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CARTA APOSTÓLICA

DESIDERIO DESIDERAVI

DO SANTO PADRE
FRANCISCO

AOS BISPOS, AOS PRESBÍTEROS
E AOS DIÁCONOS,
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS

SOBRE A FORMAÇÃO LITÚRGICA
DO POVO DE DEUS

“DESIDERIO DESIDERAVI hoc Pascha manducare vobiscum antequam patiar” (Lc 22, 15).

1. Caríssimos irmãos e irmãs:

Com esta carta desejo dirigir-me a todos – depois de já ter escrito apenas aos bispos na sequência da publicação do Motu Proprio Traditionis custodes – para partilhar convosco algumas reflexões sobre a Liturgia, dimensão fundamental para a vida da Igreja. O tema é muito vasto e merece uma consideração atenta em todos os seus aspetos: todavia, com este escrito não pretendo tratar a questão de modo exaustivo. Quero, simplesmente, oferecer alguns pontos de reflexão para contemplar a beleza e a verdade do celebrar cristão.

A Liturgia: o “hoje” da história da salvação

2. “Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco, antes de padecer” (Lc 22, 15). As palavras de Jesus, com que se abre a narração da última Ceia, são a fresta através da qual nos é dada a surpreendente possibilidade de intuir a profundidade do amor das Pessoas da Santíssima Trindade para connosco.

3. Pedro e João tinham sido mandados fazer os preparativos para se poder comer a Páscoa mas, vendo bem, toda a criação, toda a história – que finalmente estava para se revelar como história de salvação – é uma grande preparação para a Ceia. Pedro e os outros estão a essa mesa inconscientes e, todavia, necessários: qualquer dom para o ser deve ter alguém disposto a recebê-lo. Neste caso a desproporção entre a imensidade do dom e a pequenez de quem o recebe é infinita e não pode deixar de nos surpreender. Apesar disso – por misericórdia do Senhor – o dom é confiado aos Apóstolos para que seja levado a todos os homens.

4. Ninguém tinha ganho um lugar para aquela Ceia. Todos foram convidados ou, melhor, atraídos pelo desejo ardente que Jesus tem de comer aquela Páscoa com eles: Ele sabe que é o Cordeiro daquela Páscoa, sabe que é a Páscoa. Esta é a novidade absoluta daquela Ceia, a única verdadeira novidade da história, que torna aquela Ceia única e, por isso, “última”, irrepetível. Todavia, o seu infinito desejo de restabelecer a comunhão connosco, que era e continua a ser o projeto originário, só poderá ser saciado quando todos os homens, “de todas as tribos, línguas, povos e nações” (Ap 5, 9) comerem o seu Corpo e beberem o seu Sangue: por isso aquela mesma Ceia se tornará presente, até ao seu regresso, na celebração da Eucaristia.

5. O mundo não o sabe ainda, mas todos “são convidados para o banquete das núpcias do Cordeiro” (Ap 19, 9). Para ter acesso a Ele só precisa da veste nupcial da fé que vem da escuta da sua Palavra (cf. Rm 10, 17): a Igreja prepara-a à medida com a alvura de um tecido “lavado no Sangue do Cordeiro” (cf. Ap 7, 14). Não deveríamos ter um instante sequer de repouso, sabendo que nem todos ainda receberam o convite para a Ceia ou que outros o esqueceram ou perderam nas sendas tortuosas da vida dos homens. Por isso disse que “sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual que à auto-preservação” (Evangelii gaudium, n. 27): para que todos se possam sentar à Ceia do sacrifício do Cordeiro e d’Ele viver.

6. Antes da nossa resposta ao convite – muito antes – está o seu desejo de nós: até podemos não ter consciência disso, mas de cada vez que vamos à Missa a razão primeira é porque somos atraídos pelo seu desejo de nós. Por nossa parte, a resposta possível, a ascese mais exigente é, como sempre, a de nos rendermos ao seu amor, de nos deixarmos atrair por Ele. O certo é que todas as nossas comunhões no Corpo e Sangue de Cristo foram por Ele desejadas na última Ceia.

7. O conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus, o seu sacrifício em obediência de amor ao Pai. Se não tivéssemos tido a última Ceia, isto é, a antecipação ritual da sua morte, não teríamos podido compreender como a execução da sua condenação à morte pudesse ser o ato de culto perfeito e agradável ao Pai, o único verdadeiro ato de culto. Poucas horas depois, os Apóstolos teriam podido ver na cruz de Jesus, se tivessem suportado o seu peso, o que é que queria dizer “corpo oferecido”, “sangue derramado”: e é disso que fazemos memória em cada Eucaristia. Quando regressa, ressuscitado dos mortos, para partir o pão pelos discípulos de Emaús e pelos seus que tinham voltado a pescar peixe – e não homens – no lago da Galileia, esse gesto abre os seus olhos, cura-os da cegueira infligida pelo horror da Cruz, tornando-os capazes de “ver” o Ressuscitado, de crer na Ressurreição.

8. Se tivéssemos chegado a Jerusalém depois do Pentecostes e tivéssemos sentido o desejo não só de ter informações sobre Jesus de Nazaré, mas também de ainda o poder encontrar, não teríamos tido outra possibilidade a não ser a de procurar os seus para escutar as suas palavras e ver os seus gestos, mais vivos do que nunca. Não teríamos tido outra possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele a não ser a daquela comunidade que celebra. Por isso a Igreja sempre guardou como o seu tesouro mais precioso o mandato do Senhor: “fazei isto em memória de mim”.

9. Desde o princípio que a Igreja foi consciente de que não se tratava de uma mera representação, mesmo que sagrada, da Ceia do Senhor: não teria tido qualquer sentido e ninguém poderia ter pensado em “pôr em cena” – e ainda mais sob o olhar de Maria, a Mãe do Senhor – aquele altíssimo momento da vida do Mestre. Iluminada pelo Espírito Santo, a Igreja entendeu desde o primeiro instante que aquilo que era visível de Jesus, aquilo que se podia ver com os olhos e tocar com as mãos, as suas palavras e os seus gestos, o caráter concreto do Verbo encarnado, tudo d’Ele tinha passado para a celebração dos sacramentos [1].

A Liturgia: lugar do encontro com Cristo

10. Aqui reside toda a poderosa beleza da Liturgia. Se a Ressurreição fosse para nós um conceito, uma ideia, um pensamento; se o Ressuscitado fosse para nós a recordação da recordação de outros, ainda que com autoridade, como os Apóstolos, se não nos fosse dada também a nós a possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele, seria como declarar esgotada a novidade do Verbo feito carne. Pelo contrário, a encarnação para além de ser o único acontecimento novo que a história conhece, é também o método que a Santíssima Trindade escolheu para nos abrir a via da comunhão. A fé cristã ou é encontro com Ele vivo, ou não é.

11. A Liturgia garante-nos a possibilidade desse encontro. Não nos basta ter uma vaga recordação da última Ceia: nós precisamos de estar presentes nessa Ceia, de poder ouvir a sua voz, de comer o seu Corpo e beber o seu Sangue: precisamos d’Ele. Na Eucaristia e em todos os sacramentos é-nos garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de ser alcançados pela potência da sua Páscoa. A potência salvífica do sacrifício de Cristo, de qualquer das suas palavras, de todos os seus gestos, olhares, sentimentos alcança-nos na celebração dos sacramentos. Eu sou Nicodemos e a Samaritana, o endemoninhado de Cafarnaum e o paralítico em casa de Pedro, a pecadora perdoada e a hemorroíssa, a filha de Jairo e o cego de Jericó, Zaqueu e Lázaro, o ladrão e Pedro perdoados. O Senhor Jesus, que “foi imolado sobre a cruz, mas não morrerá jamais; foi morto, mas agora vive para sempre” [2], continua a perdoar-nos, a curar-nos, a salvar-nos com a potência dos seus sacramentos. É o modo concreto, pela via da encarnação, com que nos ama; é o modo com que sacia aquela sede de nós que declarou na Cruz (cf. Jo 19, 28).

