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COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL

Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador

1700o aniversário do Concílio Ecumênico de Niceia
325-2025

 

Índice

Nota preliminar

Introdução: Doxologia, teologia e anúncio

Capítulo 1: O símbolo para a salvação: doxologia e teologia do dogma de Niceia

1. Compreender a imensidão das três Pessoas divinas que nos salvam: “Deus é Amor”, infinitamente

1.1 A grandeza da paternidade de Deus Pai, fundamento da grandeza do Filho e do Espírito
1.2 Reflexão sobre o uso da expressão homoousios
1.3 A unidade da história da salvação

2. Compreender a imensidão de Cristo Salvador e seu ato de salvação

2.1 Ver Cristo em toda a sua grandeza
2.2 A imensidão do ato de salvação: a sua consistência histórica
2.3 A grandeza do ato de salvação: o mistério pascal

3. Compreender a imensidão da salvação oferecida à humanidade e a imensidão da nossa vocação humana

3.1 A grandeza da salvação: a entrada na vida de Deus
3.2 A imensidão da vocação humana ao Amor divino
3.3 A beleza dom da Igreja e do batismo

4. Celebrar juntos a imensidão da salvação: o significado Ecumênico de Niceia e a esperança de uma data comum para a celebração da Páscoa

Capítulo 2: O símbolo de Nicéia na vida dos crentes “Acreditamos como batizamos; e rezamos como acreditamos”.

Prelúdio: a fé confessada na fé vivida

1. Batismo e fé trinitária

2. O Símbolo Niceno como confissão de fé

3. Aprofundamento da pregação e da catequese

4. Oração ao Filho e doxologias

5. A teologia nos hinos

Capítulo 3: Nicéia como evento teológico e como evento eclesial

1. O evento Cristo: “A Deus, ninguém jamais viu. O Deus Unigênito [...] foi quem o revelou” (Jo 1,18).

1.1 Cristo, Verbo encarnado, revela o Pai
1.2 “Temos o pensamento (νοῦς) de Cristo” (1Cor 2,16): analogia da criação e analogia da caridade
1.3 Ingresso teológico no conhecimento do Pai através da oração de Cristo

2. O evento de Sabedoria: algo novo para o pensamento humano

2.1 A revelação enriquece e alarga o pensamento humano
2.2 Um evento cultural e intercultural
2.3 A fidelidade criativa da Igreja e o problema da heresia

3. O evento eclesial: o Concílio de Niceia, primeiro concílio Ecumênico

3.1 A Igreja se inscreve por sua natureza e suas estruturas no evento Jesus Cristo
3.2 A colaboração estrutural dos carismas da Igreja e o caminho para Niceia
3.3 O Concílio Ecumênico de Niceia

Capítulo 4: Manter a fé acessível a todo o povo de Deus

Prelúdio: o Concílio de Niceia e as condições de credibilidade do mistério cristão

1. A teologia a serviço da integralidade da verdade salvífica

1.1 Cristo, verdade escatologicamente eficaz
1.2 A salvação e o processo de filiação divina

2. A mediação da Igreja e a inversão da sequência dogmática: Trindade, cristologia, pneumatologia, eclesiologia

2.1 As mediações da fé e o ministério da Igreja
2.2 Dissenso e sinodalidade
2.3 As línguas do Espírito Santo para formar e renovar o consenso

3. Salvaguarda do depósito da fé: a caridade a serviço dos mais pequeninos

3.1 A fé unânime do Povo de Deus oferecida a todos
3.2 A proteção da fé face ao poder político

Conclusão: Anunciar hoje Jesus, nossa Salvação, a todas as pessoas

 


Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador

1700o aniversário do Concílio Ecumênico de Niceia
325-2025

 

Nota preliminar

Durante o seu 10º quinquênio, a Comissão Teológica Internacional decidiu realizar um estudo sobre o Primeiro Concílio Ecumênico de Niceia e a sua relevância dogmática. O trabalho foi levado a cabo por uma Subcomissão especial, presidida pelo P. Philippe Vallin e composta pelos seguintes membros Monsenhor Antonio Luiz Catelan Ferreira, Monsenhor Etienne Vetö, I.C.N., Padre Mario Ángel Flores Ramos, Padre Gaby Alfred Hachem, Padre Karl-Heinz Menke, Professora Marianne Schlosser, Professora Robin Darling Young.

As discussões gerais sobre este assunto o correram em várias reuniões da Subcomissão como também nas sessões plenárias da própria Comissão, realizadas nos anos 2022 a 2024. Este texto foi submetido ao voto e aprovado por unanimidade in forma specifica pelos membros da Comissão Teológica Internacional na sessão plenária de 2024. O documento foi então submetido à aprovação do seu Presidente, Sua Eminência o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, após receber o parecer favorável do Santo Padre Francisco, autorizou a sua publicação dia 16 de dezembro de 2024.

 

Introdução: Doxologia, teologia e anúncio

1. Com gratidão e alegria, no dia 20 de maio de 2025, a Igreja Católica e todo o mundo cristão recordam a abertura do Concílio de Niceia em 325: “O Concílio de Niceia é um marco miliário na história da Igreja. O aniversário da sua realização convida os cristãos a unirem-se no louvor e agradecimento à Santíssima Trindade e, em particular, a Jesus Cristo, o Filho de Deus, ‘consubstancial ao Pai’, que nos revelou este mistério de amor”[1]. Isto permaneceu na consciência cristã principalmente por meio do Símbolo, que recolhe, define e proclama a fé na salvação em Jesus Cristo e no Deus único, Pai, Filho e Espírito Santo. O Símbolo de Nicéia professa a boa nova da salvação integral dos seres humanos pelo próprio Deus, em Jesus Cristo. 1700 anos depois, celebramos este acontecimento sobretudo com uma doxologia, um louvor à glória de Deus, porque ela se manifestou no tesouro inestimável da fé expressa pelo Símbolo: a beleza infinita de Deus que nos salva, a imensa misericórdia de Jesus Cristo nosso Salvador, a generosidade da redenção oferecida a cada ser humano no Espírito Santo. Unimos as nossas vozes às dos Padres, como Efrém, o Sírio, para cantar esta glória:

“Glória Àquele que veio
Até nós por seu primogênito!
Glória ao Silencioso
Que falou por a sua voz!
Glória ao Sublime
Que se tornou visível por da sua Epifania!
Glória ao Espiritual,
A Quem aprouve
Que seu Filho se tornasse corpo,
Para que, por meio desse corpo, seu poder fosse tangível
E que, por esse corpo, tivessem vida
Os corpos dos filhos do Seu povo!”[2]

2. A luz que a assembleia de Niceia lançou sobre a revelação cristã permite-nos descobrir uma riqueza inesgotável que continua a aprofundar-se ao longo dos séculos e através das culturas, e a manifestar-se de formas cada vez mais belas e novas. Estas diferentes facetas são postas em evidência, em particular, pela leitura orante e teológica que a maior parte das tradições cristãs faz do Símbolo, cada uma com uma relação diferente com o próprio fato da existência de um símbolo. É também uma oportunidade para todas elas redescobrirem ou mesmo descobrirem a sua riqueza e o laço de comunhão entre todos os cristãos que ele pode constituir. “Como não recordar a extraordinária atualidade deste aniversário para o caminho rumo à plena unidade dos cristãos?”[3], sublinha o Papa Francisco.

