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VIAGEM APOSTÓLICA À ESPANHA
31 DE OUTUBRO - 9 DE NOVEMBRO DE 1982

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
DURANTE A VISITA À PONTIFÍCIA
 UNIVERSIDADE DE SALAMANCA

Segunda-feira, 1 de Novembro de 1982

 

Queridos irmãos

1. Como na minha viagem à Alemanha, desejei nesta visita à Espanha ter um encontro pessoal convosco, professores de teologia nas Faculdades e Seminários. Une-me cordialmente a vós a recordação da minha docência universitária, teológica e filosófica, na Polónia, e sobretudo a persuasão da função relevante da teologia na comunidade eclesial. Por isso já na minha primeira Encíclica, a Redemptor hominis, eu escrevia: "A teologia teve sempre e continua a ter uma grande importância, para que a Igreja, Povo de Deus, possa participar na missão profética de Cristo de maneira criadora e fecunda" (n. 19).

Para me encontrar convosco escolhi esta célebre e esplêndida cidade de Salamanca, que com a sua antiga Universidade foi centro e símbolo do período áureo da teologia na Espanha, e que daqui irradiou a sua luz no Concílio de Trento, contribuindo poderosamente para a renovação de toda a teologia católica.

O breve tempo de que disponho, não me permite evocar todas as egrégias figuras daquela época. Entretanto não posso deixar de mencionar os nomes do exegeta, teólogo e poeta Frei Luis de Leão, do "Doctor Navarrus" Martinho de Azpilcueta, do mestre de mestres Francisco de Vitória, dos teólogos tridentinos Domingos de Soto e Bartolomeu de Carranza, de João de Maldonado em Paris, de Francisco de Toledo e Francisco Suarez em Roma, de Gregório de Valença na Alemanha. E como esquecer os "doutores da Igreja", João da Cruz e Teresa de Jesus?

Naqueles tempos tão difíceis para a cristandade, estes grandes teólogos distinguiram-se pela sua fidelidade e criatividade. Fidelidade à Igreja de Cristo e compromisso radical pela sua unidade sob o primado do Romano Pontífice. Criatividade no método e na problemática.

Juntamente com a volta às fontes — a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição — realizaram eles a abertura à nova cultura que estava nascendo na Europa, e aos problemas humanos (religiosos, éticos e políticos) que surgiram com o descobrimento de mundos novos no Ocidente e Oriente. A dignidade inviolável de todo o homem, a perspectiva universal do direito internacional (ius gentium) e a dimensão ética como normativa das novas estruturas sócio-económicas, entraram plenamente na tarefa da teologia e receberam dela a luz da revelação cristã.

Por isso, nos tempos novos e difíceis que estamos a viver, os teólogos daquela época continuam sendo mestres para vós, a fim de se alcançar uma renovação, tão criativa como fiel, que responda às directrizes do Vaticano II, às exigências da cultura moderna, e aos problemas mais profundos da humanidade actual.

2. A função essencial e especifica do trabalho teológico não mudou, nem pode mudar. Já a formulara no século XI Santo Anselmo de Canterbury numa frase admirável por exactidão e densidade: Fidens quaerens intellectum - a fé que busca compreender. A fé não é, pois, somente o pressuposto imprescindível e a disposição fundamental da teologia: a conexão entre ambas é muito mais íntima e profunda.

A fé é a raiz vital e permanente da teologia, que promana precisamente do perguntar e buscar, intrínsecos à mesma fé, isto é, do seu impulso a compreender-se a si mesma, tanto na sua opção radicalmente livre de adesão pessoal a Cristo, quanto no seu assentimento ao conteúdo da revelação cristã. Fazer teologia é, portanto, uma tarefa exclusivamente própria do crente como crente, uma tarefa suscitada de maneira vital e em todo o momento sustentada pela fé, e por isso pergunta e busca ilimitada.

A teologia mantém-se sempre dentro do processo mental, que vai do "criar" ao "compreender"; é reflexão científica, enquanto conduzida de maneira crítica, isto é, consciente dos seus pressupostos e das suas exigências para ser universalmente válida; de maneira metódica, a saber, conforme às normas impostas pelo seu objecto e pelo seu fim; de maneira sistemática, isto é, orientada para uma coerente compreensão das verdades reveladas na sua relação ao centro da fé, Cristo, e no seu significado salvífico para o homem.

