VIAGEM APOSTÓLICA À ESPANHA
31 DE OUTUBRO - 9 DE NOVEMBRO DE 1982
DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
NO ENCONTRO COM OS INTELECTUAIS
E PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS
Cidade Universitária de Madrid
3 de Novembro de 1982
Excelentíssimos e Ilustríssimos Senhores
Senhoras e Senhores
1. É-me particularmente grato encontrar-me hoje com um grupo tão qualificado de homens e mulheres, que representam as Academias Reais, o mundo da universidade, da pesquisa, da ciência e da cultura da Espanha. Recebei antes de mais nada todo o meu mais cordial agradecimento por terdes vindo em grande numero para o encontro com o Papa.
Quero expressar-vos com a minha visita o profundo respeito e estima que nutro pelo vosso trabalho. Faço-o hoje com especial interesse, consciente de que o vosso trabalho — pelos vínculos existentes e pela comunidade de idioma — pode também prestar uma válida colaboração a outros povos, sobretudo às nações irmãs da íbero-América.
2. A Igreja, que recebeu a missão de ensinar a todos os povos, não deixou de difundir a fé em Jesus Cristo e actuou como um dos fermentos civilizadores mais activos da história. Contribuiu deste modo para o nascimento de culturas muito ricas e originais em tantas nações. Pois, como eu disse perante a UNESCO há alguns anos, o vínculo do Evangelho com o homem é criador de cultura no seu próprio fundamento, dado que ensina a amar o homem na sua humanidade e na sua excepcional dignidade.
Ao instituir recentemente o Pontifício Conselho para a Cultura, insisti em que "a síntese entre cultura e fé não é só uma exigência da cultura, mas também da fé... Uma fé que não se torna cultura é uma fé não de modo pleno acolhida, não inteiramente pensada, e nem com fidelidade vivida" (L'Osservatore Romano, edição em língua portuguesa, 30 de Maio de 1982, p. 3).
3. Desejo reflectir convosco sobre algumas das responsabilidades que nos são comuns no campo cultural, e ao mesmo tempo tratar de descobrir os meios para enriquecer o diálogo entre a Igreja e as novas culturas. Este diálogo é particularmente fecundo, se se verificam as condições indispensáveis de colaboração e respeito mútuo, como o demonstra a história cultural da vossa nação.
Os vossos intelectuais; escritores, humanistas, teólogos e juristas deixaram marcas na cultura universal e de maneira eminente serviram a Igreja. Como não evocar a este respeito a influência excepcional de centros universitários como Alcalá e Salamanca? Penso sobretudo nesses grupos de pesquisadores que de modo admirável contribuíram para a renovação da teologia e dos estudos bíblicos; que fundaram sobre bases duradouras os princípios do direito internacional; que souberam cultivar com tanto esplendor o humanismo, as letras, as línguas antigas; que puderam produzir sumas, tratados, monumentos literários, sendo um dos seus símbolos mais prestigiosos a Poliglota Complutense.
À luz desta nobre tradição, devemos pensar nas condições permanentes da criatividade intelectual. Farei breve referência à liberdade da pesquisa feita em comum, à abertura ao universal e ao saber concebido como serviço ao homem integral.
4. Na Espanha, como em outros países da Europa, gerações inteiras, de pesquisadores, professores e autores tiveram grande fecundidade graças à liberdade de pesquisa, que lhes asseguravam comunidades universitárias de regime autónomo; delas, o Rei ou a Igreja faziam-se frequentemente garantes.
Esses centros universitários, reunindo mestres especializados em diversas disciplinas, constituíam um meio propício para a criatividade, a emulação e o diálogo constante com a teologia. A universidade aparecia antes de mais nada como um assunto dos mesmos universitários e, na colaboração entre mestres e discípulos, realizavam-se as condições favoráveis ao descobrimento, ao ensinamento e à difusão do saber.
Os mestres sabiam que, em campo teológico, a pesquisa implica fidelidade à Palavra revelada em Jesus Cristo e confiada à Igreja. Também o diálogo entre teologia e Magistério se revelou muito fecundo. Bispos e teólogos sabiam encontrar-se, em beneficio comum de pastores e professores.
Se em momentos como os da Inquisição se produziram tensões, erros e excessos — factos que a Igreja de hoje examina à luz objectiva da história — é necessário reconhecer que o conjunto de meios intelectuais da Espanha soubera reconciliar de modo admirável as exigências de uma plena liberdade de investigação com um profundo sentido de Igreja. São testemunho disto as inúmeras criações de escritos clássicos que os mestres, sábios e autores da Espanha souberam trazer ao tesouro cultural da Igreja.