3. O Concílio de Niceia foi o primeiro concílio dito “Ecumênico”, porque, pela primeira vez, foram convidados os bispos de toda a Oikoumenē[4]. Suas decisões pretendiam, portanto, ser ecumênicas, ou seja, de âmbito universal. E, como tal, foram recebidas pelos cristãos e pela tradição cristã, no decurso de um longo e laborioso processo. As implicações eclesiológicas são cruciais. O Símbolo insere-se no processo de adoção progressiva, pelo ensino cristão, da língua e do pensamento gregos, por assim dizer transfigurados pelo contato com a Revelação. O Concílio marca também a crescente importância dos sínodos e das formas sinodais de governo na Igreja dos primeiros séculos, constituindo ao mesmo tempo uma mudança importante: na linha da exousia conferida aos Apóstolos por Jesus e pelo Espírito Santo (Lc 10,16; At 1,14-2,1-4), como evento, Niceia abre caminho a uma nova expressão institucional da autoridade doutrinal e disciplinar na Igreja, de alcance universal, que passa a ser reconhecida nos concílios ecumênicos. Esta mudança decisiva no modo de pensar e de governar da comunidade dos discípulos do Senhor Jesus evidenciou elementos essenciais da missão de ensinar da Igreja e, portanto, da sua natureza.

4. Antes de prosseguir, é necessário fazer um esclarecimento. O presente documento se baseia no Símbolo niceno-constantinopolitano (381) e não, a rigor, no que foi composto em Niceia (325). De fato, foram necessários cerca de cinquenta anos para a aceitação do vocabulário do Símbolo de Niceia e para se chegar a um acordo sobre o alcance universal do primeiro Concílio. O processo de aceitação do Símbolo niceno continuou durante o conflito com os Pneumatômacos entre Nicéia e Constantinopla, introduzindo algumas mudanças textuais significativas, particularmente no terceiro artigo. No entanto, na opinião dos Padres, este processo, que culminou no Símbolo niceno-constantinopolitano, não envolveu qualquer alteração da fé nicena, mas a sua autêntica preservação[5]. Neste sentido, o preâmbulo da definição dogmática de Calcedônia, que foi precedido pela transcrição do Símbolo de Niceia e do Símbolo de Niceia-Constantinopla, “confirma” o que foi dito no símbolo dos “150 Padres” (Constantinopla), uma vez que o seu significado reside, em seus próprios termos, na especificação do que diz respeito ao Espírito Santo contra os que negam o seu senhorio[6]. A magnitude do que aconteceu em Niceia se evidencia na proibição, estabelecida pelo Concílio de Éfeso (431), de se promulgar qualquer outra fórmula de fé. Isto porque, após Niceia, os defensores da ortodoxia consideraram que o discernimento expresso no Símbolo niceno era suficiente para garantir a fé da Igreja para sempre[7]. Atanásio, por exemplo, disse de Niceia que ela é “a palavra de Deus que permanece para sempre” (Is 40,8). Este processo de Tradição viva e normativa continuou, entre os séculos IV e IX, com a sua adoção nas liturgias batismais, sobretudo no Oriente, e depois nas liturgias eucarísticas[8]. Note-se que o Filioque, que se encontra nas atuais versões ocidentais do Credo, não faz parte do texto original do Credo niceno-constantinopolitano. Este ponto continua a ser objeto de mal-entendidos entre confissões cristãs, e, a respeito dele, o diálogo entre o Oriente e o Ocidente continua ainda hoje.

5. Assim, no primeiro capítulo, é proposta uma leitura doxológica do Símbolo, a fim de extrair seus recursos soteriológicos e, portanto, cristológicos, trinitários e antropológicos. Isto oportuniza sublinhar seu significado e receber dele um novo impulso para a unidade dos cristãos. Mas, acolher a riqueza do Concílio de Niceia, 1700 anos depois, leva também a perceber como o Concílio alimenta e orienta a vida cristã quotidiana: num segundo capítulo, de conteúdo patrístico, explora-se como a vida litúrgica e a vida de oração foram fecundadas na Igreja por esse Concílio. Nicéia foi um ponto de viragem tão grande na história do cristianismo que, no terceiro capítulo, se procura ver como o Símbolo e o Concílio testemunham o evento do próprio Jesus Cristo, cuja irrupção na história oferece um acesso sem precedentes a Deus e introduz uma transformação do pensamento humano, ou seja, é um evento de Sabedoria. O Símbolo e o Concílio testemunham também uma novidade na maneira como a Igreja de Cristo se estrutura e realiza a sua missão: constituem um evento eclesial. Por fim, no quarto capítulo, são analisadas as condições de credibilidade da fé professada em Niceia, num passo de teologia fundamental, a fim de fazer emergir a natureza e a identidade da Igreja enquanto, pelo Magistério, é autêntica intérprete da verdade normativa da fé, guardiã dos crentes, sobretudo dos mais pequenos e vulneráveis.

6. “Não se acende uma lâmpada para coloca-la debaixo da caixa, e sim sobre o candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão na casa” (Mt 5,15). Esta luz é Cristo, “a luz da luz”. Maravilharmo-nos com ela é também encontrar no Espírito Santo um novo impulso para apresentar esta boa nova com mais vigor e criatividade. Esta luz ilumina vivamente nosso tempo, marcado pela violência e pela injustiça, cheio de incertezas, que mantém uma relação complexa com a verdade, no qual a fé e a pertença à Igreja parecem ameaçadas. A luz é tanto mais viva e radiante quanto mais for partilhada por todos os cristãos, que podem confessar a sua fé na mesma marty̆ria, no mesmo testemunho, para ajudar a atrair os homens e as mulheres de hoje a Jesus Cristo, Filho de Deus e Salvador:

Para nós, o essencial, o mais belo, o mais atraente e, ao mesmo tempo, o mais necessário é a fé em Cristo Jesus. Todos juntos, se Deus quiser, renová-la-emos solenemente durante o próximo Jubileu e cada um de nós é chamado a anunciá-la a todos os homens e mulheres da terra. Nisto consiste a tarefa fundamental da Igreja[9].