O teólogo não pode limitar-se a guardar o tesouro doutrinal herdado do passado, mas deve buscar uma compreensão e expressão da fé, que tornam possível a acolhida no modo de pensar e de falar do nosso tempo. O critério que deve guiar a reflexão teológica é a busca de uma compreensão renovada da mensagem cristã na dialéctica de renovação na continuidade, e vice-versa (cf. Discurso aos Bispos da Bélgica, 18.9.1982).

3. A situação da cultura actual, dominada pelos métodos e pela forma de pensar próprios das ciências naturais, e fortemente influenciada pelas correntes filosóficas que proclamam a validade exclusiva do princípio de verificação empírica, tende a deixar em silêncio a dimensão transcendente do homem; e por isso, logicamente, a omitir ou negar a questão de Deus e da revelação cristã.

Ante esta situação, a teologia é chamada a concentrar a sua reflexão naqueles que são os seus temas radicais e decisivos: o mistério de Deus, do Deus Trinitário, que em Jesus Cristo se revelou como Deus-Amor; o mistério de Cristo, o Filho de Deus feito homem, que, com a sua vida e mensagem, com a sua morte e ressurreição, iluminou de modo definitivo os aspectos mais profundos da existência humana; o mistério do homem, que, na insuperável tensão entre a sua finidade e a sua ilimitada aspiração, traz dentro de si mesmo a irrenunciável pergunta do sentido último da sua vida. É a teologia mesma que impõe a questão do homem, para poder compreendê-lo como destinatário da graça e da revelação de Cristo.

Se a teologia necessitou sempre do auxílio da filosofia, actualmente esta filosofia terá que ser antropológica, isto é, deverá buscar nas estruturas essenciais da existência humana as transcendentes dimensões que constituem a capacidade radical do homem de ser interpelado pela mensagem cristã, para o compreender como salvífico; isto é, como resposta de plenitude gratuita às questões fundamentais da vida humana. Este foi o processo de reflexão teológica seguido pelo Concílio Vaticano II na Constituição Gaudium et spes: a correlação entre os problemas profundos e decisivos do homem, e a luz nova que irradia sobre eles a Pessoa e a mensagem de Jesus Cristo (cf. nn. 9-21).

Deste modo vê-se que a teologia do nosso tempo necessita da ajuda, não só da filosofia, mas também das ciências, e sobretudo das ciências humanas, como imprescindível base para responder à pergunta "que é o homem". Por isso, nas Faculdades de teologia não podem faltar os cursos e "seminários" interdisciplinares.

4. A fé cristã é eclesial, isto é, surge e permanece vinculada à comunidade dos que crêem em Cristo, que chamamos Igreja. Como reflexão nascida desta fé, "a teologia é ciência eclesial, porque cresce na Igreja e actua na Igreja; por isso nunca é tarefa de um especialista, isolado numa espécie de torre de marfim. Está ao serviço da Igreja e, portanto, deve sentir-se dinamicamente integrada na missão da Igreja, de maneira especial na sua missão profética" (João Paulo II, Discurso na Universidade Gregoriana, 15 de Dezembro de 1979, n. 6).

A tarefa do teólogo leva, pois, o carácter de missão eclesial, como participação na missão evangelizadora da Igreja e como preclaro serviço à comunidade eclesial.

Aqui se fundamenta a grave responsabilidade do teólogo, que deve ter sempre presente que o Povo de Deus, e principalmente os sacerdotes e futuros sacerdotes que hão-de educar a fé desse Povo, têm direito a que se lhes expliquem sem ambiguidades nem reduções as verdades fundamentais da fé cristã. "Temos de confessar a Cristo diante da história e do mundo com profunda convicção, sentida e vivida, como o confessou Pedro: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. Esta é a Boa Nova em certo sentido única: a Igreja vive por ela e para ela, assim como dela colhe tudo o que tem para oferecer aos homens" (Discurso à Conferência de Puebla, 28 de Janeiro de 1979, I, 3). "Devemos servir os homens e mulheres do nosso tempo. Devemos servi-los na sua sede de verdades totais, sede de verdades últimas e definitivas, sede da palavra de Deus, sede de unidade entre os cristãos" (Discurso na Universidade Gregoriana, 15 de Dezembro de 1979, n. 6).

5. A conexão essencial da teologia com a fé, fundada e centrada em Cristo, ilumina com toda a claridade a vinculação da teologia com a Igreja e com o seu Magistério. Não se pode crer em Cristo sem crer na Igreja "Corpo de Cristo"; não se pode crer com fé católica na Igreja, sem crer no seu irrenunciável Magistério. A fidelidade a Cristo implica, pois, fidelidade à Igreja; e a fidelidade à Igreja, por sua vez, traz consigo a fidelidade ao Magistério. É preciso, por conseguinte, dar-se conta de que, com a mesma liberdade radical da fé mediante a qual o teólogo católico adere a Cristo, se adere também à Igreja e ao seu Magistério.