12. O nosso primeiro encontro com a sua Páscoa é o acontecimento que marca a vida de todos nós que acreditamos em Cristo: o nosso Batismo. Não é uma adesão mental ao seu pensamento ou a subscrição de um código de comportamento imposto por Ele: é o imergir-se na sua paixão, morte, ressurreição e ascensão. Não é um gesto mágico: a magia é o oposto à lógica dos sacramentos porque pretende ter um poder sobre Deus e por essa razão vem do tentador. Em perfeita continuidade com a encarnação, é-nos dada a possibilidade, por força da presença e da ação do Espírito Santo, de morrer e ressuscitar em Cristo.

13. É comovedor o modo como isto acontece. A oração de bênção da água batismal [3] revela-nos que Deus criou a água precisamente em vista do Batismo. Quer dizer que ao criar a água Deus pensava no Batismo de cada um de nós e que este pensamento o acompanhou no seu agir ao longo da história da salvação todas as vezes que, com desígnio bem determinado, se quis servir da água. É como se, depois de a ter criado, a tivesse querido aperfeiçoar para chegar a ser a água do Batismo. E assim a quis encher do movimento do seu Espírito que pairava sobre ela (cf. Gn 1, 2) para que contivesse em germe a força de santificar; usou-a para regenerar a humanidade no dilúvio (cf. Gn 6, 1 – 9, 29); dominou-a, separando-a para abrir um caminho de libertação no Mar Vermelho (cf. Ex 14); consagrou-a no Jordão nela imergindo a carne do Verbo repleta de Espírito (cf. Mt 3, 13-17; Mc 1, 9-11; Lc 3, 21-22). Por fim, misturou-a com o sangue do seu Filho, dom do Espírito inseparavelmente unido ao dom da vida e da morte do Cordeiro imolado por nós, e do lado trespassado a derramou sobre nós (cf. Jo 19, 34). É nesta água que fomos submergidos para que pelo seu poder pudéssemos ser enxertados no Corpo de Cristo e com Ele ressuscitar para a vida imortal (cf. Rm 6, 1-11).

A Igreja: sacramento do Corpo de Cristo

14. Como nos recordou o Concílio Vaticano II, citando a Escritura, os Padres e a Liturgia – as colunas da verdadeira Tradição – “foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja” [4]. O paralelismo entre o primeiro e o novo Adão é surpreendente: tal como Deus tirou Eva do lado do primeiro Adão, depois de ter feito cair sobre ele um sono profundo, assim do lado do novo Adão, adormecido no sono da morte, nasce a nova Eva, a Igreja. O espanto para nós reside nas palavras que podemos pensar que o novo Adão faça suas, olhando para a Igreja: “Desta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne” ( Gn 2, 23). Por ter acreditado na Palavra e termos descido à água do Batismo, nós tornamo-nos osso dos seus ossos, carne da sua carne.

15. Sem esta incorporação não há qualquer possibilidade de viver a plenitude do culto a Deus. Efetivamente, há um só ato de culto perfeito e agradável ao Pai: a obediência do Filho, cuja medida é a sua morte na cruz. A única possibilidade de poder participar na sua oferta é tornarmo-nos filhos no Filho. É este o dom que recebemos. O sujeito que age na Liturgia é sempre e só Cristo-Igreja, o Corpo místico de Cristo.

O sentido teológico da Liturgia

16. Devemos ao Concílio – e ao movimento litúrgico que o precedeu – a redescoberta da compreensão teológica da Liturgia e da sua importância na vida da Igreja: os princípios gerais enunciados pela Sacrosanctum Concilium, tal como foram fundamentais para a intervenção da reforma, assim o continuam a ser para a promoção daquela participação plena, consciente, ativa e frutuosa na celebração, “primeira e indispensável fonte na qual os fiéis podem haurir o genuíno espírito cristão” ( Sacrosanctum Concilium, n. 14; veja-se também o n. 11). Com esta carta gostaria simplesmente de convidar toda a Igreja a redescobrir, guardar e viver a verdade e a força da celebração cristã. Gostaria que a beleza do celebrar cristão e das suas necessárias consequências na vida da Igreja não fosse deturpada por uma compreensão superficial e redutora do seu valor ou, pior ainda, por uma instrumentalização dela ao serviço de uma qualquer visão ideológica, seja ela qual for. A oração sacerdotal de Jesus na última Ceia para que todos sejam um só ( Jo 17, 21), julga qualquer divisão nossa em torno do Pão partido, “sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade” [5].

A Liturgia: antídoto contra o veneno da mundanidade espiritual

17. Várias vezes tenho advertido contra uma perigosa tentação para a vida da Igreja que é a “mundanidade espiritual”: dela falei profusamente na Exortação Evangelii gaudium (nn. 93-97), identificando no gnosticismo e no neopelagianismo os dois modos, relacionados entre si, que a alimentam.

O primeiro reduz a fé cristã a um subjetivismo que encerra o indivíduo “na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos” (Evangelii gaudium, n. 94).

O segundo anula o valor da graça para confiar exclusivamente nas suas próprias forças dando lugar “a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar” (Evangelii gaudium, n. 94). Estas formas distorcidas do cristianismo podem ter consequências desastrosas para a vida da Igreja.

18. De tudo o que quis recordar acima, resulta evidente que a Liturgia é, pela sua própria natureza, o antídoto mais eficaz contra esses venenos. Obviamente, falo da Liturgia no seu sentido teológico e não, certamente – já Pio XII o afirmava – como “um cerimonial decorativo (…) ou mera soma de leis e de preceitos (…) que regulam o cumprimento dos ritos” [6].

19. Se o gnosticismo nos intoxica com o veneno do subjetivismo, a celebração litúrgica liberta-nos da prisão de uma autorreferencialidade alimentada pela própria razão ou pelo próprio sentir: a ação celebrativa não pertence ao indivíduo mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos fiéis unidos em Cristo. A Liturgia não diz “eu” mas “nós” e qualquer limitação à amplitude deste “nós” é sempre demoníaca. A Liturgia não nos deixa sós na busca individual de um suposto conhecimento do mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como assembleia, para nos conduzir para dentro do mistério que a Palavra e os sinais sacramentais nos revelam. E fá-lo, em coerência com o agir de Deus, seguindo a via da encarnação, através da linguagem simbólica do corpo que se prolonga nas coisas, no espaço e no tempo.