Capítulo 1

O símbolo para a salvação:
doxologia e teologia do dogma de Niceia

7. Celebrar Niceia no seu 1700º  aniversário é sobretudo maravilharmo-nos com o Símbolo que o Concílio nos legou e com a beleza do dom oferecido em Jesus Cristo, do qual ele é como um ícone em palavras. Começaremos, pois, o nosso estudo sobre Niceia examinando seu Símbolo, para fazer sobressair a extraordinária imensidão da fé trinitária, da cristologia e da soteriologia que ele exprime, bem como suas implicações antropológicas e eclesiológicas, antes de concluir com o seu significado Ecumênico. É, por assim dizer, um ato de teologia doxológica. Não se pretende aprofundar cada um dos temas deste concentrado de fé cristã que é o Credo - tarefa que teria sido pouco útil e, de qualquer modo, impossível no âmbito do presente trabalho -, mas se pretende extrair a riqueza das afirmações e das verdades oferecidas pelo Credo Niceno do ponto de vista dogmático, particularmente aquelas que representam maior desafio e fecundidade para este período da história da Igreja e do mundo, precisamente quando celebramos o aniversário de Niceia.

1. Compreender a imensidão das três Pessoas divinas que nos salvam: “Deus é Amor”, infinitamente

8. O símbolo niceno-constantinopolitano estrutura-se em torno da afirmação da fé trinitária:

Cremos em um só Deus, Pai onipotente, artífice do céu e da terra, de todas as coisas vivíveis e invisíveis,
E em um só Senhor Jesus Cristo, filho unigênito de Deus,
gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, luz da luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não feito, consubstancial ao Pai;
por meio do qual tudo veio a ser; [...]
E no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do Pai,
que junto com o Pai e o Filho deve ser coadorado e conglorificado,
que falou através dos profetas
[10] [...] .

1.1 A grandeza da paternidade de Deus Pai, fundamento da grandeza do Filho e do Espírito

9. O ponto de partida da fé nicena é a afirmação da unidade de Deus. O cristianismo é fundamentalmente um monoteísmo, em continuidade com a revelação feita a Israel. No entanto, o Símbolo não coloca em primeiro lugar “Deus” como tal, e menos ainda a única natureza divina, mas sim a Primeira hipóstase divina, que é o Pai [11]. Como “criador do céu e da terra” (cf. Gn 1,1; Ne 9,6; Ap 10,6), ele é Pai de todos. Além disso, Cristo revela a inaudita paternidade intra-divina de Deus, fundamento da sua paternidade ad extra. Se Cristo é o Filho divino, de modo único, isso implica que há uma geração em Deus: Deus Pai dá tudo o que tem e tudo o que é[12]. Deus não é um princípio pobre e egoísta: ele é sine invidia. A sua paternidade, tal como a sua onipotência, é a capacidade de se dar inteiramente[13]. Este dom paterno não é apenas um aspeto entre outros, mas define o Pai, que é inteiramente paternidade[14]. Deus sempre foi Pai, e nunca foi um Deus “solitário”. Esta paternidade do Deus único é o primeiro aspeto da fé cristã que provoca admiração e cuja imensidão devemos celebrar redescobrindo Niceia 1700 anos depois. O objetivo é explorar as implicações deste fato para a nossa compreensão do mistério trinitário.

10. A fé no Pai testemunha a plenitude superabundante de Deus[15]. O primeiro artigo não é simplesmente uma definição de Deus, mas antes de mais um louvor que faz parte da tradição doxológica da liturgia judaica e das primeiras liturgias cristãs. O Deus “todo-poderoso (pantokratōr)” ecoa várias expressões do Antigo Testamento, como, por exemplo, “Senhor Sabaoth”, retomadas no Novo Testamento como parte das liturgias celestes (Ap 4,8; 11,17; 15,3; 16,14; 19,6).

11. A revelação em Cristo da paternidade de Deus manifesta também a imensidão do Filho e do Espírito. Se Deus Pai dá tudo para além da sua paternidade, isso significa que o Filho e o Espírito são plenamente iguais ao Pai na sua divindade. No Símbolo, o Filho é “um”, é “Senhor” (Kyrios, que traduz o Tetragrama na Septuaginta), “Filho de Deus”, “unigênito” (ho monogenēs) na intimidade do Pai, “Deus de Deus”, “luz da luz”, “verdadeiro Deus de verdadeiro Deus”, consubstancial (homoousios) com o Pai. Note-se, por exemplo, que no Quarto Evangelho, o Filho é várias vezes chamado theos: Jo 1,1; 5,18; 20,28. O Filho é gerado “antes de todos os tempos”, o que significa no Símbolo que ele é coeterno com o Pai (Jo 1,1). Isto visa as posições de Ário, segundo as quais “houve um tempo em que [o Filho] não existia”, “antes de nascer ele não existia” e “tornou-se do que não existia”[16], ou “o Filho é a partir do nada”, por “vontade e conselho”[17] do Pai. É por isso que o Filho pode ser confessado como aquele “por quem todas as coisas foram feitas” (cf. 1Cor 8,6; Jo 1,3). Deus é tão grande que o Pai é capaz de gerar outro, que lhe é igual em divindade. Deus excede tudo o que podemos conceber ou imaginar, porque a sua Unidade pressupõe uma pluralidade real que não rompe a Unidade.

12. O Pai também dá tudo ao Espírito, que é definido com termos específicos e reservados à divindade: “Espírito”, “Santo” e “Senhor”, o que também constitui evocação do Tetragrama. Assim como o Pai é o criador e o Filho é o Verbo pelo qual o Pai cria todas as coisas, o Espírito é professado como o “doador da vida”. O Espírito “procede do Pai”, assim como o Filho é gerado pelo Pai[18]. As afirmações sobre o Espírito fazem eco intencional ao artigo referente ao Filho. Consequentemente, o Espírito pode e deve ser adorado com o Pai e o Filho - confirmando o carácter doxológico do Símbolo.

