porque é a obra do homem, e porque, por trás de qualquer trabalho, há sempre um sujeito vivo: a pessoa humana. É disto que o trabalho tira o seu valor e a sua dignidade.

Em nome desta dignidade, que é própria de todo o trabalho humano, desejo exprimir igualmente a minha estima por cada um dentre vós, Senhoras e Senhores, e pelas Instituições concretas, as Organizações e as Autoridades que representais aqui. Dado o carácter universal da Organização Internacional do Trabalho, é-me dada ocasião de prestar homenagem pela presente intervenção a todos os grupos aqui representados, e de louvar o esforço pelo qual cada um dentre vós tende a desenvolver as suas próprias potencialidades a fim de realizar o bem comum de todos os seus membros: homens e mulheres, unidos de geração em geração nos diferentes postos do trabalho.

3. Por fim — e penso ser aqui o porta-voz não só da Sé Apostólica, mas, em certo sentido, de todas as pessoas presentes — desejaria exprimir uma estima e uma gratidão particulares pela própria Organização Internacional do Trabalho. A vossa Organização ocupa, com efeito, lugar importante na vida internacional, tanto pela sua antiguidade como pela nobreza dos seus objectivos. Criada em 1919 pelo Tratado de Versalhes, ela atribuiu-se por missão contribuir para uma paz durável por meio da promoção da justiça social, como o dizem as primeiras palavras do Preâmbulo da sua Constituição: "Visto uma paz universal e durável não poder fundar-se senão sobre a base da justiça social...". Foi ainda este compromisso fundamental pela paz que recordou o Director-Geral no Simpósio organizado em Roma pela Comissão Pontifícia "Iustitia et Pax" no princípio do mês de Abril último, quando ele se referiu ao pergaminho encerrado na primeira pedra do edifício da Repartição Internacional do Trabalho, que encerra a menção: "Sivis pacem, cole iustitiam", "Se queres a paz, cultiva a justiça".

Os méritos da vossa Organização aparecem de maneira evidente na existência das numerosas Convenções internacionais e Recomendações que estabelecem as normas internacionais do trabalho, "novas regras de comportamento social" para obrigar "os interesses particulares a submeterem-se à visão mais larga do bem comum" (Discurso de Paulo VI à O.I.T., nn. 14 e 19: AAS 61, 1969, pe 497 e 499). Os seus méritos são visíveis também em múltiplas outras actividades empreendidas para satisfazer as novas necessidades que se manifestaram a partir da evolução das estruturas sociais e económicas. Eles são evidentes, por fim, quando se considera o trabalho quotidiano e perseverante dos funcionários da Repartição Internacional do Trabalho e dos recursos que ela se deu para reforçar a sua acção, tais como o Instituto Internacional de Estudos Sociais, a Associação Internacional da segurança social, e o Centro internacional de aperfeiçoamento profissional e técnico.

Se me permiti citar a Organização Internacional do Trabalho na minha encíclica Laborem exercens, fi-lo igualmente para atrair os espíritos sobre as suas múltiplas realizações como para encorajar e reforçar as suas actividades em favor da humanização do trabalho. Quis também colocar em relevo o facto de que, na diligência tendente a fundar o trabalho humano sobre as razões do verdadeiro bem — o que se ajusta aos princípios objectivos da moral social —, as finalidades da Organização Internacional do Trabalho estão muito perto das que a Igreja e a Sé Apostólica querem seguir no seu próprio campo e com meios adaptados a missão que têm. Isto foi aliás sublinhado várias vezes pelos meus predecessores os Papas Pio XII e João XXIII, e em particular por Paulo VI, em 1969, por ocasião da visita pela qual ele quis associar-se à celebração do 50° aniversário da fundação da Organização Internacional do Trabalho. Hoje, como antigamente, a Igreja e a Sé Apostólica alegram-se com a excelente colaboração que mantêm com a vossa Organização, colaboração que tem já meio século, a qual encontrou o seu epilogo formal ao ser acreditado, em 1967, um Observador Permanente junto da Repartição Internacional do Trabalho. Por tal diligência, a Sé Apostólica quis assegurar uma expressão estável à sua vontade de colaborar e ao vivo interesse que a Igreja católica, interessada pelo verdadeiro bem do homem, consagra aos problemas do trabalho.

