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VIAGEM APOSTÓLICA À ESPANHA
31 DE OUTUBRO - 9 DE NOVEMBRO DE 1982

ENCONTRO DO PAPA JOÃO PAULO II
 COM OS RELIGIOSOS E MEMBROS
DE INSTITUTOS SECULARES EM MADRID

Paróquia de Guadalupe
Terça-feira, 2 de Novembro de 1982

 

Queridos irmãos

1. O encontro de oração esta tarde, aqui em Madrid, quase no início da minha peregrinação apostólica na Espanha, é para mim felicidade imensa. De facto, trata-se de um encontro com pessoas muito queridas, cuja existência, consagrada pelos três votos evangélicos, "pertence, de modo indiscutível, à vida e à santidade da Igreja" (Lumen gentium, 44).

Pertenceis a essa imensa corrente vital que brotou com tanta generosidade nas terras de Espanha, e que fez frutificar abundantemente a semente evangélica em grande número de povos de todo o universo. Famílias religiosas de antiga tradição e de mais recente criação, servistes com grande coração todos os homens, de todas as raças e de todas as línguas; e, antes e agora, vivificastes o tronco bimilenário da Igreja.

Dir-vos-ei com palavras de São Paulo, que "dou graças incessantemente por vós ao meu Deus, pela graça que Ele vos concedeu em Jesus Cristo; porque em todas as coisas fostes enriquecidos n"Ele: assim foi confirmado entre vós o testemunho de Cristo" (1 Cor 1, 4-6). O Papa agradece também a oportunidade deste encontro que Santa Teresa de Jesus facilitou, porque ela foi a ocasião que tanto esperava para poder falar-vos ao coração. Sois uma grande riqueza de espiritualidade e de iniciativas apostólicas dentro da Igreja. De vós depende em boa parte a sorte da Igreja.

Isto impõe-vos uma grave responsabilidade e exige uma profunda consciência da grandeza da vocação recebida e da necessidade de adequar-se cada vez mais a ela. Trata-se, de facto, de seguir a Cristo e, respondendo afirmativamente à chamada recebida, servir com alegria a Igreja em santidade de vida.

2. A vossa vocação é iniciativa divina; um dom feito a vós e, ao mesmo tempo, um dom à Igreja. Confiando na fidelidade daquele que vos chamou e na força do Espírito, colocastes-vos à disposição de Deus com os votos de pobreza, castidade consagrada e obediência; e isto, não por algum tempo, mas para toda a vida, com um "compromisso irrevogável". Pronunciastes na fé um sim para tudo e para sempre. Assim, numa sociedade em que não raro falta a valentia para aceitar compromissos, e na qual muitos preferem inutilmente uma vida sem vínculos, dais o testemunho de viver com compromissos definitivos, numa decisão por Deus que abarca toda a existência.

Vós sabeis amar. A qualidade de uma pessoa pode medir-se pela categoria dos seus vínculos. Por isso pode-se dizer com alegria que a vossa liberdade se vinculou livremente a Deus com um serviço voluntário, em amorosa servidão. E, ao fazê-lo, a vossa humanidade alcançou maturidade. "Humanidade maturada — escrevi na encíclica Redemptor hominis —, significa pleno uso do dom da liberdade, que recebemos do Criador, no momento em que Ele chamou à existência o homem feito à sua imagem e semelhança. Este dom encontra a sua plena realização na doação, sem reservas, de toda a própria pessoa humana, em espírito de amor esponsal a Cristo e, com o mesmo Cristo, a todos aqueles aos quais Ele envia homens e mulheres que a Ele são totalmente consagrados segundo os conselhos evangélicos. Este é o ideal da vida religiosa, assumido pelas Ordens e Congregações, tanto antigas como recentes, e pelos Institutos seculares" (n. 21).

Dai sempre graças a Deus pela misteriosa chamada que um dia ressoou no íntimo do vosso coração: "Segue-Me" (cf. Mt 9, 9; Jo 1, 45). "Vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-Me" (Mt 19, 21). Esta chamada e a vossa resposta — que Deus mesmo com a sua graça colocou na vossa vontade e nos vossos lábios — encontram-se na base do vosso itinerário pessoal; é — não o esqueçais nunca — a razão de todas as vossas ocupações.