13. É essencial manter a divindade do Espírito como o “terceiro” em Deus e a sua ligação ao Pai, bem como ao Filho. Com efeito, ainda hoje há dificuldades em considerá-lo completamente como uma Pessoa divina e não como uma simples força divina ou mesmo cósmica. Por vezes, se reza ao Pai e ao Filho, omitindo-se o Espírito, contrariamente à oração da Igreja, que é sempre dirigida ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. Atribui-se à Eucaristia, à Virgem Maria e à Igreja a importância que lhes é devida, sem se dar conta de que são realidades preciosas propriamente porque animadas pelo Espírito[19]. Há ainda quem, pelo contrário, dê um lugar central, ou mesmo exclusivo, ao Espírito Santo, a ponto de pôr em segundo plano o Pai e o Filho, o que, paradoxalmente, equivale a uma forma de reducionismo pneumatológico, pois Ele é Espírito do Pai e Espírito do Filho (Gl 4,6; Rm 8,9). A grandeza superabundante do Espírito Santo, expressa na fé nicena, é uma proteção contra esses reducionismos.

14. Assim, da plenitude fontal da paternidade de Deus brota a plenitude superabundante de Deus Pai, Filho e Espírito, semper major. Ora, a plenitude fontal do Pai implica uma taxis (uma ordem) na vida do Deus Uno e Trino. O Pai é a fonte de toda a divindade[20]. A segunda pessoa é de fato Deus e luz, mas é Deus de Deus e luz da luz. Embora o Espírito seja confessado como sendo igual em divindade ao Filho e ao Pai, ele é apresentado de uma forma bastante diferente dos outros dois. Acabamos de ver (cf. supra § 12) que ele é apresentado com caraterísticas divinas e deve ser adorado com o Pai e o Filho. Dito isto, as diferenças de expressão são notáveis: o que se diz do Pai e do Filho “um” ou do Filho “consubstancial” não se repete em relação ao Espírito. Sem tirar nada da sua co-divindade, o modo como o Espírito é mencionado no Símbolo sublinha a sua distinção pessoal. Assim, o próprio do Espírito Santo põe em evidência a unicidade de cada pessoa divina. De certo modo, em Deus, “hipóstase” ou “pessoa” é termo analógico, no sentido em que cada um dos três “nomes” divinos é plenamente uma pessoa, mas é-o de um modo único. Esta singularidade mostra também que a igualdade, por um lado, e a diferença e a ordem, por outro, não se contradizem. Também isto é fruto da paternidade superabundante do Pai. Receber Niceia significa receber a riqueza da paternidade divina que estabelece a igualdade, mas também a diferença e a unicidade.

1.2 Reflexão sobre o uso da expressão homoousios

15. Um dos contributos centrais de Niceia é a definição da divindade do Filho em termos de consubstancialidade: o Filho é “consubstancial” (homoousios) com o Pai, “gerado do Pai”, “isto é, da substância do Pai” [21]. A geração do Filho é algo diferente da criação, porque é uma comunicação da substância única do Pai. O Filho não é apenas plenamente Deus como o Pai, mas de uma substância numericamente idêntica à sua, pois não há divisão no Deus único[22]. Em outras palavras: o Pai dá tudo ao Filho, segundo a lógica de uma vida divina, que é agapē e que ultrapassa sempre o que a mente humana pode conceber.

16. Pela primeira vez, são utilizados termos não bíblicos num texto eclesial oficial e normativo - voltaremos a este assunto nos capítulos III e IV. A intenção dos Padres Conciliares não era introduzir algo novo na fé apostólica, mas protegê-la, explicitando o que é realmente a geração em Deus. É por isso que, no Símbolo de 325, homoousios é introduzido pela expressão “isto é”: a terminologia grega ontológica está a serviço das expressões bíblicas tradicionais[23]. O termo, de origem gnóstica e condenado pelo sínodo regional de Antioquia (264-269), foi muito contestado nas décadas que se seguiram a Niceia. Mas, a partir dos anos 360, o número de adeptos aumentou, até à sua ratificação plena e pacífica em Constantinopla (381). Nessa altura, foi reconhecido o seu papel de esclarecimento e proteção da fé, bem como a capacidade criativa da razão, da filosofia e da cultura humanas no acolhimento da Revelação. Como nas Sagradas Escrituras, isto sublinha o que a Revelação implica um diálogo entre Deus e os humanos, diálogo que se dá, de ambos os lados, através de palavras humanas situadas, limitadas e, portanto, sempre abertas à interpretação. Não só a vida divina é revelada como superabundância, mas a própria forma da Revelação, suscetível de ser expressa em palavras humanas, e traduzida em todas as línguas, mostra-se aqui como semper major.

17. No entanto, esta expressão não é a única utilizada no Símbolo para exprimir a divindade salvífica do Filho. Ela está inserida numa série de termos de origem escriturística e litúrgica: “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, “Deus de Deus” [24] e “luz da luz”. Nenhum termo isolado pode esgotar a plenitude superabundante da Revelação. A fé precisa da articulação de expressões escriturísticas, filosóficas e litúrgicas, de conceitos, de imagens e de nomes divinos (Pai, Filho, Espírito Santo) para se exprimir da forma mais exata e completa. As formas de expressão das diferentes Igrejas e comunidades eclesiais podem apoiar-se mutuamente nesta redescoberta, pois algumas dão maior ênfase a uma ou a outra: por exemplo, a tradição oriental sublinha a compreensão de Cristo como “luz da luz”[25]. A pluralidade do seu vocabulário contribui certamente para tornar a fé que exprime acessível em diferentes culturas e de acordo com a forma mentis de cada ser humano.

1.3 A unidade da história da salvação

18. Para se compreender plenamente o significado do Símbolo niceno-constantinopolitano, é necessário entender a unidade do quadro da história da salvação que informa a profissão de fé. De fato, a atribuição da criação ou do “dom da vida” às três pessoas sublinha a unidade entre a ordem da criação e a ordem da salvação. A divinização começa com o ato criador, e a história da salvação começa com a criação. Contra o marcionismo e as várias formas de gnosticismo, deve-se sustentar que é o mesmo Deus que cria e salva, e a mesma realidade criada, boa porque querida por Deus, que é restaurada na redenção. Assim, a graça não introduz uma ruptura, mas oferece uma realização, porque já atua na criação, que a ela é ordenada.