4. A palavra que esperais de mim, Senhoras e Senhores, não pode ser diferente daquilo que eu pronunciei noutras reuniões em que se encontravam os representantes dos povos de todas as Nações do mundo; a Assembleia geral da Organização das Nações Unidas, a Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura, e a Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura. As minhas reflexões inspiram-se, de maneira que deseja ser coerente, na mesma ideia fundamental e na mesma preocupação: a causa do homem, a sua dignidade e os seus direitos inalienáveis que dela derivam. Já na minha primeira encíclica, Redemptor hominis, insisti em que o "homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: é a primeira e fundamental via, via traçada pelo próprio Cristo... (n. 14). é pela mesma razão que, por ocasião do 90º aniversário da Rerum novarum, desejei consagrar um documento da maior importância no meu pontificado ao trabalho humano, ao homem no trabalho: "Homo laborem exercens". Porque não só o trabalho leva a marca do homem, mas é no trabalho que o homem descobre o sentido da sua existência: em todo o trabalho concebido como actividade humana, quaisquer que sejam as características concretas que ela revista, quaisquer que sejam as circunstâncias nas quais esta actividade se exerça. O trabalho comporta "esta dimensão fundamental da existência humana, pela qual é construída cada dia a vida do homem, da qual esta recebe a própria dignidade específica, mas na qual está contido, ao mesmo tempo, o parâmetro constante dos esforços humanos, do sofrimento, bem como dos danos e das injustiças que podem impregnar profundamente a vida social no interior de cada uma das nações e no plano internacional" (Laborem exercens, n. 1).

5. Na problemática do trabalho — problemática que se repercute em tantos domínios da vida e em todos os níveis, individual, familiar, nacional e internacional —, há uma característica, que é ao mesmo tempo exigência e programa, que eu desejaria sublinhar hoje diante de vós: a solidariedade. Sinto-me levado a oferecer-vos estas considerações, primeiro porque a solidariedade está inscrita, de diversas maneiras, na natureza mesma do trabalho humano, mas também por motivo dos objectivos da vossa Organização, e sobretudo do espírito que a anima. O espírito com o qual a Organização Internacional do Trabalho desempenhou a sua missão desde o principio é espírito de universalismo, que descobre o seu ponto de apoio na igualdade fundamental das Nações e na igualdade dos homens, e que é visto ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada de toda a política social. É também um espírito de humanismo, empenhado em desenvolver todas as potencialidades do homem, materiais e espirituais. É enfim um espírito comunitário que se exprime de maneira bem sucedida no tripartismo das vossas estruturas. A este propósito, faço minhas as palavras pronunciadas aqui por Paulo VI na sua visita em 1969: "O vosso instrumento original e orgânico está em fazer conspirar as três forças que estão em exercício na dinâmica humana do trabalho moderno: os homens de governo, os dadores do trabalho e os trabalhadores. E o vosso método — desde agora típico paradigma —, consiste em harmonizar estas três forças, em fazer que elas não continuem a opor-se, mas em concorrer numa colaboração corajosa e fecunda, por um constante diálogo para o estudo e a solução de problemas sempre renascentes e sem cessar renovados" (Discurso à O.I.T., 10 de Junho de 1969, n. 15: AAS 61, 1969, p. 498). O facto de os problemas de trabalho terem sido vistos como devendo ser resolvidos graças ao compromisso de todas as partes interessadas, por negociações pacíficas tendentes ao bem do homem no trabalho e à paz entre as sociedades, mostra que estais conscientes da exigência da solidariedade que vos une num esforço comum para além das diferenças reais e das divisões sempre possíveis.