Revivei repetidamente na oração esse encontro pessoal com o Senhor, que ao longo da vossa vida continua insistindo: "Segue-Me". Dir-vos-ei com São Paulo: "Os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis" (Rom 11, 29). Fiel é Deus, que não se arrependerá de vos ter escolhido.

E quando na luta ascética quotidiana se tornem necessárias a contrição e a conversão, recordai a parábola do filho pródigo e a alegria do Pai. "Esta alegria indica um bem que não foi atingido: um filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio" (Dives in misericórdia, 6). Praticai a confissão frequente, com a periodicidade que aconselham e indicam as vossas Regras e Constituições.

A vossa vocação forma parte essencial da verdade mais profunda de vós mesmos e do vosso destino. "Não fostes vós que Me escolhestes — diz o Senhor com palavras que se aplicam a vós —, fui eu que vos escolhi e vos nomeei para irdes e dardes fruto, e o vosso fruto permanecer" (Jo 15, 16). Deus escolheu-vos!

3. O vosso compromisso, tomado há decénios ou talvez recentemente, deve fortalecer-se sempre no Senhor. Peço-vos uma renovada fidelidade que torne mais ardente o amor a Cristo, mais sacrificada e alegre a vossa doação, mais humilde o vosso serviço, cientes — dir-vo-lo-ei com Santa Teresa de Jesus —, de que "quem na verdade começa a servir o Senhor, o mínimo que lhe pode oferecer é a própria vida" (Caminho de perfeição, 11, 2).

Para isto requer-se a atenta audição do mistério de Deus, o diário adentrar-se no amor de Cristo crucificado cultivando com empenho a oração, sob a guia segura das fontes puras da espiritualidade cristã. Lede assiduamente as obras dos grandes mestres do espírito. Quantos tesouros de amor e de fé tendes ao alcance das vossas mãos no vosso belo idioma! E, acima de tudo, saboreai com fé e humildade a Sagrada Escritura, a fim de alcançar o "supremo conhecimento de Cristo" (Flp 3, 8). Só n'Ele, mediante o seu Espírito, podereis encontrar a fortaleza necessária para superar as debilidades experimentadas repetidamente.

Mantende viva a certeza de que a vossa vocação é divina, com uma profunda visão de fé alimentada na oração e nos sacramentos, especialmente no sagrado mistério da Eucaristia, fonte e ápice de toda a vida cristã autêntica. Assim superareis facilmente toda a incerteza acerca da vossa identidade, e caminhareis de fidelidade em fidelidade, identificando-vos com Cristo a partir das bem-aventuranças e sendo testemunhas, ao mesmo tempo, do reino de Deus no mundo actual.

Esta fidelidade implica, antes de tudo e como base de tudo, uma ânsia crescente de diálogo com Deus, de união amorosa com Ele. A pessoa consagrada — digo-vos com São João da Cruz —, "de tal modo quer Deus que seja religiosa, que tenha acabado com tudo e que tudo tenha acabado para ela, porque Ele mesmo é quem quer ser a sua riqueza, consolação e glória deleitosa" (Carta 9). Essas ânsias de união com Deus far-vos-ão experimentar a verdade das palavras do Senhor: "o Meu jugo é suave e o Meu fardo é leve" (Mt 11, 30). O Seu jugo é o amor, e o seu fardo é fardo de amores. E esse mesmo amor tornar-vos-á suave o seu peso.

4. Esta dimensão da entrega total e da fidelidade permanente ao Amor constitui a base do vosso testemunho diante do mundo. De facto, o mundo procura em vós um estilo de vida sincero e uma forma de trabalho correspondente ao que verdadeiramente sois. A testemunha não é um simples mestre que ensina o que aprendeu, mas é alguém que vive e actua segundo uma profunda experiência daquilo em que crê.

Como pessoas consagradas sois, antes de tudo, consagrados pela profissão e a prática dos conselhos evangélicos; e assim a vossa vida deve oferecer um testemunho essencialmente evangélico. Deveis continuamente dirigir-vos a Cristo, Evangelho vivo, e reproduzi-lo na vossa vida, na vossa forma de pensar e trabalhar.