20. Se o neopelagianismo nos intoxica com a presunção de uma salvação ganha com as nossas forças, a celebração litúrgica purifica-nos proclamando a gratuidade do dom da salvação acolhida na fé. Participar no sacrifício eucarístico não é uma conquista nossa como se disso nos pudéssemos gloriar perante Deus e os irmãos. O início de cada celebração recorda-me quem sou, pedindo-me para confessar o meu pecado e convidando-me a suplicar à bem-aventurada Virgem Maria, aos anjos e santos e a todos os irmãos e irmãs que roguem por mim ao Senhor: porque não somos dignos de entrar na sua casa, precisamos de uma palavra sua para sermos salvos (cf. Mt 8, 8). Não temos outra glória a não ser a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Gl 6, 14). A Liturgia não tem nada a ver com um moralismo ascético: é o dom da Páscoa do Senhor que, acolhido com docilidade, faz nova a nossa vida. Não se entra no Cenáculo a não ser pela força de atração do seu desejo de comer a Páscoa connosco: Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar (Lc 22, 15).

Redescobrir em cada dia a beleza da verdade da celebração cristã

21. Devemos, porém, estar atentos: para que o antídoto da Liturgia seja eficaz é-nos pedido que em cada dia redescubramos a beleza da verdade da celebração cristã. Refiro-me, mais uma vez, ao seu sentido teológico, tal como o n. 7 da Sacrosanctum Concilium maravilhosamente o descreveu: a liturgia é o sacerdócio de Cristo a nós revelado e doado na sua Páscoa, hoje tornado presente e atuante mediante sinais sensíveis (água, azeite, pão, vinho, gestos, palavras) para que o Espírito, submergindo-nos no mistério pascal, transforme toda a nossa vida, conformando-nos cada vez mais a Cristo.

22. A contínua redescoberta da beleza da Liturgia não é a procura de um esteticismo ritual que se compraz apenas no cuidado da formalidade exterior de um rito ou se satisfaz com uma escrupulosa observância rubrical. Obviamente, esta afirmação não quer de modo algum aprovar a atitude oposta que confunda a simplicidade com a banalidade rasteira, a essencialidade com uma superficialidade ignorante, a concreção do agir ritual com um exasperado funcionalismo prático.

23. Entendamo-nos: todos os aspetos do celebrar devem ser cuidados (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música, …) e todas as rubricas devem ser observadas: bastaria esta atenção para evitar subtrair à assembleia aquilo que lhe é devido, isto é, o mistério pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja estabelece. Mas mesmo que a qualidade e a norma da ação celebrativa estejam garantidas, isso não bastaria para tornar plena a nossa participação.

O assombro pelo mistério pascal: parte essencial do ato litúrgico

24. Se viesse a faltar o assombro pelo mistério pascal que se torna presente no concreto dos sinais sacramentais, poderíamos verdadeiramente correr o risco de ser impermeáveis ao oceano de graça que inunda cada celebração. Não bastam os esforços, ainda que louváveis, em prol de uma melhor qualidade da celebração e nem sequer um apelo à interioridade: também esta corre o risco de se reduzir a uma vazia subjetividade se não acolher a revelação do mistério cristão. O encontro com Deus não é fruto de uma individual busca interior d’Ele mas é um acontecimento dado: podemos encontrar Deus pelo facto novo da Encarnação que na última Ceia chega ao extremo de desejar ser comido por nós. Como poderá acontecer-nos a desgraça de nos subtrairmos ao fascínio da beleza deste dom?

25. Ao dizer assombro perante o mistério pascal não pretendo dizer de forma alguma aquilo que por vezes me parece querer exprimir-se com a nebulosa expressão “sentido do mistério”: por vezes entre os supostos capítulos de imputação contra a reforma litúrgica vem também esse de o ter – assim se diz – eliminado da celebração. O assombro de que falo não é uma espécie de desmaio perante uma realidade obscura ou um rito enigmático, mas é, pelo contrário, o maravilhamento pelo facto de que o plano salvífico de Deus nos foi revelado na Páscoa de Jesus (cf. Ef 1, 3-14), cuja eficácia nos continua a alcançar na celebração dos “mistérios”, isto é, dos sacramentos. Entretanto, continua a ser verdade que a plenitude da revelação tem, em confronto com a nossa finitude humana, uma excedência que nos transcende e que terá o seu cumprimento no fim dos tempos, quando o Senhor vier de novo. Se o assombro é verdadeiro não há qualquer risco de que não se perceba, apesar da vizinhança que a encarnação quis, a alteridade da presença de Deus. Se a reforma tivesse eliminado esse “sentido do mistério”, mais do que um capítulo de acusação, isso seria uma nota de mérito. A beleza, como a verdade, gera sempre assombro e quando se referem ao mistério de Deus, levam à adoração.

26. O assombro é parte essencial do ato litúrgico, porque é uma atitude de quem sabe que se encontra perante a peculiaridade dos gestos simbólicos; é o enlevo de quem experimenta a força do símbolo, que não consiste em remeter para um conceito abstrato, mas em conter e exprimir na sua concreção aquilo que significa.

A necessidade de uma séria e vital formação litúrgica

27. A questão fundamental é, portanto, esta: como recuperar a capacidade de viver em plenitude a ação litúrgica? Tal era o objetivo da reforma do Concílio. O desafio é muito exigente porque o homem moderno – não do mesmo modo em todas as culturas – perdeu a capacidade de se confrontar com o agir simbólico que é uma característica essencial do ato litúrgico.

28. A pós-modernidade – em que o homem se sente cada vez mais perdido, sem referências de qualquer tipo, privado de valores porque tornados indiferentes, órfão de tudo, numa fragmentação em que parece impossível um horizonte de sentido – é ainda agravada pela pesada herança que nos deixou a época anterior, feita de individualismo e subjetivismo (que, mais uma vez, remetem para pelagianismo e gnosticismo) bem como de um espiritualismo abstrato que contradiz a própria natureza do homem, espírito encarnado e, portanto, capaz em si mesmo de ação e de compreensão simbólica.

29. Foi com a realidade da modernidade que a Igreja reunida em Concílio se quis confrontar, reafirmando a consciência de ser sacramento de Cristo, luz dos povos (Lumen gentium), pondo-se em religiosa escuta da Palavra de Deus (Dei Verbum) e reconhecendo como suas as alegrias e as esperanças (Gaudium et spes) dos homens de hoje. As grandes Constituições conciliares não são separáveis e não é por acaso que esta única grande reflexão do Concílio Ecuménico – a mais alta expressão da sinodalidade da Igreja, de cuja riqueza eu sou chamado a ser guardião, com todos vós – partiu da Liturgia (Sacrosanctum Concilium).

30. Ao encerrar a segunda sessão do Concílio (4 de dezembro de 1963), são Paulo VI assim se exprimia:

“Não ficou sem fruto a discussão difícil e intrincada, pois um dos temas – o primeiro a ser examinado e o primeiro, em certo sentido, na excelência intrínseca e na importância para a vida da Igreja – o da sagrada Liturgia – foi felizmente concluído e é hoje por Nós solenemente promulgado. Exulta o Nosso espírito com este resultado. Vemos que se respeitou nele a escala dos valores e dos deveres: Deus, em primeiro lugar; a oração, a nossa primeira obrigação; a Liturgia, fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, primeira escola da nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão, que junto a nós crê e ora, e primeiro convite dirigido ao mundo para que solte a sua língua muda em oração feliz e autêntica e sinta a inefável força regeneradora, ao cantar connosco os divinos louvores e as esperanças humanas, por Cristo Nosso Senhor e no Espírito Santo” [7].

