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PAPA PAULO VI

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 14 de Julho de 1971

O Concílio exige uma renovação da caridade

Damos a este breve colóquio um estilo de extrema simplicidade, seguindo embora uma linha que, usualmente, manifesta a lógica destes encontros semanais, e pretende ser a do Concílio. Portanto, hoje estimulamo-vos a responder a algumas perguntas em série.

O Concílio deixou-nos um tesouro de ensinamentos, que por um lado confirmam e integram o património doutrinal da Igreja católica; mas foi só isto? O Concílio deixou-nos outro tesouro, o das admoestações. A sua palavra instrui-nos não só sobre o que devemos crer e pensar, mas também sobre o que devemos fazer. E, sobre o que devemos fazer, educa-nos o Concílio para um aperfeiçoamento interior e uma actividade exterior (« agere » e « facere », dizem os cultores de termos exactos!)? Sim, o Concílio não só constitui uma grande lição sobre as verdades da fé, mas também uma grande lição sobre os deveres da caridade; propõe-nos um modo característico de vida, faz-nos a apologia de algumas virtudes, quer infundir em nós determinadas formas de juízo e de comportamento, as quais deveriam distinguir na vida prática de cada fiel e na inteira sociedade eclesial o chamado « pós-concílio », ou seja, os frutos deste grande acontecimento, acabado de realizar, que deve determinar algum progresso no caminho histórico, teológico e moral da Igreja.

Estamos nós em condições de identificar algumas ideias fundamentais, algumas virtudes cristãs, que emanam do Concílio e que devem reflectir-se pràticamente, ou seja, moralmente na nossa vida?

A pergunta é mais simples do que fácil. Mas procuremos agora, sem pretensões científicas, deter a atenção numa destas ideias-força, que todos podemos adquirir no conceito que fizemos do Concílio.

Qual é, podemos perguntar-nos, o ponto focal do II Concílio do Vaticano, ou melhor, a ideia informadora dos seus grandes documentos? Parece evidente: é a Igreja. No Concílio, a Igreja reflectiu sobre si mesma. Muitas pessoas notaram-no sapientemente. E que definição global nasceu desta reflexão? Qual foi a consciência que a Igreja maturou em si mesma, depois de vinte séculos de história e após inúmeras experiências, estudos e tratados?

Aqui a resposta é riquíssima, e exigiria uma lista de definições, equivalente aos aspectos que se podem observar na complexa e misteriosa realidade da Igreja. Dir-se-ia que o próprio Concílio teve dificuldade em condensar, numa só expressão, o significado deste termo, para nós muito comum, « Igreja »: sinal e instrumento da união da humanidade com Deus e com Cristo, Povo de Deus, Corpo Místico de Cristo, Reino incipiente de Cristo e de Deus, rebanho de Cristo, campo de Deus, edifício de Deus, família de Deus, templo de Deus, cidade de Deus ... (cfr. Lumen Gentium, 1-7; Unitatis Redintegratio, 2; etc.). Mas, para a nossa mentalidade espiritual e sociológica, parece que a definição mais acessível, essencial e moral (ontológica e deontológica), embora de per si incompleta, é a seguinte: a Igreja é uma comunhão (cfr. Lumen Gentium, 4; Gaudium et Spes, 32; cfr. J. Hamer, L'Êglise est une communion, ed. Cerf 1962).

Sim, a Igreja é uma comunhão, isto é, uma sociedade formada por vínculos que lhe são próprios, resultante, como um ser vivo, de um elemento exterior, visível e orgânico, e de um elemento interior, invisível e vivificante, que é a acção do Espírito Santo, quase a alma do corpo, do qual Cristo, no nosso caso, é a Cabeça: a Cabeça do Corpo Místico, que é precisamente a Igreja (cfr.Ef 4, 15-16;Col 1,18). É uma assembleia, uma estrutura humana, física e ao mesmo tempo mística. E a « comunhão dos Santos ».

Sabeis em que documentos solenes a Igreja se exprimiu sobre esta doutrina? Em dois recentes: na Encíclica Mystici Corporis (29 de Junho de 1943) e, mais autorizada do que qualquer outra, na Constituição Dogmática Lumen Gentium (21 de Novembro de 1964). São as bases da Eclesiologia moderna, intérprete da Eclesiologia apostólica e da tradicional. Deixemos que sejam os estudiosos a falar-nos deste interminável tema; existe, sobre ele, uma literatura, uma teologia (cfr. Santo Tomás, S. Th., III, 8), que a cultura católica não pode ignorar.