5. Verifica-se também na tradição intelectual da vossa nação a abertura ao universal, que deu reputação e fama aos vossos mestres.
Os vossos sábios e pesquisadores tiveram os olhos abertos à história clássica e bíblica, aos demais países da Europa, ao mundo antigo e novo. Os vossos autores foram pioneiros geniais na ciência das relações internacionais e do direito entre as nações.
O rápido estabelecimento de universidades de alto prestígio modeladas na de Salamanca, das que chegaram a implantar-se até trinta nas nascentes Américas, é outra prova do universalismo que durante longo tempo caracterizou a vossa cultura, enriquecida por tantos descobrimentos e descobridores, e pela profunda influência de tantos missionários no mundo inteiro.
O papel que o vosso país reconheceu a Igreja, deu à vossa cultura uma dimensão especial. A Igreja esteve presente em todas as etapas da elaboração e do progresso da civilização espanhola.
A vossa nação foi o crisol onde tradições muito ricas se fundiram numa síntese cultural única. Os traços característicos das colectividades hispânicas enriqueceram-se com contributos históricos do mundo árabe — a vossa harmoniosa língua, arte e toponímia dão prova disto — fundindo-se numa civilização cristã amplamente aberta ao universal. Tanto dentro como fora das suas fronteiras, a Espanha fez-se a si mesma, acolhendo a universalidade do Evangelho e as grandes correntes culturais da Europa e do mundo,
6. Os vossos mestres e pensadores tinham também o sentimento de servir o homem integral, de responder às suas necessidades psíquicas, intelectuais, morais e espirituais. Deste modo nasceu uma ciência do homem, na qual colaboraram tanto os médicos como os filósofos, teólogos, moralistas e juristas.
Um considerável lugar corresponde aos vossos grandes mestres espirituais. A obra deles teve uma dimensão que ultrapassou rapidamente as vossas fronteiras para se estender à Igreja inteira. Pensemos em Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, doutores da Igreja, São Domingos, Frei Luis de Granada, Santo Inácio de Loiola, figuras gigantes no campo da espiritualidade.
Eles prestaram grandes serviços também à cultura do homem, continuando uma longa tradição em que se destacam precursores eminentes, como Santo Isidoro de Sevilha, um dos primeiros enciclopedistas católicos, e São Raimundo de Penhaforte, autor de uma das primeiras sínteses do direito no vosso país. Todos esses homens e mulheres são mestres, no sentido pleno da palavra, que souberam, com uma inteligência excepcional e profética, servir o homem nas suas mais elevadas aspirações. Quem pode medir a sua influência e o efeito duradouro dos seus ensinamentos, escritos e criações? São maravilhosas testemunhas de uma cultura que entendia o homem como criado à imagem de Deus, capaz de dominar o mundo, mas chamado sobretudo a um progresso espiritual cujo modelo perfeito é Jesus Cristo.
7. Estas lições da história da Espanha merecem ser recordadas. Em primeiro lugar para se render uma homenagem à insigne contribuição que os vossos mestres, sábios, investigadores e os vossos santos trouxeram à humanidade inteira, que não seria o que é sem a herança hispânica.
Outra razão convida-nos hoje, em contextos históricos muito diversos, a reflectir sobre as condições que podem nos nossos dias favorecer a promoção da cultura e da ciência, e estimular as investigações sobre o homem, das quais a nossa época tem tanta necessidade.
Para os homens e as mulheres de cultura, é de grande proveito meditar sobre os pressupostos da criatividade intelectual e espiritual. E que, hoje como ontem, reclamam um clima de liberdade e de cooperação entre pesquisadores, com uma atitude de abertura ao universal e com uma visão integral do homem.
8. A primeira condição é que se assegure a liberdade de espírito. Na pesquisa, de facto, é necessário ter liberdade para analisar e anunciar os resultados.
A Igreja apoia a liberdade de pesquisa, que é um dos atributos mais nobres do homem. Mediante a pesquisa, o homem chega à Verdade: um dos nomes mais formosos que Deus deu a si mesmo. Porque a Igreja está convencida de que não pode haver contradição real entre a ciência e a fé, uma vez que toda a realidade procede em última instância de Deus criador. Assim o afirmou o Concilio Vaticano II (cf. Gaudium et spes, 36). Também eu o recordei em várias ocasiões aos homens e às mulheres de ciência. É certo que ciência e fé representam duas ordens de conhecimento distintas, autónomas nos seus procedimentos, mas convergentes finalmente no descobrimento da realidade integral que tem a sua origem em Deus (cf. Discurso na Catedral de Colónia, 15 de Novembro de 1980).