31. Não posso nesta carta demorar-me sobre a riqueza das diversas expressões desta passagem que deixo à vossa meditação. Se a Liturgia é o “cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde promana toda a sua energia” (Sacrosanctum Concilium, n. 10), compreendemos bem o que é que está em jogo na questão litúrgica. Seria banal ler as tensões acerca da celebração, infelizmente presentes, como se de uma simples divergência se tratasse entre sensibilidades diversas em relação a uma forma ritual. A problemática é antes de mais eclesiológica. Não vejo como se possa dizer que se reconhece a validade do Concílio – se bem que me surpreenda que um católico possa ter a pretensão de o não fazer – e não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum Concilium, que exprime a realidade da Liturgia em íntima conexão com a visão de Igreja admiravelmente descrita pela Lumen gentium. Por isso – como expliquei na carta enviada a todos os Bispos – senti o dever de afirmar que “os livros litúrgicos promulgados pelos santos pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano” (Motu Proprio Traditionis custodes, art. 1).

A não aceitação da reforma, bem como uma compreensão superficial da mesma, distraem-nos da tarefa de encontrar as respostas à questão que volto a repetir: como crescer na capacidade de viver em plenitude a ação litúrgica? Como continuar a surpreendermo-nos com o que acontece na celebração diante dos nossos olhos? Precisamos de uma séria e vital formação litúrgica.

32. Voltemos de novo ao Cenáculo de Jerusalém: na manhã de Pentecostes nasce a Igreja, célula inicial da nova humanidade. Só a comunidade de homens e mulheres reconciliados porque perdoados, vivos porque Ele está vivo, verdadeiros porque habitados pelo Espírito da verdade, pode abrir o espaço estreito do individualismo espiritual.

33. É a comunidade do Pentecostes que é capaz de partir o Pão na certeza de que o Senhor está vivo, ressuscitado dos mortos, presente com a sua Palavra, com os seus gestos, com a oferta do seu Corpo e do seu Sangue. A partir desse momento a celebração torna-se o lugar privilegiado, não o único, do encontro com Ele. Nós sabemos que é só graças a esse encontro que o homem se torna plenamente homem. Só a Igreja do Pentecostes pode conceber o homem como pessoa, aberto a uma relação plena com Deus, com a criação e com os irmãos.

34. Aqui se coloca a questão decisiva da formação litúrgica. Diz Guardini: “Eis a primeira tarefa prática a fazer: sustentados por esta transformação interior do nosso tempo, devemos aprender de novo a colocarmo-nos perante a relação religiosa como homens em sentido pleno” [8]. É isto o que a Liturgia possibilita, para isto nos devemos formar. O mesmo Guardini não hesita em afirmar que sem formação litúrgica “as reformas no rito e no texto não ajudam muito” [9]. Não é minha intenção tratar agora de modo exaustivo o riquíssimo tema da formação litúrgica: gostaria apenas de oferecer algumas pistas de reflexão. Penso que podemos distinguir dois aspetos: a formação para a Liturgia e a formação pela Liturgia. O primeiro está em função do segundo que é essencial.

35. É preciso encontrar os canais para uma formação como estudo da liturgia: a partir do movimento litúrgico muito tem sido feito nesse sentido, com contributos preciosos de muitos estudiosos e instituições académicas. Entretanto, é preciso divulgar estes conhecimentos para fora do âmbito académico, de modo acessível, para que todos os fiéis cresçam num conhecimento do sentido teológico da Liturgia – é a questão decisiva e o alicerce de qualquer conhecimento e prática litúrgica – bem como do desenvolvimento do celebrar cristão, adquirindo a capacidade de compreender os textos eucológicos, os dinamismos rituais e a sua valência antropológica.

36. Penso na normalidade das nossas assembleia que se reúnem para celebrar a Eucaristia no dia do Senhor, domingo após domingo, Páscoa após Páscoa, em momentos particulares da vida das pessoas e das comunidades, nas diferentes etapas da vida: os ministros ordenados desempenham uma ação pastoral de primária importância quando tomam pela mão os fiéis batizados para os guiar dentro da repetida experiência da Páscoa. Recordemo-nos sempre de que é a Igreja, Corpo de Cristo, o sujeito celebrante, não só o sacerdote. O conhecimento que vem do estudo é só o primeiro passo para poder entrar no mistério celebrado. É evidente que para poder guiar os irmãos e irmãs, os ministros que presidem à assembleia devem conhecer o caminho, quer porque o estudaram no mapa da ciência teológica quer porque o frequentaram na prática de uma experiência de fé viva, alimentada pela oração e não certamente apenas como obrigação a satisfazer. No dia da ordenação cada presbítero ouve o bispo dizer-lhe: “Toma consciência do que virás a fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor” [10].

37. Também o plano de estudos da Liturgia nos seminários deve ter em conta a extraordinária capacidade que a celebração tem em si própria para oferecer uma visão orgânica do saber teológico. Todas as disciplinas da teologia, cada qual segundo a sua perspetiva própria, devem mostrar a sua conexão íntima com a Liturgia, em virtude da qual se revela e se realiza a unidade da formação sacerdotal (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 16). Uma abordagem litúrgico-sapiencial da formação teológica nos seminários também teria, certamente, efeitos positivos na ação pastoral. Não há aspeto da vida eclesial que não encontre nela o seu cume e a sua fonte. A pastoral de conjunto, orgânica, integrada, mais do que ser o resultado de programas elaborados é a consequência do colocar no centro da vida da comunidade a celebração eucarística dominical, fundamento da comunhão. A compreensão teológica da Liturgia não permite de modo algum entender estas palavras como se tudo se reduzisse ao aspeto cultual. Uma celebração que não evangeliza não é autêntica, tal como não o é um anúncio que não leve ao encontro com o Ressuscitado na celebração: ambos, por fim, sem o testemunho da caridade são como o bronze que soa e como o címbalo que retine (cf. 1Cor 13, 1).

38. Para os ministros e para todos os batizados, a formação litúrgica neste seu primeiro significado não é algo que se possa pensar adquirir de uma vez por todas: dado que o dom do mistério celebrado supera a nossa capacidade de conhecimento, este compromisso deverá certamente acompanhar a formação permanente de cada qual, com a humildade dos pequenos, atitude que abre ao assombro.

39. Uma última observação sobre os seminários: para além do estudo devem também oferecer a possibilidade de experimentar uma celebração não só exemplar do ponto de vista ritual, mas autêntica, vital, que permita viver aquela verdadeira comunhão com Deus, à qual também o saber teológico deve tender. Só a ação do Espírito pode aperfeiçoar o nosso conhecimento do mistério de Deus, que não é questão de compreensão intelectual mas de relação que toca a vida. Essa experiência é fundamental para que, quando forem ministros ordenados, possam acompanhar as comunidades no mesmo percurso de conhecimento do mistério de Deus, que é mistério de amor.

40. Esta última consideração leva-nos a refletir sobre o segundo significado com que podemos entender a expressão “formação litúrgica”. Refiro-me ao ser formados, cada qual segundo a sua vocação, pela participação na celebração litúrgica. Mesmo o conhecimento de estudo de que acabei de falar, para que não se torne racionalismo, deve estar em função do realizar-se da ação formadora da Liturgia em cada crente em Cristo.