6. Esta intuição fundamental que os fundadores da Organização Internacional do Trabalho inscreveram tão longamente na estrutura mesma da Organização e tem como corolário que os objectivos em vista não podem ser realizados senão num esforço comunitário e solidário, responde à realidade do trabalho humano. Porque, nas suas dimensões profundas, a realidade do trabalho é a mesma em qualquer ponto do globo terrestre, em qualquer país e em qualquer continente; nos homens e nas mulheres que pertencem às diversas raças e nações, que falam línguas diferentes e representam culturas diversas; naqueles e naquelas que professam religiões diferentes ou exprimem de modos múltiplos as suas relações com a religião e com Deus. A realidade do trabalho é a mesma numa multiplicidade de formas: o trabalho manual e o trabalho intelectual; o trabalho agrícola e o trabalho na indústria; o trabalho nos serviços do sector terciário e o trabalho na investigação; o trabalho do artesão, do técnico e o do educador, do artista ou da mãe no lar; o trabalho do operário nas empresas e o dos chefes intermediários e dos dirigentes. Sem encobrir as diferenças específicas que se mantêm e distinguem muitas vezes de maneira bastante radical os homens e as mulheres que desempenham estas tarefas múltiplas, o trabalho — a realidade do trabalho — faz a união de todos numa actividade que tem uma mesma significação e uma mesma fonte. Para todos, o trabalho é necessidade, é dever e é tarefa. Para cada um e para todos, é um meio de assegurar a vida, a vida de família, e os seus valores fundamentais; é também o caminho que leva a um futuro melhor, o caminho do progresso, o. caminho da esperança. Na diversidade e na universalidade das suas formas, o trabalho humano une os homens porque todo o homem procura no trabalho "a realização da sua humanidade..., o cumprimento da vocação a ser pessoa que lhe é própria em razão da sua mesma humanidade" (:Laborem exercens, n. 6). Sim, "o trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das criaturas" (Laborem exercens, preâmbulo). O trabalho leva a marca da unidade e da solidariedade.

É aliás difícil — encarando aqui, diante desta Assembleia, um panorama tão vasto, tão diferenciado e, ao mesmo tempo, tão universal como o do trabalho de toda a família humana — não ouvir no fundo do coração as palavras do livro do Génesis, no qual o trabalho foi dado como tarefa ao homem, a fim de por meio deste trabalho ele submeter a si a terra e a dominar (cf. Gén 1, 28).

7. A razão fundamental, que me leva a propor-vos o tema da solidariedade, encontra-se portanto na natureza mesma do trabalho humano. O problema do trabalho tem um laço extremamente profundo com o do sentido da vida humana. Por este laço, o trabalho torna-se um problema de natureza espiritual, e é-o na realidade. Esta verificação não tira nada aos outros aspectos do trabalho, aspectos que são, poder-se-ia dizer, mais fáceis de medir e aos quais estão ligadas estruturas e operações diversas de carácter "exterior", ao nível da organização; esta mesma verificação permite ao contrário colocar de novo o trabalho humano, de qualquer maneira que ele seja executado pelo homem, no interior do homem, quer dizer no mais profundo da sua humanidade, no que lhe é próprio, no que faz que ele seja homem e sujeito autêntico do trabalho. A convicção de que existe um laço essencial entre o trabalho de cada homem e o sentido global da existência humana encontra-se na base da doutrina cristã sobre o trabalho — pode-se dizer na base do "evangelho do trabalho" — e ele impregna o ensino e a actividade da Igreja, de maneira diversa, em cada uma das etapas da sua missão na história. "Nunca mais o trabalho contra o trabalhador, mas sempre o trabalho... ao serviço do homem"; convém repetir ainda hoje estas palavras pronunciadas há 13 anos, neste mesmo lugar, pelo Papa Paulo VI (Discurso à O.I.T., 10 de Junho de 1969, n. 11: AAS 61, 1969, p. 495). Se o trabalho deve sempre servir ao bem do homem, se o programa do progresso não se pode realizar senão por meio do trabalho, existe então um direito fundamental a julgar do progresso segundo o critério seguinte: o trabalho serve realmente o homem? Corresponde à sua dignidade? Por ele, o sentido próprio da vida humana realiza-se na sua riqueza e na sua diversidade?