Por isso, o Magistério eclesial não é uma instância estranha à teologia, mas intrínseca e essencial a ela. Se o teólogo é antes de tudo e radicalmente um crente, e se a sua fé cristã é fé na Igreja de Cristo e no Magistério, o seu trabalho teológico não poderá deixar de permanecer de maneira fiel vinculado à sua fé eclesial, cujo intérprete autêntico e vinculante é o Magistério.

Sede portanto fiéis à vossa fé, sem cair na perigosa ilusão de separar Cristo da sua Igreja, nem a Igreja do seu Magistério. "O amor à Igreja concreta, que inclui a fidelidade ao testemunho da fé e ao Magistério eclesiástico, não separa o teólogo do seu trabalho próprio, nem o priva da sua irrenunciável consistência. Magistério e teologia têm uma função diversa. Por isso não podem ser reduzidos um ao outro" (Discurso aos teólogos da Alemanha, Altötting, 18 de Novembro de 1980, n. 3).

Contudo, não são duas tarefas opostas, mas complementares. "O Magistério e os teólogos, enquanto devem servir a verdade revelada, estão ligados pelos mesmos vínculos, a saber, estão vinculados à Palavra de Deus, ao 'sentido da fé' (sensus fidei)..., aos documentos da Tradição, nos quais se propõe a fé comunitária do Povo de Deus; finalmente, ao trabalho pastoral e missionário, a que ambos devem atender" (Discurso à Comissão Teológica Internacional, 26 de Setembro de 1979). Por isso o Magistério e a teologia deverão permanecer num diálogo, que resultará fecundo para os dois e para o serviço da comunidade eclesial.

6. Caríssimos professores: sabei que o Papa, que foi também homem de estudo e de universidade, compreende as dificuldades e as exigências enormes do vosso trabalho, é uma tarefa silenciosa e abnegada, que vos pede a total dedicação à investigação e ao ensinamento. Pois, o ensinamento sem a investigação corre o perigo de cair na rotina da repetição.

Sabei ser criativos cada dia, para o que tendes de estar a par das questões actuais mediante a leitura assídua das publicações da mais alta qualidade e o árduo esforço da reflexão pessoal. Fazei teologia com o rigor do pensamento e com a atitude de um coração apaixonado por Cristo, pela sua Igreja e pelo bem da humanidade. Sede tenazes e constantes na continua maturação das vossas ideias e na exactidão da vossa linguagem. Quereria que não esquecesseis estas palavras: a vossa missão na Igreja é tão árdua como importante. Vale a pena dedicar-lhe a vida inteira; vale a pena por Cristo, pela Igreja, pela formação sólida de sacerdotes — e também de religiosos e leigos — que eduquem com fidelidade e competência a consciência dos fiéis no seguro caminho de salvação.

A vossa não foi uma tarefa em vão. O número e nível das Faculdades teológicas da Espanha, juntamente com a qualidade das suas publicações, garantem à teologia espanhola um lugar muito digno na actual teologia católica. Quereria também colocar em realce a especial importância dos centros teológicos para leigos: são eles uma promessa para o futuro da Igreja.

A minha última palavra de saudação é para vós, caríssimos estudantes. A Igreja confia em vós e tem necessidade de vós. Aprendei a pensar com profundidade. Elevai o vosso olhar às necessidades do mundo de hoje, e sobretudo à necessidade de lhe levar a salvação na Pessoa e na Mensagem de Cristo, a cuja compreensão dedicais a vossa formação teológica.

7. A Mãe comum. Sedes Sapientiae, encomendo as vossas pessoas e trabalhos. Seja Ela, que tão profundamente conheceu o seu Filho e tão fielmente O seguiu, que vos mostre sempre o caminho para Jesus.

Para que vivais o que foi estudado e ensinado. Para que na cátedra e nas publicações não haja nada que não corresponda à fé da Igreja e às directrizes do Magistério. Para que sintais a alegria e a responsabilidade eclesial de transmitir a autêntica doutrina de Cristo aos que a comunicarão aos outros. Para que sejais deveras servidores d'Aquele que é luz, verdade, salvação No Seu nome vos encorajo e abençoo com afecto, juntamente com todos os professores de teologia da Espanha e os seus alunos.



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