41. De quanto dissemos sobre a natureza da Liturgia resulta evidente que o conhecimento do mistério de Cristo, questão decisiva para a nossa vida, não consiste numa assimilação mental de uma ideia, mas numa real implicação existencial com a sua pessoa. Neste sentido a Liturgia não diz respeito ao “conhecimento” e a sua finalidade não é primariamente pedagógica (embora tenha um grande valor pedagógico: cf. Sacrosanctum Concilium, n. 33), mas é o louvor, a ação de graças pela Páscoa do Filho, cuja força de salvação alcança a nossa vida. A celebração diz respeito à realidade do nosso ser dóceis à ação do Espírito que nela opera, até que Cristo seja formado em nós (cf. Gl 4, 19). A plenitude da nossa formação é a conformação a Cristo. Repito: não se trata de um processo mental, abstrato, mas de chegar a ser Ele. É esta a finalidade para a qual foi dado o Espírito, cuja ação é sempre e só a de fazer o Corpo de Cristo. É assim com o pão eucarístico, é assim para todos os batizados chamados a tornarem-se cada vez mais aquilo que receberam em dom no Batismo, isto é, a serem membros do Corpo de Cristo. Escreve Leão Magno: “A nossa participação no Corpo e no Sangue de Cristo não tem outro fim a não ser transformar-nos naquilo que recebemos” [11].

42. Esta implicação existencial acontece – em continuidade e coerência com o método da encarnação – por via sacramental. A Liturgia é feita de coisas que são exatamente o oposto de abstrações espirituais: pão, vinho, azeite, água, perfume, fogo, cinzas, pedra, tecido, cores, corpo, palavras, sons, silêncios, gestos, espaço, movimento, ação, ordem, tempo, luz. Toda a criação é manifestação do amor de Deus: desde que o mesmo amor se manifestou em plenitude na Cruz de Jesus, toda a criação é atraída por Ele. É toda a criação que é assumida para ser posta ao serviço do encontro com o Verbo encarnado, crucificado, morto, ressuscitado, que subiu ao Pai. Tal como canta a oração sobre a água da fonte batismal, mas também a do óleo para o santo Crisma e as palavras da apresentação do pão e do vinho, frutos da terra e do trabalho do homem.

43. A Liturgia dá glória a Deus, não porque nós possamos acrescentar algo à beleza da luz inacessível em que Ele habita (cf. 1 Tm 6, 16) ou à perfeição do canto angélico que ressoa eternamente nas moradas celestes. A Liturgia dá glória a Deus porque nos permite, aqui, na terra, ver a Deus na celebração dos mistérios e, ao vê-lo, ser vivificados pela sua Páscoa: nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados, por graça fomos restituídos à vida com Cristo (cf. Ef 2, 5), somos a glória de Deus. Ireneu, doctor unitatis, no-lo recorda: “A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem consiste na visão de Deus: se já a revelação de Deus na Criação dá a vida a todos os seres que vivem na terra, quanto mais a manifestação do Pai através do Verbo é causa de vida para os que veem a Deus!” [12].

44. Escreve Guardini: “É assim que se esboça a primeira tarefa do trabalho da formação litúrgica: o homem deve voltar a ser de novo capaz de símbolos” [13]. É uma responsabilidade para todos, ministros ordenados e fiéis. A tarefa não é fácil porque o homem moderno tornou-se analfabeto, já não sabe ler os símbolos, quase nem sequer pressente a sua existência. Isso acontece também com o símbolo do nosso corpo. É símbolo porque íntima união da alma e do corpo, visibilidade da alma espiritual na ordem do corpóreo e nisto consiste a unicidade humana, a especificidade da pessoa irredutível a qualquer outra forma de ser vivo. A nossa abertura ao transcendente, a Deus, é constitutiva: não a reconhecer leva inevitavelmente a um não conhecimento, não só de Deus mas também de nós próprios. Basta ver o modo paradoxal como é tratado o corpo, ora cuidado de modo quase obsessivo na sequela do mito da eterna juventude, ora reduzido a uma materialidade à qual se nega qualquer dignidade. O facto é que não se pode dar valor ao corpo partindo apenas do corpo. Todo o símbolo é, ao mesmo tempo, poderoso e frágil: se não é respeitado, se não é tratado pelo que é, quebra-se, perde a sua força, torna-se insignificante.

Já não temos o olhar de São Francisco que olhava para o sol – que chamava irmão porque assim o sentia – via-o “belo e radiante com grande esplendor” e, cheio de assombro, cantava: “de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem” [14]. O ter perdido a capacidade de compreender o valor simbólico do corpo e de todas as criaturas torna a linguagem simbólica da Liturgia quase inacessível ao homem moderno. Não se trata, contudo, de renunciar a essa linguagem: não é possível renunciar a ela porque foi o que a Santíssima Trindade escolheu para nos alcançar na carne do Verbo. Trata-se, antes, de recuperar a capacidade de utilizar e de compreender os símbolos da Liturgia. Não devemos desesperar, porque no homem esta dimensão, como acabei de dizer, é constitutiva e, apesar dos males do materialismo e do espiritualismo – ambos negação da unidade corpo e alma – está sempre pronta a reemergir, como toda a verdade.

45. A pergunta que nos colocamos é, portanto, a seguinte: como voltar a ser capazes de símbolos? Como voltar a sabê-los ler para os poder viver? Bem sabemos que a celebração dos sacramentos é – por graça de Deus – eficaz em si mesma (ex opere operato) mas isso não garante uma plena implicação das pessoas sem um modo adequado de se colocar perante a linguagem da celebração. A leitura simbólica não é uma questão de conhecimento mental, de aquisição de conceitos, mas é uma experiência vital.

46. Em primeiro lugar devemos readquirir a confiança na criação. Quero dizer que as coisas – com que “se fazem” os sacramentos – vêm de Deus, orientam-se para Ele e por Ele foram assumidas, de modo particular com a encarnação, para se tornarem instrumentos de salvação, veículos do Espírito, canais de graça. Note-se aqui toda a distância, quer da visão materialista quer da visão espiritualista. Se as coisas criadas são parte irrenunciável do agir sacramental que realiza a nossa salvação, devemos predispor-nos em relação a elas com um novo olhar que não seja superficial mas respeitoso e agradecido. Desde a origem elas contêm o germe da graça santificante dos sacramentos.

47. Uma outra questão decisiva – sempre refletindo sobre como a Liturgia nos forma – é a educação necessária para poder adquirir a atitude interior que nos permite utilizar e compreender os símbolos litúrgicos. Exprimo-o de modo simples. Penso nos pais e, mais ainda, nos avós, mas também nos nossos párocos e catequistas. Muitos de nós aprendemos, precisamente com eles, a força dos gestos da liturgia, como por exemplo o sinal da cruz, o estar de joelhos, as fórmulas da nossa fé. É possível que já não nos lembremos bem, mas facilmente podemos imaginar o gesto de uma mão maior que toma a mão pequena de uma criança e a acompanha lentamente no traçar pela primeira vez o sinal da nossa salvação. Ao movimento juntam-se as palavras, também elas lentas, quase a querer tomar posse de cada instante daquele gesto, de todo o corpo: “Em nome do Pai … e do Filho … e do Espírito Santo … Amen”. Para depois deixar a mão da criança e vê-la a repetir sozinha, prontos a ajudá-la, aquele gesto acabado de entregar, como uma veste que crescerá com ela, vestindo-a no modo que só o Espírito conhece. A partir daquele momento, aquele gesto, a sua força simbólica, pertence-nos ou, talvez seja melhor dizer, nós pertencemos àquele gesto que nos dá forma, somos formados por ele. Não são precisos muitos discursos, não é necessário ter compreendido tudo daquele gesto: é preciso ser-se pequenino quer no entregá-lo quer no recebê-lo. O resto é obra do Espírito. Assim fomos iniciados na linguagem simbólica. Desta riqueza não podemos deixar-nos despojar. Crescendo poderemos ter mais meios para poder compreender, mas sempre na condição de continuarmos pequenos.