Temos o direito de pensar assim no trabalho do homem; temos também o dever disso. Temos o direito e o dever de considerar o homem não enquanto ele é útil ou inútil ao trabalho, mas de encarar o trabalho na sua relação com o homem, com cada homem, de considerar o trabalho na medida em que ele é útil ou inútil ao homem. Temos o direito e o dever de reflectir sobre o trabalho tendo em conta as diversas necessidades do homem, nos campos do espírito e do corpo, de tratar assim do trabalho do homem, em cada sociedade e em cada sistema, nas zonas em que reina o bem-estar, e mais ainda onde grassa a indigência. Temos o direito e o dever de tomar esta maneira de tratar o trabalho na sua relação com o homem — e não o inverso — como critério fundamental de apreciação do progresso em si mesmo. Na verdade o progresso exige sempre uma avaliação e um juízo de valor: devemo-nos perguntar se esse progresso é suficientemente "humano" e ao mesmo tempo suficientemente "universal"; se serve para nivelar as desigualdades injustas e para favorecer um futuro pacífico do mundo; se, no trabalho, os direitos fundamentais estão assegurados, para cada pessoa, para cada família e para cada nação. Numa palavra, devemo-nos perguntar constantemente se o trabalho serve para realizar o sentido da vida humana. Procurando uma resposta a estas interrogações na análise do conjunto dos processos sócio-económicos, não se podem deixar de lado os elementos e o conteúdo que formam o "interior" do homem: o desenvolvimento do seu conhecimento e da sua consciência. O laço entre o trabalho e o sentido mesmo da existência humana testemunha sempre que o homem não foi alienado pelo trabalho, que não foi escravizado. Muito ao contrário, ele confirma que o trabalho se tornou o aliado da sua humanidade, que ele a ajuda a viver na verdade e na liberdade: na liberdade construída sobre a verdade que lhe permite levar, em plenitude, uma vida mais digna do homem.

8. Diante das injustiças clamorosas derivadas dos sistemas do século passado, os operários, sobretudo na indústria, reagiram, descobrindo ao mesmo tempo, para lá da miséria comum, a força que representam acções combinadas. Vítimas das mesmas injustiças, uniram-se numa mesma acção Na minha encíclica sobre o trabalho humano, chamei a esta reacção "justa reacção social"; tal situação "deu origem, poder-se-ia mesmo dizer, fez que irrompesse um grande movimento de solidariedade entre os homens do trabalho e, em primeiro lugar, entre os trabalhadores da indústria. O apelo à solidariedade e à acção comum, lançado aos homens do trabalho... tinha o seu valor, valor importante, e uma eloquência própria, sobre o ponto de vista da ética social, sobretudo quando se tratava do trabalho sectorial, monótono e despersonalizante nas grandes instalações industriais, quando a máquina tendia a dominar o homem. Era a reacção contra a degradação do homem como sujeito do trabalho... tal reacção uniu o mundo operário numa convergência comunitária, caracterizada por uma grande solidariedade" (Laborem exercens, n. 8). Apesar dos melhoramentos conseguidos desde então, apesar do respeito maior e efectivo dos direitos fundamentais dos trabalhadores em muitos países, diversos sistemas fundados na ideologia e no poder deixaram persistir injustiças flagrantes ou criaram outras novas. Além disso, a consciência desenvolvida da justiça social faz descobrir novas situações de injustiças que, pela sua extensão geográfica ou pelo desprezo da dignidade inalienável da pessoa humana, ficam sendo verdadeiros desafios à humanidade. Hoje, é preciso que se forje nova solidariedade fundada sobre a verdadeira significação do trabalho humano. Porque é somente a partir de uma justa concepção do trabalho que será possível definir os objectivos que a solidariedade deve continuar e as diferentes formas que deverá assumir.

9. O mundo do trabalho, Senhoras e Senhores, é o mundo de todos os homens e de todas as mulheres que, pela sua actividade procuram responder à sua vocação de submeter a terra para o bem de todos. A solidariedade do mundo do trabalho será portanto uma solidariedade que alarga os horizontes para abraçar, com os interesses dos indivíduos e dos grupos particulares, o bem comum de toda a sociedade tanto ao nível de uma nação como ao nível internacional e planetário. Será uma solidariedade para o trabalho, que se manifesta na luta pela justiça e pela verdade da vida social. Qual seria, com efeito, a justificação de uma solidariedade que se consumisse numa luta de oposição irredutível aos outros, numa luta contra os outros? Certamente, a luta pela justiça não poderia ignorar os interesses legítimos dos trabalhadores unidos numa mesma profissão ou atacados especialmente por certas formas de injustiça. Ela não ignora a existência, entre os grupos, de tensões que se arriscam muita vezes a tornar-se conflitos abertos. A verdadeira solidariedade tem em vista a luta por uma ordem social justa em que todas as tensões possam ser absorvidas e em que os conflitos — tanto ao nível de grupos como ao das nações — possam encontrar mais facilmente a sua solução. Para criar um mundo de justiça e de paz, a solidariedade deve destruir os fundamentos do ódio, do egoísmo e da injustiça, erectos demasiadas vezes em princípios ideológicos ou em lei essencial da vida em sociedade. No interior de uma mesma comunidade de trabalho, a solidariedade impele ao descobrimento das exigências de unidade inerentes à natureza do trabalho, mais que das tendências à distinção e à oposição. Ela recusa-se a conceber a sociedade em termos de luta "contra" e as relações sociais em termos de oposição irredutível das classes. A solidariedade, que descobre a sua origem e a sua força na natureza do trabalho humano e portanto no primado da pessoa humana sobre as coisas, conseguirá criar os instrumentos de diálogo e de apoio mútuo que permitirão resolver as oposições sem procurar a destruição de quem se opõe. Não, não é utópico afirmar que se poderá fazer do mundo do trabalho um mundo de justiça.