Por parte da Igreja, como por parte dos melhores sábios modernos tende-se a estabelecer um amplo acordo sobre esse ponto. As relações entre o mundo das ciências e a Santa Sé tornaram-se cada vez mais frequentes, marcadas por uma recíproca compreensão. Sobretudo desde os tempos do meu predecessor Pio XII e também de Paulo VI, os Papas entraram num diálogo cada vez mais frequente com numerosos grupos de sábios, de especialistas, de pesquisadores, que encontraram na Igreja um interlocutor desejoso de os compreender, de os animar na sua pesquisa, manifestando-lhes ao mesmo tempo uma profunda gratidão pelo indispensável serviço que a ciência presta à humanidade.
Se no passado se produziram sérios desacordos ou mal-entendidos entre os representantes da ciência e da Igreja, essas dificuldades foram hoje praticamente superadas, graças ao reconhecimento dos erros de interpretação que puderam deformar as relações entre fé e ciência, e sobretudo graças a uma melhor compreensão dos respectivos campos do saber.
Nos nossos dias, a ciência apresenta problemas em outro nível. A ciência, a técnica derivada dela, provocaram profundas transformações na sociedade, nas instituições e também no comportamento dos homens. As culturas tradicionais foram transtornadas pelas novas formas de comunicação social, de produção, de experimentação, de exploração da natureza e do planejamento das sociedades.
Diante disto, a ciência há-de sentir à frente uma responsabilidade muito maior. O futuro da humanidade depende disto. Homens e mulheres que representais a ciência e a cultura: o vosso poder moral é enorme! Vós podeis conseguir que o sector científico sirva sobretudo a cultura do homem e que jamais se perverta e seja utilizado para a sua destruição. É um escândalo do nosso tempo que muitos pesquisadores estejam dedicados a aperfeiçoar novas armas para a guerra, que um dia poderiam demonstrar-se fatais.
Devemos despertar as consciências. A vossa responsabilidade e possibilidade de influência na opinião pública são imensas. Fazei que elas sirvam para a causa da paz e do verdadeiro progresso do homem! Quantas maravilhas poderia o nosso mundo conseguir, se os melhores talentos e os melhores pesquisadores se unissem na exploração das vias do desenvolvimento de todos os homens e de todas as regiões da terra!
Para isto, a nossa época tem necessidade de uma ciência do homem, de uma reflexão e pesquisa originais. Ao lado das ciências físicas ou biológicas, é necessário que os especialistas das ciências humanas dêem a sua contribuição. Está em jogo o serviço do homem, que deve ser defendido na sua identidade, dignidade e grandeza moral, porque é uma res sacra, como bem disse Séneca.
9. A amplitude dos temas enunciados poderia desanimar os pesquisadores ou pensadores isolados. Por isso, hoje mais do que nunca, a pesquisa deve realizar-se em comum. Hoje em dia é tal a especialização das disciplinas, que para a eficácia da pesquisa e mais ainda para servir o homem, os pesquisadores devem trabalhar em comum. Não só por exigência metodológica, mas para se evitar a dispersão e dar uma resposta adequada aos complexos problemas que devem ser enfrentados.
Partindo das necessidades do homem individual e social, os centros de pesquisa e as universidades deverão superar o fraccionamento de disciplinas, se for necessário metodologicamente, a fim de que os grandes problemas do homem moderno, que se chamam desenvolvimento, fome no mundo, justiça, paz, dignidade para todos, sejam enfrentados com competência e eficácia. Os poderes públicos e a comunidade internacional têm necessidade dos talentos de todos e devem poder contar com o vosso trabalho comum.
A Igreja e os católicos desejam participar activamente no diálogo comum com sábios e pesquisadores. Numerosos católicos realizam já uma função eminente nos diferentes sectores do mundo universitário e da pesquisa. A sua fé e a sua cultura proporcionam-lhes fortes motivações para continuarem a sua tarefa científica; humanista ou literária. São um eloquente testemunho da validade da fé católica e do interesse da Igreja em tudo o que diz respeito à cultura e à ciência.
A Igreja acompanha com particular interesse a vida do mundo universitário, porque está consciente de que nele se formam as gerações que ocuparão os postos-chaves na sociedade de amanhã. Ela deseja poder realizar também a sua tarefa própria no campo universitário, e por isso estimula a constituição e desenvolvimento de universidades católicas.