Ars celebrandi

48. Um modo para conservar e para crescer na compreensão vital dos símbolos da Liturgia é certamente o cuidado da arte de celebrar. Também esta expressão é objeto de diversas interpretações. Ela esclarece-se se for compreendida, tendo como referência o sentido teológico da Liturgia, descrito no número 7 da Sacrosanctum Concilium, a que já nos referimos diversas vezes. A ars celebrandi não se pode reduzir à mera observância de um aparato de rubricas, e ainda menos pode ser pensada como uma fantasiosa – por vezes selvagem – criatividade sem regras. O rito é por si mesmo uma norma e a norma nunca é fim para si mesma, mas está sempre ao serviço da realidade mais alta que quer salvaguardar.

49. Como qualquer arte, requer diversos conhecimentos.

Em primeiro lugar, a compreensão do dinamismo que descreve a Liturgia. O momento da ação celebrativa é o lugar em que, através do memorial se torna presente o mistério pascal para que os batizados, em virtude da sua participação, possam experimentá-lo na sua vida: sem esta compreensão cai-se facilmente no exteriorismo (mais ou menos refinado) e no rubricismo (mais ou menos rígido).

Em seguida, é preciso conhecer o modo como o Espírito Santo age em cada celebração: a arte de celebrar deve estar em sintonia com a ação do Espírito. Só assim estará a salvo de subjetivismos, que são o fruto da prevalência de sensibilidades individuais, e de culturalismos, que são aquisições acríticas de elementos culturais que nada têm a ver com um processo correto de inculturação.

Por fim, é necessário conhecer as dinâmicas da linguagem simbólica, a sua peculiaridade, a sua eficácia.

50. Destes breves acenos, resulta evidente que a arte de celebrar não se pode improvisar. Como qualquer arte, requer aplicação assídua. A um artesão basta a técnica; a um artista, para além de conhecimentos técnicos, não pode faltar a inspiração que é uma forma positiva de posse: o verdadeiro artista não possui uma arte, é possuído por ela. Não se aprende a arte de celebrar porque se frequenta um curso de oratória ou de técnicas de comunicação persuasiva (não julgo as intenções, vejo os efeitos). Qualquer instrumento pode servir, mas deve sempre submeter-se à natureza da Liturgia e à ação do Espírito. Há que dedicar-se diligentemente à celebração, deixando que seja a própria celebração a transmitir-nos a sua arte. Escreve Guardini: “Devemos dar-nos conta de quão profundamente ainda estamos enraizados no individualismo e no subjetivismo, de até que ponto nos desabituamos do apelo das grandezas e de como é pequena a medida da nossa vida religiosa. Deve despertar-se de novo o sentido do alto estilo da oração, a vontade de implicar também nela a nossa existência. Mas o caminho para estas metas é a disciplina, a renúncia a um sentimentalismo mole; um trabalho sério, feito em obediência à Igreja, em relação com o nosso ser e com o nosso comportamento religioso” [15]. É assim que se aprende a arte de celebrar.

51. Ao falar deste assunto, somos levados a pensar que só diga respeito aos ministros ordenados que desempenham o serviço da presidência. Na realidade, é uma atitude que todos os batizados são chamados a viver. Penso em todos os gestos e palavras que pertencem à assembleia: o reunir-se, o avançar em procissão, o estar sentados, de pé, de joelhos, o cantar, o estar em silêncio, o aclamar, o olhar, o ouvir. São muitos os modos com que a assembleia, “como um só homem” (Ne 8, 1), participa na celebração. Realizar todos juntos o mesmo gesto, falar todos juntos a uma só voz, transmite a cada um a força de toda a assembleia. É uma uniformidade que não só não mortifica mas, pelo contrário, educa cada fiel a descobrir a unicidade autêntica da própria personalidade, não em atitudes individualistas mas na consciência de ser um só corpo. Não se trata de ter de seguir um protocolo de boas maneiras litúrgico: trata-se antes de uma “disciplina” – no sentido usado por Guardini – que, se observada com autenticidade, nos forma: são gestos e palavras que põem ordem dentro do nosso mundo interior fazendo-nos viver sentimentos, atitudes, comportamentos. Não são a enunciação de um ideal em que procuramos inspirar-nos, mas são uma ação que implica o corpo na sua totalidade, ou seja, no seu ser unidade de alma e corpo.

52. Entre os gestos rituais que pertencem a toda a assembleia, o silêncio ocupa um lugar de importância absoluta. Várias vezes é expressamente prescrito nas rubricas: toda a celebração eucarística é imersa no silêncio que precede o seu início e marca cada instante do seu desenvolvimento ritual. Efetivamente, está presente no ato penitencial; após o convite à oração; na liturgia da Palavra (antes das leituras, entre as leituras e após a homilia); na oração eucarística; depois da comunhão [16]. Não se trata de um refúgio onde esconder-se para um isolamento intimista, quase sofrendo a ritualidade como se de uma distração se tratasse: um tal silêncio estaria em contradição com a própria essência da celebração. O silêncio litúrgico é muito mais: é o símbolo da presença e da ação do Espírito Santo que anima toda a ação celebrativa; por esse motivo muitas vezes constitui o ápice da sequência ritual. Precisamente porque é símbolo do Espírito tem o poder de exprimir a sua ação multiforme. Assim, retomando os momentos que acima recordei, o silêncio move ao arrependimento e ao desejo de conversão; suscita a escuta da Palavra e a oração; dispõe à adoração do Corpo e do Sangue de Cristo; sugere a cada um, na intimidade da comunhão, o que o Espírito quer realizar na vida para nos conformar ao Pão partido. Por isso, somos chamados a realizar com extremo cuidado o gesto simbólico do silêncio: é nele que o Espírito nos dá forma.

53. Cada gesto e cada palavra contém uma ação precisa, que é sempre nova porque encontra um instante sempre novo da nossa vida. Explico o que quero dizer com um exemplo simples. Ajoelhamo-nos para pedir perdão; para vergar o nosso orgulho; para entregar a Deus o nosso pranto; para suplicar uma intervenção sua; para lhe agradecer um dom recebido: é sempre o mesmo gesto que diz essencialmente o nosso ser pequeninos diante de Deus. Todavia, feito em momentos diferentes do nosso viver, plasma a nossa interioridade profunda, para depois se manifestar exteriormente na nossa relação com Deus e com os irmãos. Também o ajoelhar-se deve ser feito com arte, quer dizer, com uma plena consciência do seu sentido simbólico e da necessidade que nós temos de exprimir com este gesto o nosso modo de estar na presença de Senhor. Se tudo isto é verdade para um simples gesto, quanto mais não o será para a celebração da Palavra? Que arte somos chamados a apreender ao proclamar a Palavra, ao escutá-la, ao fazê-la inspiração da nossa oração, ao fazê-la tornar-se vida? Tudo isto merece o máximo cuidado, não formal, exterior, mas vital, interior, porque cada gesto e cada palavra da celebração, expresso com “arte”, forma a personalidade cristã de cada um e da comunidade.