10. A necessidade para o homem de defender a realidade do seu trabalho e de libertar este de toda a ideologia para colocar de novo em vista o verdadeiro sentido da actividade humana, essa necessidade, dizíamos, manifesta-se de maneira particular quando se considera o mundo do trabalho e a solidariedade que ele requer no contexto internacional. O problema do homem no trabalho apresenta-se hoje numa perspectiva mundial que já não é possível deixar de tomar em consideração. Todos os grandes problemas do homem são agora problemas mundiais! É à escala do mundo que eles devem ser pensados, num espírito realista certamente, mas também num espírito inovador e exigente. Quer se trate dos problemas dos recursos naturais, do desenvolvimento ou do emprego, a solução adequada não pode encontrar-se senão tomando em conta perspectivas internacionais. Há 15 anos, em 1967, Paulo VI fazia notar na encíclica Populorum progressio: "Hoje, o facto maior, de que deve cada um tomar consciência, é que a questão social se tomou mundial" (n. 3). Desde essa altura, muitos acontecimentos tornaram ainda mais evidente esta verificação. A crise económica mundial, com as suas repercussões em todos os pontos do globo, força-nos a reconhecer que o horizonte dos problemas é, cada vez mais, horizonte mundial. As centenas de milhões de seres humanos famintos ou subalimentados — que eles também têm direito a sair da sua pobreza — devem-nos fazer compreender que a realidade fundamental é agora a humanidade inteira. Existe um bem comum que não seria possível limitar-se a um compromisso mais ou menos satisfatório, entre reivindicações particulares ou entre exigências unicamente económicas. Impõem-se novas opções éticas; uma nova consciência mundial deve ser formada, cada um, sem renegar as suas origens e os enraizamentos na sua família, no seu povo e na sua nação, nem as obrigações que daí derivam, deve considerar-se como membro desta grande família, a comunidade mundial.

Quer dizer, Senhoras e Senhores, que no trabalho visto num contexto mundial, é preciso descobrir igualmente os novos significados do trabalho humano e determinar em consequência novas tarefas. Quer dizer ainda que o bem comum mundial requer nova solidariedade sem fronteiras. Dizendo isto, não quero diminuir a importância dos esforços que deve fazer cada país em função da sua própria soberania, das suas próprias tradições culturais e à medida das suas próprias necessidades, para dar a si mesmo o tipo de desenvolvimento social e económico que respeita o. carácter irredutível de cada um dos seus membros e do povo inteiro. Também já não se pode supor com demasiada facilidade que a consciência da solidariedade está já suficientemente desenvolvida pelo simples facto de todos estarem embarcados no mesmo navio especial que é a terra. É preciso poder, por um lado, assegurar a complementaridade necessária dos esforços que realiza cada nação a partir dos seus próprios recursos espirituais e materiais e, por outro lado, afirmar as exigências da solidariedade universal e as consequências estruturais que ela implica. Há nisso uma tensão fecunda para manter, a fim de mostrar quanto estas duas realidades estão orientadas interiormente uma para outra, pois, como a pessoa humana, a nação é ao mesmo tempo individualidade irredutível e abertura para os outros.