Num diálogo entre responsáveis da Igreja e dos poderes públicos, é desejável que se alcancem acordos práticos que permitam às universidades católicas dar às comunidades nacionais o serviço original próprio. Reconhecendo esta contribuição, os poderes públicos servem afinal a causa das identidades culturais, múltiplas e diversas na sociedade pluralista de hoje.
10. Uma exigência particularmente importante hoje para a renovação cultural é a abertura ao universal. De facto, percebe-se com frequência que a pedagogia fica reduzida à preparação dos estudantes para uma profissão, mas não para a vida, porque, mais ou menos conscientemente, se dissociou às vezes a educação da instrução.
E no entanto, a universidade deve desempenhar a sua indispensável função. Isto supõe que os educadores saibam transmitir aos estudantes, além da ciência, o conhecimento do homem mesmo, isto é, da sua própria dignidade, da sua história, das suas responsabilidades morais e civis, do seu destino espiritual, dos seus laços com toda a humanidade.
Isto exige que a pedagogia do ensinamento se baseie numa coerente imagem do homem, numa concepção do universo que não parta de concepções aprioristas e que saiba também acolher o transcendente. Para os católicos, o homem foi criado à imagem de Deus e está chamado a transcender o universo.
As culturas que encontraram as suas raízes e vitalidade no cristianismo, reconheciam além disso a importância da fraternidade universal entre os homens. O novo humanismo, de que tanto necessita o nosso tempo, deve revigorar a solidariedade entre todos os seres humanos. Sem isto não podem resolver-se os grandes problemas, como a instauração da paz, o intercâmbio pacífico de recursos naturais, a ecologia, a busca de emprego para todos, a implantação da justiça social.
Na família, na escola e na universidade, as novas gerações aprenderão as exigências da compreensão internacional, do respeito mútuo e da cooperação eficaz nas tarefas do desenvolvimento do mundo. A paz internacional, que hoje é uma aspiração tão profunda da humanidade, será o fruto desta compreensão universal, capaz de aplacar os preconceitos, os rancores e os conflitos. Sim, as raízes da paz são de ordem cultural e moral. Sim, a paz é uma conquista espiritual do homem.
11. Finalmente, o progresso da cultura está unido por conseguinte ao crescimento moral e espiritual do homem. Porque é por meio do seu espírito que o homem se realiza como tal. Para isso deve-se ter uma visão do homem integral.
Por isso a Igreja sente a responsabilidade de defender o homem contra ideologias teóricas ou práticas que o reduzem a objecto de produção ou de consumo; contra as correntes fatalistas que paralisam os ânimos; contra o permissivismo moral que abandona o homem ao vario do hedonismo; contra as ideologias agnósticas que tendem a desalojar Deus da cultura.
Seja-me permitido fazer apelo aos homens e às mulheres que desejam o progresso real da cultura, para que meditem as luminosas páginas do Concílio Vaticano II, que oferecem ao nosso tempo uma antropologia capaz de orientar para a reconstrução de uma sociedade digna da grandeza do homem.
O nosso Criador e Mestre disse-nos: "Conheço o que há dentro do homem". A Igreja, depois d'Ele, ensina que o homem, sublime criatura de Deus, é capaz da santidade e também de qualquer maldade. A Igreja "perita em humanidade", segundo a expressão do meu predecessor Paulo VI, sabe também o que há no homem.
Apesar de todos os seus fracassos, ele é chamado à grandeza moral e à salvação que se realiza em Jesus Cristo, Filho de Deus, que amou o homem a ponto de assumir a sua mesma condição humana e oferecer-lhe a sua ajuda. Esta é a razão da nossa confiança na capacidade do homem de superar-se, de amar os seus irmãos, de construir um mundo novo, uma "civilização do amor".
Aos teólogos e intelectuais católicos exorto-os a aprofundarem estes dados fundamentais da antropologia cristã e a esclarecerem o seu significado prático para a sociedade moderna.
Senhoras e Senhores: como eu disse ante a UNESCO, a vossa contribuição pessoal é importante, é vital. Continuai sempre (cf. Discurso de 2 de Junho de 1980). A Igreja estimula o vosso esforço.
E oxalá no vosso dever bem cumprido, no vosso serviço à humanidade, encontreis essa Verdade total, que dá pleno sentido ao homem e à criação! Essa Verdade que é o horizonte último da vossa busca. Tenho dito.
Copyright © Dicastero per la Comunicazione - Libreria Editrice Vaticana