A nós, agora, apresenta-se a seguinte questão: comunhão pressupõe uma relação. Relação com quem? Já nos referimos a isso: uma dupla relação: primeiro com Cristo, e por meio d'Ele com Deus, e portanto com os cristãos, tornados irmãos através desta comunhão. A Igreja é uma grande comunidade de fé, de esperança e de amor. Quem, no Espírito Santo e no cumprimento do ministério e do magistério estabelecidos por Cristo, compartilha da mesma fé, da mesma esperança e da mesma caridade, participa da comunhão, pertence à Igreja.

Vedes imediatamente uma consequência bastante importante: as relações que nos ligam a Cristo e a Deus são causa e condição para pertencer à Igreja. O facto de prescindir das relações religiosas, chamemos-lhes também verticais, compromete as relações horizontais, ou seja, humanas e sociais, próprias da Igreja, destinadas à sua unidade e à sua missão salvífica. E vedes também qual é a exigência intrínseca e geradora do ecumenismo: a unidade da Igreja é fundada sobre a autêntica e perfeita « comunhão dos santos » (cfr. Unitatis Redintegratio, 2, 3, etc.). Também poderíamos estudar a afinidade entre a comunhão própria de toda a Igreja e a colegialidade episcopal, que é uma constitutiva e qualificada manifestação daquela.

Deste modo, a comunhão, não meramente exterior, disciplinar, estatística, social, torna-se, para cada fiel e para a multidão dos seguidores de Cristo, um dever fundamental. O Concílio chamou-nos à vocação originária da unidade. O Concílio diz que Deus quis « santificar e salvar os homens, não individualmente, excluindo toda a relação entre eles, mas antes constituí-los em povo, que O conhecesse na verdade e O servisse na santidade » (Lumen Gentium, 9). Nada é mais contrário a esta concepção unitária e universal da salvação cristã, operante em cada alma, assim como no conjunto dos homens, do que o individualismo, o egoísmo, a separação, a divisão, a oposição; e nada é mais conforme ao supremo desejo de Cristo do que o repetido na última Ceia: « sejam um só » (Jo 17, 21; cfr. 17, 22-23). Podemos nós dizer que hoje esta preocupação de unidade caracteriza os movimentos espirituais e colectivos, que exigem do Concílio a sua razão de existir? Muitos, felizmente, sim. Também a reforma litúrgica, que, dando à língua de cada povo da Igreja latina (como já acontece nas Orientais) a faculdade de se exprimir, não tem certamente o objectivo de dividir o Povo fiel, mas de o fazer participar mais conscientemente na mesma oração e na celebração sintonizada dos mesmos mistérios sagrados, pondo no centro, no vértice de toda a religiosidade, a Eucaristia, sacramento e sacrifício, cuja realidade mística é precisamente « a unidade do corpo místico » (Santo Tomás, S.Th., III, 73, 3; cfr. II-II, 39,1). E o mesmo podemos dizer do movimento ecuménico, que se mostra urgente na consciência cristã, com o remorso da unidade desfeita e com a ânsia de a recuperar na verdade e na fraternidade. O mesmo podemos dizer de bom grado e com esperança do desenvolvimento internacional e unitário das associações católicas e do interesse crescente pelas necessidades do Terceiro Mundo e pela causa missionária.

Mas podemos dizer que hoje, em toda a parte, um espírito comunitário percorre o corpo da Igreja? Não se nota uma acentuada tendência a formar grupos fechados e refractários à amizade comunitária e eclesial? Qual é o alvo que tem em vista, frequentemente, a gratuita e demasiada valorização das prerrogativas carismáticas, esquecendo que elas, embora verdadeiras, devem destinar-se ao benefício da comunidade (cfr.1 Cor 12, 7) e pondo-as muitas vezes em oposição às formas autênticas, institucionais da Igreja? Onde quer chegar um certo pluralismo doutrinal indiscriminado, arbitrário e centrífugo? E onde se encontra a fraternidade, numa habitual e agressiva crítica, demolidora da estima e da adesão devida à família eclesial e a quem nela presta o serviço pastoral como guia e revestido de poder responsável? Onde está a caridade cristã, em formas sociais que procuram a sua eficácia em correntes qualificadas pelo egoísmo de classe e pelo choque dos interesses económicos?

Reflictamos, Irmãos e Filhos caríssimos, no grande impulso comunitário dado pelo Concílio à Igreja fiel, e procuremos traduzi-lo em caridade local e universal, na virtude da recíproca estima, de perdoar as ofensas recebidas, prodigando-se pelo bem dos outros, na dedicação paciente e generosa à sociedade, em que a Providência nos pôs a viver, e, finalmente, no amor verdadeiro e forte, concorde com a Igreja das mil vozes, mas verdadeiramente unida e universal.

Pedimos ao Senhor esta virtude comunitária, esperando que vo-la conceda com a nossa Bênção Apostólica.



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