11. A solidariedade do mundo do trabalho, dos homens no trabalho, manifesta-se segundo várias dimensões. É solidariedade dos trabalhadores entre si; é solidariedade com os trabalhadores; é, primeiro que tudo, na sua realidade mais profunda, solidariedade com o trabalho, visto como dimensão fundamental da existência humana de que depende também o sentido desta existência mesma. Assim compreendida, a solidariedade traz luz particular para o problema do emprego, tornado um dos problemas maiores da sociedade presente, do qual se tem muitas vezes tendência para esquecer que ele é dramático para os operários, sobretudo quanto estes não gozam de nenhuma assistência por parte da sociedade; dramático para o conjunto dos países em devenvolvimento, e isto há numerosas décadas; dramático para os rurais cuja situação é muitas vezes tão precária, seja que eles fiquem no campo que os emprega cada vez menos, seja que eles tentem vir para a cidade à procura de um trabalho que dificilmente se encontra; dramático para os intelectuais, enfim, porque estes, em diferentes categorias e em diversos sectores do mundo do trabalho, correm o risco de um novo tipo de proletarização quando o seu contributo especifico já não é apreciado no seu justo valor, por causa da mutação dos sistemas sociais ou das condições de vida.

Sabe-se que as causas do desemprego involuntário podem ser, e são efectivamente, múltiplas e variadas. Uma destas causas pode encontrar-se no aperfeiçoamento dos instrumentos produtivos que limita progressivamente a parte directa do homem no processo da produção. Entra-se assim de maneira nova na antinomia que se arrisca a opor o trabalho humano ao "capital", entendido como o conjunto dos meios de produção, compreendendo os recursos da natureza e também os meios pelos quais o homem se apropria destas riquezas que lhes são dadas gratuitamente e as transforma à medida das suas necessidades. Assim é posto um problema novo, que mal começa ainda a manifestar-se em todas as suas dimensões e consequências. Distingui-lo, mesmo com contornos ainda vagos e imprecisos, é estar disposto a procurar uma solução desde o principio, sem demasiado esperar que ele se imponha pela força dos prejuízos que traz consigo. A solução deve ser procurada na solidariedade com o trabalho, quer dizer aceitando o principio da primazia do trabalho humano sobre os meios de produção, a primazia da pessoa no trabalho sobre as exigências da produção ou as leis puramente económicas. A pessoa humana constitui o critério primeiro e último para a planificação do emprego; a solidariedade com o trabalho constitui o motivo superior em todas as buscas de soluções e abre novo campo ao engenho e à generosidade do homem.

12. Por este motivo, atrevo-me a dizer em Laborem exercens que o desemprego "é sempre um mal, e quando chega a certas dimensões pode tornar-se verdadeira calamidade social. Torna-se problema particularmente doloroso quando são atingidos principalmente os jovens" (n. 18). Excepto nalguns raros países privilegiados, a humanidade faz actualmente a penosa experiência desta triste realidade. Dá-se sempre conta do drama que ela constitui para tantos jovens que "com enorme pena, vêem frustradas a sua vontade sincera de trabalhar e a sua disponibilidade em assumir a sua própria responsabilidade no desenvolvimento económico e social da comunidade" (ibid.)? Pode aceitar-se uma situação que leva ao risco de deixar os jovens sem a perspectiva de virem a encontrar um dia trabalho ou que, num caso ou noutro, cria o risco de os deixar marcados para a vida? Trata-se aqui de um problema complexo cujas soluções não são fáceis e certamente não uniformes para todas as situações nem para todas as regiões. O Director-Geral sublinhou-o na Relação apresentada a esta 68ª sessão da Conferência Internacional do Trabalho, e, no decurso das vossas deliberações, estes problemas serão certamente evocados em toda a sua complexidade. A busca das soluções, quer seja ao nível de uma nação ou ao nível da comunidade mundial, deverá inspirar-se no critério do trabalho humano compreendido como um direito e uma obrigação para todos, no trabalho humano que exprime a dignidade da pessoa humana e mesmo a acrescenta. Mais ainda, a busca das soluções deverá ser levada pela solidariedade entre todos. Sim, a solidariedade é aqui ainda a chave do problema do emprego. Afirmo-o com energia: tanto ao nível nacional como ao nível internacional, a solução positiva do problema do emprego, e do emprego dos jovens em particular, supõe fortíssima solidariedade do conjunto da população e do conjunto dos povos: cada um esteja disposto a aceitar os sacrifícios necessários; cada um colabore no estabelecimento dos programas e dos acordos tendentes a fazer, da política económica e social, uma expressão tangível da solidariedade; todos ajudem a por em actividade as estruturas apropriadas, económicas, técnicas, políticas e financeiras, que impõe indiscutivelmente o estabelecimento de uma nova ordem social de solidariedade. Recuso-me a acreditar que a humanidade contemporânea, capaz de realizar tão espantosas proezas científicas e técnicas, seja incapaz — por meio do esforço de criatividade inspirado pela natureza mesma do trabalho humano e pela solidariedade que une todos os seres — de encontrar soluções justas e eficazes para o problema essencialmente humano que é o do emprego.