19. A economia da salvação realizada em Cristo, também ela, só é apresentada em seu verdadeiro e pleno significado se for sublinhada a sua fidelidade à Revelação feita ao povo de Israel, sem a qual a fé expressa em Niceia perderia a sua legitimidade e a plenitude da sua dimensão histórica. Obviamente, a dimensão trinitária e cristológica do ensinamento niceno não é aceite pela tradição rabínica, mas, do ponto de vista cristão, é entendida de maneira essencial como uma novidade que, no entanto, está em continuidade com a Revelação confiada povo eleito. A doutrina da Trindade não é certamente entendida como relativização, mas como aprofundamento da fé no Deus único de Israel[26]. Já sublinhámos que as referências a Deus como “único” e “criador do céu e da terra” ecoam o Antigo Testamento, onde Deus se revela como aquele que cria por amor, entra em relação por amor e pede para ser amado em troca. Deus chama a Abraão de seu “amigo”, “aquele a quem ama” (Is 41,8; 2Cr 20,7; Tg 2,23), e fala com Moisés “face a face, como quem fala com seu próximo” (Ex 33,11). A escolha do termo homoousios é feita precisamente para proteger o carácter monoteísta da fé cristã: em Deus, não há outra realidade que não seja a realidade divina. O Filho e o Espírito não são outra coisa senão o próprio Deus, e não seres intermediários entre Deus e o mundo ou meras criaturas. Além disso, a Revelação feita a Israel testemunha o Senhor como Uno e Único, que se compromete, se devota e se comunica na história da humanidade. O cristianismo entende a Encarnação como a plenitude sem precedentes do modo de atuar (a economia) do Deus de Israel que desce e habita no meio do seu povo, realizada na união de Deus com uma humanidade singular, Jesus[27].

20. Além disso, o desenvolvimento da fé trinitária, tal como foi expressa em Niceia, não deixa de ter um fundo judaico. O Símbolo é estruturado por tríplice repetição: “Cremos em um só Deus, Pai... em um só Senhor Jesus Cristo... e no Espírito Santo”. De fato, a fé trinitária emergente dos primeiros séculos desenvolveu a unidade dos nomes divinos, Pai, Filho e Espírito, a partir da fé monoteísta de Israel expressa no início do Sh'ma Israel, “o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um” (Dt 6,4), repetindo esta oração central do judaísmo, estendendo o atributo da unidade do Deus único ao Filho: “Creio em um só Deus... e em um Senhor...”. É o que acontece já nas primeiras expressões da fé trinitária do Novo Testamento: “Para nós há um só Deus, o Pai, do qual tudo provém, e para o qual nós existimos. Para nós também existe um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe e nós igualmente existimos por ele” (1Cor 8,6, sublinhado nosso). Estas fórmulas “binárias” coexistem com fórmulas “ternárias”: “Há um só corpo e um só Espírito [...]; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, acima de todos, no meio de todos e em todos” (Ef 4,4-6, sublinhado nosso; cf. também 1Cor 12,4-6). Evidentemente, o conteúdo da liturgia evoluiu rapidamente para concepções que não podiam ser aceites pelo rabinismo, mas a fé cristã desenvolveu-se a partir das estruturas litúrgicas judaicas. Deve-se também sublinhar a riqueza poliédrica do monoteísmo israelita, tal como revelada na Bíblia hebraica e nos escritos do período do Segundo Templo[28]. Existe a ideia de uma riqueza superabundante em Deus que não contradiz sua unicidade e unidade. Isso se manifesta na multiplicidade das figuras de Deus, como a dimensão “binária”, em certo sentido, que alguns estudiosos percebem na dualidade entre o “Ancião de Dias” e aquele que é “semelhante a um filho de homem” (Dn 7,9-14)[29]. Esta riqueza manifesta-se ainda nas diferentes figuras de Deus durante sua ação no mundo: o Anjo do Senhor, a Palavra (dābār), o Espírito (rûaḥ) e a Sabedoria (ḥākmâ[30]. Alguns exegetas contemporâneos, aliás, sustentam que houve uma primeira etapa binária na confissão de fé cristã, que inscreveu naturalmente a confissão de fé em Jesus de Nazaré como Kyrios exaltado após a morte, com um grau propriamente divino, na continuidade do monoteísmo expresso na Bíblia[31]. Assim, mesmo que seja fundamental não retroprojetar a fé trinitária no Antigo Testamento, é possível, no entanto, perceber entre o Antigo e o Novo Testamento um processo de desenvolvimento, ainda que não linear, uma forma de aproximação destas diferentes realidades em duas figuras: o Filho-Logos e o Espírito. Quando se chegou ao que se considera a afirmação de outras duas pessoas divinas como uma associação extrínseca ao Deus único, perdeu-se o reconhecimento da ideia crista de uma fecundidade intrínseca do Pai no seio da substância una e indivisível das três pessoas coeternas.

2. Compreender a imensidão de Cristo Salvador e seu ato de salvação

21. No centro do segundo artigo do Símbolo niceno-constantinopolitano está a confissão da Encarnação e do ato redentor do Filho. Depois de professar a divindade de Cristo, Filho de Deus, confessamos também que:

[Cremos em um só Senhor Jesus Cristo].
o qual, em prol de nós, homens, e de nossa salvação, desceu dos céus, e se encarnou, do Espírito Santo e Maria, a Virgem, e se humanou; que também foi crucificado por nós, sob Pôncio Pilatos, e padeceu e foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, e subiu aos céus e está sentado à direita do Pai; e virá novamente na glória para julgar os vivos e os mortos; cujo reino não terá fim
[32].

2.1 Ver Cristo em toda a sua grandeza

22. Niceia permite-nos “ver Cristo em toda a sua grandeza”[33]. As duas dimensões que o constituem mediador único entre Deus e a humanidade são marcadas pela menção dos dois atores da encarnação: “Ele se encarnou do Espírito Santo e Maria, a Virgem”. Ele é plenamente Deus, vindo de uma Virgem pelo poder do Espírito de Deus; ele é plenamente homem, nascido de uma mulher. É homoousios ao Pai, mas também a nós, segundo a dupla afirmação posterior de Calcedônia[34] - tendo-se em conta que o termo homoousios não pode ter um significado unívoco quando se trata de relacionar o Filho encarnado com o Pai ou com os seres humanos. O Verbo feito carne é a própria Palavra de Deus, que assume, de forma única e irreversível, uma humanidade singular e finita. É pelo fato de ser pessoalmente (hipostaticamente) idêntico ao Filho eterno que Jesus pôde, sofrendo de forma trágica a morte humana, permanecer numa relação viva com o Pai e transformar a separação de Deus, o pecado e a morte (cf. Rm 6,23), em acesso a Deus (cf. 1Cor 15,54-56; Jo 14,6b). Por ser Jesus verdadeiro homem - “em tudo semelhante a nós, exceto no pecado” (Hb 4,15) - ele pôde assumir o nosso pecado e passar pela morte. Esta dupla consubstancialidade significa que só Cristo pode salvar. Só ele pode salvar. Só Ele é a comunhão do ser humano com o Pai[35]. Só Ele é o Salvador de todos os seres humanos de todos os tempos. Nenhum outro ser humano pode sê-lo, antes ou depois dele. A comunhão perfeita e inaudita entre Deus e os seres humanos foi realizada em Cristo, para além de qualquer forma de realização que o próprio ser humano possa imaginar.