54. Se é verdade que a ars celebrandi diz respeito a toda a assembleia que celebra, é igualmente verdade que os ministros ordenados a devem cuidar com especial cuidado. Ao visitar as comunidades cristãs reparei, muitas vezes, que o seu modo de viver a celebração está condicionado – para o bem e, infelizmente, também para o mal – pelo modo como o seu pároco preside à assembleia. Poderia dizer-se que há diversos “modelos” de presidência. Eis uma possível lista de atitudes que, embora sendo opostos entre si, caraterizam a presidência de modo certamente inadequado: rigidez austera ou criatividade exagerada; misticismo espiritualizante ou funcionalismo prático; precipitação apressada ou lentidão acentuada; descuido negligente ou excessiva minúcia; excessiva afabilidade ou impassibilidade hierática. Apesar da variedade desta amostra, penso que a inadequação destes modelos de presidência tem uma raiz comum: um personalismo exacerbado do estilo celebrativo que, por vezes, manifesta uma mal disfarçada mania de protagonismo. Isto torna-se ainda mais evidente quando as nossas celebrações são transmitidas em rede, o que nem sempre é oportuno e sobre o qual devemos refletir. Entendamo-nos: não são estas as atitudes mais frequentes, mas não é raro que as assembleias sofram estes “maus tratos”.

55. Muito se poderia dizer acerca da importância e delicadeza do ato de presidir. Em várias ocasiões me demorei sobre a tarefa exigente de fazer a homilia [17]. Limito-me agora a algumas considerações mais amplas, querendo sempre refletir convosco sobre como somos formados pela Liturgia. Penso na normalidade das Missas dominicais nas nossas comunidades: refiro-me, portanto, aos presbíteros mas, implicitamente, a todos os ministros ordenados.

56. O presbítero vive a sua típica participação na celebração em virtude do dom recebido no sacramento da Ordem: esta especificidade exprime-se, precisamente, na presidência. Como todos os ofícios que é chamado a desempenhar, não se trata primariamente de uma tarefa que lhe é confiada pela comunidade, mas antes da consequência da efusão do Espírito Santo recebida na ordenação que o habilita para essa tarefa. Também o presbítero é formado pelo seu presidir à assembleia que celebra.

57. Para que este serviço seja bem feito – com arte, precisamente – é de fundamental importância que o presbítero tenha, acima de tudo, uma viva consciência de ser, por misericórdia, uma especial presença do Ressuscitado. O ministro ordenado é ele próprio uma das modalidades da presença do Senhor que tornam a assembleia cristã única, diferente de qualquer outra (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7). Isto dá espessura “sacramental” – em sentido amplo – a todos os gestos e palavras de quem preside. A assembleia tem o direito de poder sentir nesses gestos e nessas palavras o desejo que o Senhor tem, hoje como na última Ceia, de continuar a comer a Páscoa connosco. O Ressuscitado é, portanto, o protagonista; não o são, seguramente, as nossas imaturidades que procuram, assumindo um papel e uma atitude, um modo de se apresentar que não podem ter. O próprio presbítero deve ser absorvido por este desejo de comunhão que o Senhor tem para com todos: é como se estivesse no meio entre o coração ardente de amor de Jesus e o coração de cada fiel, objeto do seu amor. Presidir à Eucaristia é submergir-se na fornalha do amor de Deus. Quando nos é dado compreender, ou até só intuir esta realidade, já não precisamos de um diretório que nos imponha um comportamento adequado. Se precisamos dele é pela dureza do nosso coração. A norma mais alta e, portanto, mais exigente, é a própria realidade da celebração eucarística que seleciona palavras, gestos, sentimentos, levando-nos a compreender se são ou não adequados à função que devemos desempenhar. É evidente que também isto não se improvisa: é uma arte, requer do presbítero aplicação, isto é, uma frequência assídua do fogo de amor que o Senhor veio trazer à terra (cf. Lc 12, 49).

58. Quando a primeira comunidade parte o pão em obediência ao mandato do Senhor, fá-lo sob o olhar de Maria que acompanha os primeiros passos da Igreja: “unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus” (At 1, 14). A Virgem Mãe “vela” sobre os gestos do seu Filho confiados aos Apóstolos. Tal como, depois de ter acolhido as palavras do anjo Gabriel, guardou no seu seio o Verbo feito carne, assim a Virgem continua a guardar no seio da Igreja aqueles gestos que fazem o Corpo do seu Filho. O presbítero que, em virtude do dom recebido com o sacramento da Ordem, repete esses gestos, é guardado no seio da Virgem. Será preciso ainda uma norma para nos dizer como nos devemos comportar?

59. Tornados instrumentos para fazer deflagrar o fogo do seu amor na terra, guardados no seio de Maria, Virgem feita Igreja (como cantava São Francisco), os presbíteros deixam-se trabalhar pelo Espírito que quer levar a cumprimento a obra que começou na sua ordenação. A ação do Espírito oferece-lhes a possibilidade de exercer a presidência da assembleia eucarística com o temor de Pedro, consciente do seu ser pecador (cf. Lc 5, 1-11), com a humildade forte do servo sofredor (cf. Is 42 ss), com o desejo de “ser comido” pelo povo que lhes está confiado no exercício quotidiano do ministério.

60. É a própria celebração que educa para esta qualidade de presidência, não é, repetimo-lo, uma adesão mental, se bem que toda a nossa mente, tal como a nossa sensibilidade, esteja nela implicada. O presbítero é, pois, formado para a presidência pelas palavras e pelos gestos que a liturgia põe nos seus lábios e nas suas mãos.

Não se senta num trono [18] porque o Senhor reina com a humildade de quem serve.

Não rouba a centralidade do altar, “sinal de Cristo de cujo lado aberto correu sangue e água, nos quais encontram fundamento os sacramentos da Igreja. (…) Seja o centro do nosso louvor e da nossa ação de graças” [19].

Aproximando-se do altar para a apresentação dos dons, o presbítero é educado na humildade e no arrependimento pelas palavras: “De coração humilhado e contrito sejamos recebidos por Vós, Senhor. Assim o nosso sacrifício seja agradável a vossos olhos” [20].

Não pode presumir de si mesmo para o ministério que lhe está confiado porque a Liturgia o convida a pedir para ser purificado, no sinal da água: “Lavai-me, Senhor, da minha iniquidade e purificai-me do meu pecado” [21].

As palavras que a Liturgia põe nos seus lábios têm conteúdos diversos que requerem tonalidades específicas: pela importância destas palavras é exigida ao presbítero uma verdadeira ars dicendi. Elas dão forma aos seus sentimentos interiores, ora na súplica ao Pai em nome da assembleia, ora na exortação dirigida à assembleia, ora na aclamação a uma só voz com toda a assembleia.

Com a Oração Eucarística – na qual também todos os batizados participam escutando “com reverência e silêncio” e intervindo com “aclamações” [22] – quem preside tem a força, em nome de todo o povo santo, de recordar ao Pai a oferta do seu Filho na última Ceia, para que esse dom imenso se torne novamente presente no altar. Nessa oferta participa com a oferta de si mesmo. O presbítero não pode narrar ao Pai a última Ceia sem participar nela. Não pode dizer: “Tomai todos e comei: isto é o meu Corpo entregue por vós” e não viver o mesmo desejo de oferecer o seu próprio corpo, a sua própria vida pelo povo a si confiado. É isto o que acontece no exercício do seu ministério.

Por tudo isto, e por muito mais, o presbítero é continuamente formado na ação celebrativa.