13. Uma sociedade solidária constrói-se cada dia criando, primeiramente, e defendendo, em seguida, as condições efectivas da participação livre na obra comum. Toda a política, que tem em vista o bem comum, deve ser o fruto da coesão orgânica e espontânea das forças sociais. Está nisto ainda uma forma desta solidariedade que é o imperativo da ordem social, uma solidariedade que se manifesta de uma maneira particular através da existência e da actividade das associações dos colegas sociais. O direito de se associar livremente é direito fundamental para todos os que estão ligados ao mundo do trabalho e constituem a comunidade do trabalho. Este direito significa, para cada homem no trabalho, não estar nem só nem isolado; exprime a solidariedade de todos para defenderem os direitos que lhes tocam e derivam das exigências do trabalho; oferece, de maneira normal, o meio de participar activamente na realização do trabalho e de tudo o que a ele se refere, estando guiado igualmente pelo cuidado do bem comum. Este direito supõe estarem os colegas sociais realmente livres para se unirem, aderirem à associação da sua escolha e para a gerirem. Ainda que o direito à liberdade sindical pareça, sem contestação um dos direitos mais geralmente reconhecidos — e a Convenção n. 87 (1948) da Organização Internacional do Trabalho o garanta —, é todavia um direito muito ameaçado, por vezes ridiculizado, seja no seu princípio, seja, — mais vezes — em tal ou tal dos seus aspectos substanciais, de maneira que a liberdade sindical se encontra com isto desfigurada. Parece essencial recordar que a coesão das forças sociais — sempre desejável — deve ser o fruto de uma decisão livre dos interessados, tomada em toda a independência com relação ao poder político, elaborada na plena liberdade de determinar tanto a organização interna como o modo de funcionamento e as actividades próprias dos sindicatos. O homem no trabalho deve ele mesmo assumir a defesa da verdade e da verdadeira dignidade do seu trabalho. O homem no trabalho não pode, por conseguinte, ser impedido de exercer esta responsabilidade, com o encargo para ele de tomar em conta ainda o bem comum do conjunto.

14. Senhoras e Senhores, para além dos sistemas, dos regimes e das ideologias, que procuram estabelecer as relações sociais, propus-vos um caminho, o da solidariedade, o caminho da solidariedade do mundo do trabalho. É uma solidariedade aberta e dinâmica, fundada na concepção do trabalho humano e que vê na dignidade da pessoa humana, em conformidade com o mandato recebido do Criador, o critério primeiro e último do seu valor. Oxalá esta solidariedade vos sirva de guia nos vossos debates e nas vossas realizações!

A Organização Internacional do Trabalho tem já enorme património de realizações no seu campo de actividade. Elaborastes numerosas declarações e convenções internacionais, e outras elaborareis para enfrentar problemas sempre novos e para encontrar soluções cada vez mais adequadas. Formulastes orientações e estabelecestes programas múltiplos, e estais resolvidos a continuar, pela vossa parte, esta aventura sublime que é a humanização do trabalho. Tomando a palavra em nome da Sé Apostólica, da Igreja e da fé cristã, desejo de todo o coração repetir-vos as minhas felicitações pelos méritos da vossa Organização. E, ao mesmo tempo, formulo o voto de que a sua actividade, todos os vossos esforços e todo o vosso trabalho continuem a servir a dignidade do trabalho humano e o autêntico progresso da humanidade. Desejo-vos que sem tréguas contribuais para a criação de uma civilização do trabalho humano, de uma civilização da solidariedade, diria até mais, de uma civilização de amor do homem. Oxalá o homem, graças aos seus esforços consideráveis e de toda a espécie, submeta verdadeiramente a terra (cf. Gén 1, 28) e atinja ele mesmo a plenitude da sua humanidade, aquela que lhe foi fixada pela Sabedoria eterna e pelo eterno Amor!

 



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