23. Não se pode dissimular a dificuldade atual em crer na plena divindade e na plena humanidade de Cristo. Ao longo da história do cristianismo, e ainda hoje, existe uma verdadeira resistência ao reconhecimento da plena divindade de Cristo. Jesus pode mais facilmente ser visto como um mestre espiritual iniciático ou como um messias político que prega a justiça, enquanto na sua humanidade ele vive a sua relação eterna com o Pai. Mas há também uma grande dificuldade em admitir a plena humanidade de Cristo, que pode sentir cansaço (Jo 4,6), tristeza e abandono (Jo 11,35) e até ira (Jo 2,14-17) e que, misteriosa, mas verdadeiramente, ignora certas coisas (“ninguém sabe, [...] nem mesmo o Filho, mas somente o Pai”: Mt 24,36). O Filho eterno escolheu viver a perfeição que é própria de sua natureza divina na finitude de sua natureza humana, e por meio dela.

24. Note-se, no entanto, que mesmo que a parte do Credo dedicada à segunda pessoa seja a mais desenvolvida, a perspectiva cristológica contida no Símbolo niceno é necessariamente trinitária. Cristo é semper major precisamente porque, onde Ele está, há sempre mais do que Ele: o Pai continua a ser o Pai, o “Santo de Israel”. É certo que “quem viu [Cristo] viu o Pai” (Jo 14,9), mas, como ele diz, “o Pai é maior do que eu” (Jo 14,28). O próprio Ário viu isso claramente quando citou o Evangelho: “Um só é bom” (Mt 19,17)[36]. Além disso, Cristo não pode ser compreendido sem o Pai e o Espírito Santo: antes de ser concebido como Homem-Deus e Esposo, é apresentado no Novo Testamento como Filho do Pai e Ungido pelo Espírito. Do mesmo modo, ele salva os seres humanos, mas não sem o Pai, que é a fonte e o fim de todas as coisas, pois ele é união filial com o Pai. Salva os seres humanos, mas não sem o Espírito, que os faz clamar “Abbá, Pai” (Rm 8,15) e cuja ação interior possibilita a transformação e o ingresso ativo no movimento que o conduz ao Pai.

2.2 A imensidão do ato de salvação: a sua consistência histórica

25. A grandeza do Salvador revela-se também na plenitude superabundante da economia da salvação. Niceia apresenta o realismo da obra da redenção. Em Cristo, Deus salva-nos entrando na história. Não envia um anjo ou um herói humano, mas entra Ele próprio na história humana, nascendo de uma mulher, Maria, no seio do povo judeu (“nascido de uma mulher, nascido sob a lei”: Gal 4,4), e morrendo num período histórico específico, “sob Pôncio Pilatos” (1Tm 6,13; At 3,13)[37]. Se o próprio Deus entrou na história, a economia da salvação é o lugar da sua Revelação; na história, Cristo revela autenticamente o Pai e o Espírito e dá pleno acesso ao Pai no Espírito. Além disso, porque Deus entra na história, não se trata apenas de um ensinamento a ser posto em prática, como quer o marcionismo ou a falsa gnose, mas de uma ação efetiva de Deus. A economia é o lugar da ação salvífica de Deus. Confessamos que um acontecimento histórico mudou radicalmente a situação de todos os seres humanos. Confessamos que a Verdade transcendente está inscrita na história e atua nela. É por isso que a mensagem de Jesus não pode ser dissociada da sua pessoa: ele é para todos “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6) e não apenas mais um mestre de sabedoria.

26. Apesar da sua ênfase na história, o Símbolo não menciona ou refere explicitamente grande parte do conteúdo do Antigo Testamento ou, em particular, a eleição e a história de Israel. É evidente que um Símbolo não pretende ser exaustivo. No entanto, vale a pena sublinhar que este silêncio não significa, de modo algum, que a eleição do povo da Antiga Aliança tenha perdido seu valor[38]. O que a Bíblia hebraica revela não é apenas uma preparação, mas é já a história da salvação, que continuará e se realizará em Cristo: “A Igreja de Cristo reconhece que, segundo o mistério salvífico de Deus, seus inícios (initia) da fé e da sua eleição já se encontram nos Patriarcas, em Moisés e nos Profetas”[39]. O Deus de Jesus Cristo é o “Deus de Abraão, Isaac e Jacó”, o “Deus de Israel”. Além disso, o Símbolo sublinha discretamente a continuidade entre o povo judeu e o povo da Nova Aliança, ao mencionar “a virgem Maria”, o que coloca o Messias no contexto de uma família judaica e de uma genealogia judaica, e que igualmente faz eco do texto do Antigo Testamento (Is 7,14, segundo a Septuaginta). Isto cria uma ponte entre as promessas do Antigo Testamento e as do Novo, tal como a expressão “ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” no resto do artigo, onde “Escrituras” significa o Antigo Testamento (1Cor 15,4). A continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento é ainda evidenciada quando, no artigo sobre o Espírito, se afirma que ele “falou pelos profetas”, o que talvez represente uma nota anti-marcionita[40]. Seja como for, para ser plenamente compreendido, este Símbolo nascido da liturgia adquire todo o seu significado quando proclamado na liturgia e articulado com a leitura do conjunto das Sagradas Escrituras, Antigo e Novo Testamento. Isto insere a fé cristã no quadro da economia da salvação, que inclui nativa e estruturalmente o povo eleito e a sua história.