Deve ser recuperada a confiança no valor e na actualidade dos conselhos evangélicos, que têm a sua origem nas palavras e no exemplo de Jesus Cristo (cf. Perfectae caritatis, 1). Pobres como Cristo pobre; obedientes, aceitando essa atitude do coração de Cristo, que veio para remir o mundo não para fazer a sua vontade mas a vontade do Pai que o enviou; e vivendo com todas as suas consequências a continência perfeita por amor do Reino dos Céus, como sinal e estímulo da caridade e como manancial de fecundidade apostólica no mundo. Hoje o mundo necessita de ver os exemplos vivos daqueles que, deixando-o completamente, abraçaram como ideal a vida segundo os conselhos evangélicos. É a sinceridade real no seguimento radical de Cristo que atrairá vocações aos vossos Institutos, pois os jovens buscam precisamente essa radicalidade evangélica.

O Evangelho é definitivo e não passa. Os seus critérios são para sempre. Não podeis fazer "releituras" do Evangelho segundo os tempos, conformando-vos a tudo o que o mundo pede. Pelo contrário, é preciso ler os sinais dos tempos e os problemas do mundo de hoje, à luz indefectível do Evangelho (cf. Discurso inaugural da Assembleia de Puebla, I, 4.5).

5. Factor decisivo em todas as épocas em que a Igreja teve que empreender grandes mudanças e reformas, foi a fidelidade dos religiosos à sua doutrina e normas. Hoje vivemos uma dessas épocas em que é necessário oferecer ao mundo o testemunho da vossa fidelidade à Igreja.

Os cristãos têm direito a exigir à pessoa consagrada que ame a Igreja, a defenda, a fortaleça e enriqueça com a sua adesão e obediência. Esta fidelidade não deve ser meramente exterior, mas principalmente interior, profunda, alegre e sacrificada. Tendes que evitar tudo o que possa levar os fiéis a crerem que existe na Igreja um duplo magistério, o magistério autêntico da Hierarquia e o dos teólogos e pensadores, ou que as normas da Igreja perderam hoje o seu vigor.

Não poucos de vós estais dedicados à formação teológica dos fiéis, à direcção de centros educativos ou de assistência e dirigis publicações de informação e de formação. Através de todos estes meios, procurai educar integralmente, inculcar um profundo respeito e amor à Igreja e fomentar uma sincera adesão ao seu Magistério. Não sejais portadores de dúvidas ou de "ideologias", mas de "certezas" de fé. O verdadeiro apóstolo e evangelizador, declarava o meu Predecessor Paulo VI, "terá de ser, portanto, alguém que, mesmo à custa da renúncia pessoal e do sofrimento, procura sempre a verdade que há-de transmitir aos outros. Ele jamais poderá trair ou dissimular a verdade, nem com a preocupação de agradar aos homens, de arrebatar ou de chocar, nem por originalidade ou desejo de dar nas vistas. Ele não há-de evitar a verdade" (Evangelii nuntiandi, 78).

Tudo isto deve ser tido especialmente presente quando os vossos ouvintes são religiosas que seguem os vossos cursos e escutam as vossas conferências. Antes de tudo, tendes que transmitir com fidelidade a doutrina da Igreja, essa doutrina que ficou expressa em documentos tão ricos como os do Concílio Vaticano II. No renovamento da vida de consagração, que os tempos novos estão exigindo, deve salvar-se a fidelidade ao pensamento e às normas da Igreja; mas concretamente, em campo doutrinal e em matéria litúrgica, evitando certas posições criticas cheias de amargura, que obscurecem a verdade, desconcertam os fiéis e as próprias pessoas consagradas. A fidelidade ao Magistério não é freio para uma recta investigação, mas condição necessária de autêntico progresso da verdadeira doutrina.

6. A vida comunitária é um elemento essencial, não da vida consagrada a si mesma, mas da forma religiosa dessa consagração. Deus chamou os religiosos à santificarem-se e a trabalharem em comunidade. A vida comunitária tem o seu fundamento não numa amizade humana, mas na vocação de Deus, que livremente vos escolheu para formar uma nova família, cuja finalidade é a plenitude da caridade, e cuja expressão é a observância dos conselhos evangélicos.

Elementos de uma verdadeira vida comunitária são o superior, possuidor de uma autoridade (cf. Optatam totius, 14) que deve exercer em atitude de serviço; as regras e tradições que configuram cada família religiosa; e, finalmente, a Eucaristia, que é o principio de toda a comunidade cristã; de facto, quando participamos da Eucaristia, todos comemos o mesmo Pão, bebemos o mesmo Sangue e recebemos o mesmo Espírito. Por este motivo, o centro da nossa vida comunitária não pode ser senão Jesus na Eucaristia.