* * *

61. Quis simplesmente oferecer algumas reflexões, que certamente não esgotam o imenso tesouro da celebração dos santos mistérios. Peço a todos os bispos, aos presbíteros e aos diáconos, aos formadores dos seminários, aos docentes das faculdades e das escolas de teologia, a todos os catequistas que ajudem o povo santo de Deus a beberem daquela que é desde sempre a primeira fonte da espiritualidade cristã. Somos continuamente chamados a redescobrir a riqueza dos princípios gerais expostos nos primeiros números da Sacrosanctum Concilium, compreendendo a íntima ligação entre a primeira das Constituições conciliares e todas as demais. Por este motivo, não podemos voltar àquela forma ritual que os Padres conciliares, cum Petro e sub Petro, sentiram a necessidade de reformar, aprovando, sob a guia do Espírito e segundo a sua consciência de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma. Os santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, aprovando os livros litúrgicos reformados ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II garantiram a fidelidade da reforma ao Concílio. Por este motivo escrevi Traditionis custodes, para que a Igreja possa elevar, na variedade das línguas “uma só e idêntica oração” [23] capaz de exprimir a sua unidade. Pretendo que esta unidade, como já escrevi, seja restabelecida em toda a Igreja de Rito Romano.

62. Gostaria que esta Carta nos ajudasse a reavivar o assombro pela beleza da verdade do celebrar cristão, a recordar a necessidade de uma formação litúrgica autêntica e a reconhecer a importância de uma arte da celebração que esteja ao serviço da verdade do mistério pascal e da participação de todos os batizados, cada qual com a especificidade da sua vocação.

Toda esta riqueza não está longe de nós: está nas nossas igrejas, nas nossas festas cristãs, na centralidade do domingo, na força dos sacramentos que celebramos. A vida cristã é um contínuo caminho de crescimento: somos chamados a deixar-nos formar com alegria e na comunhão.

63. Por isso desejo deixar-vos mais uma indicação para prosseguir no nosso caminho. Convido-vos a redescobrir o sentido do ano litúrgico e do dia do Senhor: também esta é uma indicação do Concílio (cf. Sacrosanctum Concilium, nn. 102-111).

64. À luz de tudo o que acima recordámos, compreendemos que o ano litúrgico é para nós a possibilidade de crescer no conhecimento do mistério de Cristo, imergindo a nossa vida no mistério da sua Páscoa, na esperança da sua vinda. Esta é uma verdadeira formação contínua. A nossa vida não é uma sucessão casual e caótica de acontecimentos mas um percurso que, de Páscoa em Páscoa, nos conforma a Ele “enquanto esperamos em jubilosa esperança a vinda gloriosa de Jesus Cristo, nosso Salvador” [24].

65. No decurso do tempo feito novo pela Páscoa, em cada oito dias a Igreja celebra no domingo o acontecimento da salvação. O domingo, antes de ser um preceito, é um dom que Deus faz ao seu povo (por esse motivo a Igreja o guarda como um preceito). A celebração dominical oferece à comunidade cristã a possibilidade de ser formada pela Eucaristia. De domingo em domingo, a Palavra do Ressuscitado ilumina a nossa existência, querendo realizar em nós aquilo para que foi mandada (cf. Is 55, 10-11). De domingo em domingo, a comunhão no Corpo e no Sangue de Cristo quer fazer também da nossa vida um sacrifício agradável ao Pai, na comunhão fraterna que se faz partilha, acolhimento e serviço. De domingo em domingo, a força do Pão partido nos sustenta no anúncio do Evangelho no qual se manifesta a autenticidade da nossa celebração.

Abandonemos as polémicas para escutarmos juntos o que o Espírito diz à Igreja, conservemos a comunhão, continuemos a maravilhar-nos pela beleza da Liturgia. Foi-nos dada a Páscoa, deixemo-nos guardar pelo desejo que o Senhor continua a ter de a poder comer connosco. Sob o olhar de Maria, Mãe da Igreja.

Roma, em São João de Latrão, 29 de junho, solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo do ano 2022, décimo do meu pontificado.

 

FRANCISCO

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Que o homem todo se espante,
que o mundo todo trema, que o céu exulte,
quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote,
está presente Cristo, o Filho de Deus vivo!

Oh! grandeza admirável, oh! condescendência assombrosa!
Oh! humildade sublime, oh! sublimidade humilde,
que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus,
se humilde a ponto de se esconder, para nossa salvação,
nas aparências de um bocado de pão.

Vede, irmãos, a humildade de Deus
e derramai diante dele os vossos corações;
humilhai-vos também vós, para que ele vos exalte.

Em conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós,
a fim de que totalmente vos possua
Aquele que totalmente a vós se dá.

São Francisco de Assis
Carta a toda a Ordem, 2, 26-29

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[1] Cf. Leão Magno, Sermão na Ascensão do Senhor 72, 2, 1: “… o que no nosso Salvador era visível, passou para os seus mistérios”, para os Sacramentos.

[2] “Prefácio Pascal III” - Missal Romano (1992), p. 471.

[3] Cf. “Bênção da Fonte Batismal, na Vigília Pascal”: Missal Romano (1992), pp. 315-316.

[4] Const. dogm. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, n. 5; cf. Agostinho, Comentários sobre os Salmos: Sal. 138, 2; “Oração depois da VII Leitura, na Vigília Pascal”: Missal Romano (1992), p. 306-307; “Oração sobre as Oblatas, na Missa pela Igreja (B)”: Missal Romano (1992), p. 1182.

[5] Cf. Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de João, 26, 13.

[6] Carta encíclica Mediator Dei (20 de novembro de 1947): AAS 39 (1947), 532.

[7] AAS 56 (1964), 34.

[8] R. Guardini, “Liturgische Bildung” (1923): Liturgie und liturgische Bildung (Mainz 1992), p. 43; trad. it. Formazione liturgica (Brescia 2022), p. 69.

[9] Idem, “Der Kultakt und die gegenwärtige Aufgabe der Liturgischen Bildung” (1964): Liturgie und liturgische Bildung (Mainz 1992), p. 14; trad. it.”L’atto di culto e il compito attuale della formazione liturgica. Una lettera” (1964): Formazione liturgica (Brescia 2022), p. 33.

[10] Pontifical Romano , Ordenação do Bispo, dos Presbíteros e Diáconos (1992), p. 91.

[11] Leão Magno, Sermão XII: Sobre a Paixão III, 7.

[12] Ireneu de Lião, Contra as heresias IV, 20, 7.

[13] R. Guardini, “Liturgische Bildung” (1923): Liturgie und liturgische Bildung (Mainz 1992), p. 36; trad. it. Formazione Liturgica (Brescia 2022), p. 60.

[14] “O Cântico das Criaturas” : Fonti Francescane, n. 263.

[15] R. Guardini, “Liturgische Bildung” (1923): Liturgie und liturgische Bildung (Mainz 1992), p. 99; trad. it. Formazione Liturgica (Brescia 2022), p. 139.

[16] Cf. Instrução Geral do Missal Romano, nn. 45; 51; 54-56; 66; 71; 78; 84; 88; 271.

[17] Cf. Exortação apostólica Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), nn. 135-144.

[18] Cf. Instrução Geral do Missal Romano, n. 271.

[19] “Oração da Dedicação do Altar”: Pontifical Romano – Dedicação da Igreja e do Altar (1990), p. 119.

[20] Missal Romano (1992), p. 451.

[21] Ibidem.

[22] Cf. Instrução Geral do Missal Romano, nn. 78-79.

[23] Cf. Paulo VI, Constituição Apostólica Missale Romanum (3 de abril de 1969): AAS 61 (1969), 222.

[24] Missal Romano (1992), p. 545.



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