2.3 A grandeza do ato de salvação: o mistério pascal

27. O realismo e a dimensão trinitária da salvação em Cristo encontram o seu ponto culminante no mistério pascal. O Filho, luz de Deus e Deus verdadeiro, encarna-se, sofre, morre, desce aos infernos e ressuscita. Trata-se de uma novidade inaudita. A dificuldade de Ário dizia respeito não só à unidade de Deus, para ele incompatível com a geração de um Filho, mas também à compreensão da sua divindade, que considerava incompatível com a paixão de Cristo. Ora, é precisamente em Cristo e só em Cristo que compreendemos o que Deus é capaz de fazer por si mesmo, para além de todos os limites da nossa pré-compreensão. Devemos levar a sério o grito de Jesus como grito do Filho de Deus, expresso no suor de sangue e no medo: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice” (Mt 26,39b). A própria palavra homoousios ajuda-nos a perceber a inaudita kenosis da Encarnação: só a afirmação de que o Filho é “consubstancial” ao Pai permite perceber a radicalidade e a profundidade daquilo que este mesmo Filho consentiu ao assumir a condição humana. Em certo sentido, poderíamos dizer que o Filho, semper major, se torna verdadeiramente minor, e que o Deus Altíssimo desce até ao mais profundo em Jesus Cristo (Fl 2, 5-11). Agora, mesmo que só Cristo nasça, sofra a Paixão e morra, podemos dizer que “unus de Trinitate passus est”[41]. Toda a Trindade está envolvida, cada pessoa singularmente, na paixão salvífica de Cristo. Deste modo, a Paixão revela-nos o significado verdadeiramente divino da “onipotência”. A onipotência de Deus Uno e Trino é idêntica à doação e ao amor. O Redentor crucificado não é, portanto, uma dissimulação, mas uma revelação da onipotência do Pai.

28. A plenitude do ato redentor de Cristo só se manifesta plenamente na sua ressurreição, que é a realização da salvação, na qual se confirmam todos os aspectos da nova criação. A ressurreição testemunha a plena divindade de Cristo, a única capaz de atravessar e vencer a morte, mas também a sua humanidade, pois é a mesma humanidade, numericamente idêntica à da sua vida terrena, que é transfigurada e glorificada. Não se trata de um símbolo ou de uma metáfora: Cristo ressuscita na sua humanidade e no seu corpo. A ressurreição transcende a história, mas realiza-se no coração da história dos homens e deste homem Jesus. Além disso, ela é profundamente trinitária: o Pai é a sua fonte, o Espírito é o seu sopro vivificante, e Cristo glorificado vive - em sua humanidade - no seio da glória divina e em comunhão inalterável com o Pai e o Espírito. Notemos que é a ressurreição de Cristo, “primogênito de entre os mortos” (Cl 1,18; Rm 8,29), que revela a geração eterna do Filho, “primogênito de todas as criaturas” (Cl 1,15). Assim, a paternidade e a filiação divinas não são, em primeiro lugar, desenvolvimentos de modelos humanos; mesmo expressos com palavras humanas culturalmente marcadas, são, no entanto, realidades sui generis da vida divina.

29. O Símbolo sublinha que a ressurreição de Jesus Cristo se estende até ao fim dos tempos, quando Cristo “virá novamente na glória para julgar os vivos e os mortos; cujo reino não terá fim”. Com a ressurreição, a vitória é definitivamente conquistada, mas deve ser plenamente realizada na Parusia. A esperança cristã é plena: não se baseia apenas no ephapax da Paixão e da Ressurreição, ou no dom atual da graça, mas também no futuro do regresso glorioso de Cristo e do seu Reino. É de notar que este aspeto do Símbolo de Niceia é mais bem compreendido e ganha maior força se lido também num contexto em que a Igreja se põe à escuta o Antigo Testamento e da fé do povo judeu de hoje. A atual expetativa messiânica do povo de Israel põe em evidência a plenitude das promessas messiânicas de paz em toda a terra e de justiça para todos, num mundo completamente renovado (Is 2,4; 61,1-2; Mq 4,1-3), que os cristãos esperam com a Parusia. Isto pode e deve despertar a esperança cristã no regresso do Ressuscitado, porque só então a sua obra redentora será plenamente visível[42].

3. Compreender a imensidão da salvação oferecida à humanidade e a imensidão da nossa vocação humana

30. Celebrar Niceia não é apenas maravilhar-se com a plenitude superabundante de Deus e de Cristo Salvador, mas também com a grandeza superabundante do dom oferecido ao ser humano e da vocação humana que ele revela. O mistério de Deus na sua imensidão é a revelação da verdade sobre o ser humano, que é também semper major. O objetivo aqui é desenvolver as implicações soteriológicas e antropológicas das afirmações trinitárias e cristológicas do Símbolo niceno, mas também ter em conta o ensinamento que se encontra no final do terceiro artigo, sobre o Espírito Santo, que apresenta a fé na Igreja e na salvação:

[Cremos] a Igreja una, santa, católica e apostólica.
Confessamos um só batismo para a remissão dos pecados.
Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro. Amém.

3.1 A grandeza da salvação: a entrada na vida de Deus

31. Porque Cristo nos salva, o Símbolo niceno confessa a “remissão dos pecados” e a “ressurreição dos mortos”. Menciona o pecado, porque precisamos conhecer de que mal fomos libertados. O pecado, no sentido teológico estrito, não é apenas o vício ou a falta que ofende as intenções do Criador na criatura (Rm 2,14-15), é também uma ruptura deliberada com Deus no âmbito de uma relação teologal com Ele. Neste sentido pleno, o pecador toma consciência do seu pecado à luz do amor misericordioso de Deus: o pecado deve ser “descoberto” pela própria obra da graça, para que possa converter os corações[43]. Assim, a revelação do pecado é o primeiro passo da redenção e deve ser confessada como tal.

32. Com a exorbitante pretensão da ressurreição dos mortos, em Niceia, a Igreja professa que a salvação é completa e plena. O ser humano é libertado de todo o mal, incluindo o “último inimigo”, que deve ser destruído por Cristo para que todas as coisas sejam submetidas a Deus (1Cor 15, 25-26). A fé na ressurreição implica não apenas a sobrevivência da alma, mas a vitória sobre a morte[44]. Além disso, o ser humano é salvo não só na sua alma, mas no seu próprio corpo. Nada do que constitui a identidade e a humanidade do ser humano fica fora da nova criação oferecida por Cristo. Finalmente, este dom será adquirido para sempre, porque se desdobra na “vida do século vindouro”, o eschăton plenamente realizado. Desde a Páscoa, nenhum pecado tem o poder de separar os pecadores de Deus - pelo menos se eles se aferrarem à mão do Crucificado Ressuscitado, que se estende até às profundezas do abismo para se oferecer à ovelha perdida: “Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem outra criatura qualquer será capaz de nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,38-39).