A dimensão comunitária deve estar presente no vosso trabalho apostólico. O religioso não é chamado a trabalhar como uma pessoa isolada ou por conta própria. Hoje mais do que nunca é necessário viver e trabalhar juntos, primeiro dentro de cada família religiosa e depois colaborando com outras pessoas consagradas e membros da Igreja. A união faz a força. Por outro lado, a vida comunitária oferece um campo extraordinário para o sacrifício próprio, para se esquecer a si mesmo e pensar no irmão, abraçando todos na caridade de Cristo.

7. O consagrado é uma pessoa que, renunciando ao mundo e a si mesmo se entregou completamente a Deus e, cheio de Deus, torna ao mundo para trabalhar pelo Reino de Deus e pela Igreja.

A pessoa do consagrado está marcada profundamente por esta pertença exclusiva a Deus, ao mesmo tempo que tem por objecto do seu serviço os homens e o mundo. A vida e a actividade da pessoa consagrada não se podem reduzir a um horizontalismo terreno, esquecendo essa consagração a Deus e essa obrigação de impregnar o mundo de Deus. Em todas as vossas actividades há-de estar presente este fim teológico.

Dentro da Igreja existem diversos carismas, e por conseguinte diversos serviços, que se completam mutuamente. Não seria justo que os religiosos entrassem no campo próprio dos leigos: a consagração do mundo a partir de dentro (cf. Lumen gentium, 31; Gaudium et spes, 43).

Isto não significa que a vossa consagração religiosa e os vossos ministérios eminentemente religiosos não tenham uma repercussão profunda no mundo e na mudança das suas estruturas. Se o coração dos homens não mudar, as estruturas do mundo não poderão mudar de forma eficaz (cf. Evangelii nuntiandi, 18). O ministério dos religiosos ordena-se principalmente para obter a conversão dos corações a Deus, a criação de homens novos e para indicar aqueles campos onde os leigos, consagrados ou simples cristãos, podem e devem actuar para mudar as estruturas do mundo.

A este propósito, quero exprimir a minha estima mais profunda, acompanhada da minha cordial saudação, a todos os membros dos Institutos Seculares masculinos da Espanha e aos aqui presentes. Vós tendes a vossa forma peculiar de consagração e o vosso lugar próprio na Igreja. Alimentados com uma sólida espiritualidade, sede fiéis ao chamamento de Cristo e da Igreja, para serdes válidos instrumentos de transformação do mundo a partir do interior.

Pensando no tema do próximo Sínodo, quereria convidar-vos, religiosos sacerdotes, a considerar como um dos vossos primeiros ministérios o sacramento da confissão. Ouvindo as confissões e perdoando os pecados, estais eficazmente edificando a Igreja, derramando sobre ela o bálsamo que sara as feridas do pecado. Se na Igreja deve realizar-se uma renovação do sacramento da Penitência, será necessário que o sacerdote religioso se dedique com alegria a este ministério.

8. Quero, antes de terminar, recordar-vos uma característica dos religiosos espanhóis que está, talvez, a suportar um passageiro eclipse e que é necessário restaurar em todo o seu antigo esplendor: refiro-me à generosidade missionária com que, milhares de consagrados espanhóis, dedicaram a própria vida à tarefa apostólica de implantar a Igreja em terras ainda por evangelizar. Não deixeis que os vínculos da carne e do sangue, nem o afecto que justamente nutris pela pátria onde nascestes e aprendestes a amar a Cristo, se convertam em laços que diminuam a vossa liberdade (cf. Evangelii nuntiandi, 69) e ponham em perigo a plenitude da vossa entrega ao Senhor e à sua Igreja. Recordai sempre que o espírito missionário de uma determinada porção da Igreja é a medida exacta da sua vitalidade e autencididade.

9. Mantende sempre, por fim, uma terna devoção à Santa Mãe de Deus. A vossa piedade para com Ela deve conservar a simplicidade dos primeiros momentos. A Mãe de Jesus, que também é nossa Mãe, modelo de entrega ao Senhor e à sua missão, vos acompanhe, vos torne suave a cruz e vos conceda, em qualquer circunstância da vossa vida, essa alegria e paz inalteráveis, que só o Senhor pode dar. Em penhor delas dou-vos com afecto a minha cordial Bênção.

 



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