33. Porque Cristo nos salva como Deus verdadeiro, a ressurreição significa para nós a entrada na vida divina, a humanização e a divinização ao mesmo tempo, como testemunha o comentário de Jesus ao Salmo 81,6 em João 10,14: “Vós sois deuses” [45]. E porque ele nos salva como Filho, gerado pelo Pai, esta divinização é filiação adotiva e conformação a Cristo; é a entrada do Espírito Santo no amor do Pai. Somos amados e regenerados pelo mesmo amor com que o Pai ama e gera eternamente o Filho. Esta é a implicação soteriológica da paternidade de Deus professada por Niceia. Finalmente, porque Cristo nos salva como Filho, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, essa filiação é um verdadeiro mergulho nas relações trinitárias. É por isso que o Símbolo nasce da profissão trinitária de fé batismal, e que o batismo se realiza “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. A imensidão do dom assim revelado se atualiza no mistério da Ascensão de Cristo: “subiu ao céu”, mostrando que ele próprio, Cristo, é o “nosso céu”[46]. O Filho exaltado enviará o dom de Deus prometido, o Espírito do Pentecostes. Nenhuma visão mais restrita da salvação seria verdadeiramente cristã.

3.2 A imensidão da vocação humana ao Amor divino

34. Tudo isto não pode deixar de ter consequências para a visão cristã do ser humano. O ser humano revela-se também na grandeza superabundante da sua vocação, como homo semper major. O Símbolo niceno não inclui um artigo antropológico em sentido estrito, mas o ser humano, na sua vocação à filiação divina em Jesus, pode ser descrito como objeto de fé. De acordo com as Sagradas Escrituras, a sua verdadeira identidade é revelada pelo mistério de Cristo e pelo mistério da salvação como um mistério em sentido estrito, análogo ao de Deus e de Cristo, ainda que estes o ultrapassem incomparavelmente.

35. Este grande mistério está ligado, antes de mais, ao mistério de Deus Uno e Trino e ao mistério de Cristo. A revelação da paternidade de Deus é a revelação do próprio mistério da paternidade: “dobro os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda paternidade no céu e na terra” (Ef 3,14). A revelação do Filho, particularmente em João, é a manifestação da filiação em sentido próprio, que brota ontologicamente da geração do Unigênito e faz parte do próprio mistério da Trindade. Numa espécie de inversão da relação de compreensão, a paternidade e a filiação trinitárias iluminam e purificam a paternidade, a maternidade, a filiação e a fraternidade humanas, culturalmente situadas e marcadas pelo pecado. Em primeiro lugar, a paternidade divina mostra que a filiação é a caraterística mais profunda do ser humano: ele é um dom dado a si mesmo por Deus Pai, e é chamado a receber-se de Deus e, nele, dos outros e do mundo criado que o rodeia, para se tornar cada vez mais ele mesmo. Por isso, a sua identidade e a sua vocação revelam-se particularmente em Cristo, o Filho encarnado, o “homem perfeito” que, “na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, Cristo, o novo Adão, manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe revela a sua altíssima vocação”[47]. Por outro lado, o ser humano é também chamado a participar no mistério da paternidade, sendo pai e mãe na carne e no espírito. À imagem da paternidade divina, a paternidade e a maternidade humanas implicam o dom de si, a plena igualdade entre pais e filhos, entre quem dá e quem recebe, mas também uma diferença e uma taxis entre eles. Por fim, não há antropologia verdadeiramente cristã que não seja pneumatológica. Só o Espírito “vivificador” humaniza plenamente o ser humano, tornando-o filho e filha, pai e mãe. Analogamente, podemos falar de uma forma de co-inspiração do Espírito, ou de inspiração conjunta, porque os nossos atos e palavras mais fecundos são proporcionais à cooperação que oferecem ao Espírito, que através deles consola, eleva e guia[48]. Deste modo, a verdade e o sentido da paternidade, da filiação e da fecundidade humanas devem ser revelados, porque não são apenas realidades naturais ou culturais, mas uma participação no modo de ser de Deus Uno e Trino. Não podem ser compreendidas em profundidade sem a Revelação, nem podem ser exercidas sem a graça. Esta é mais uma boa nova a ser redescoberta hoje a partir de Nicéia.

36. Em certo sentido, o próprio termo homoousios pode ter um significado antropológico. O ser humano tem acesso a Deus. É claro que Cristo diz, de modo singular: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9), por causa do mistério da união hipostática. Mas esta união única nele é coerente com o mistério do ser humano “criado à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27). Neste sentido, cada ser humano reflete verdadeiramente Deus e torna-o conhecido e acessível. São Paulo VI exprimiu este paradoxo ao sublinhar que “para conhecer o homem, o homem verdadeiro, o homem integral, é preciso conhecer a Deus”, mas também que “para conhecer Deus, é preciso conhecer o homem” [49]. Estas palavras devem ser tomadas no seu sentido mais completo: não só cada ser humano nos mostra a imagem de Deus, como também não é possível conhecer Deus sem passar pelo ser humano. Além disso, como vimos acima (§ 22), a Igreja utilizará a expressão homoousios para exprimir a comunhão de natureza de Cristo com todos os seres humanos, como verdadeiro homem que ele é “nascido de uma mulher” (Gl 4,4), a Virgem Maria[50]. As duas faces desta dupla “consubstancialidade” do Filho encarnado reforçam-se mutuamente para fundamentar profunda e eficazmente a fraternidade de todos os seres humanos. Somos, de certo modo, irmãos e irmãs de Cristo na unidade da mesma natureza humana: “Por isso, foi necessário que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hb 2,17; 2,11-12). É este vínculo de humanidade que permite a Cristo, consubstancial ao Pai, atrair-nos para a sua filiação com o Pai e fazer de nós filhos de Deus, seus próprios irmãos e, consequentemente, irmãos uns dos outros em sentido novo, radical e indestrutível.

37. O mistério do ser humano em sua grande dignidade é também iluminado pela dimensão escatológica do Símbolo niceno. A fé na “ressurreição dos mortos”, também designada como “ressurreição da carne” [51], afirma a beleza do corpo e a beleza do que se vive no mundo através do corpo, apesar da fragilidade e dos limites humanos. Afirma o valor deste corpo pessoal concreto, que será ressuscitado e transfigurado, mas que permanecerá numericamente idêntico[52]. Põe, assim, uma exigência ética: se os verdadeiros atos de amor realizados no e pelo corpo nesta vida são, de algum modo, os primeiros passos da vida ressuscitada, o respeito pelo corpo implica viver com retidão e pureza tudo o que está relacionado a ele. É de notar que as cristologias que não fazem justiça à humanidade plena de Cristo correm o risco de induzir a uma concepção da salvação como fuga ao corpo e ao mundo, e não como plena humanização. No entanto, esta profunda conexão com o mundo e com o corpo, criados bons e plenificados pela nova criação, é uma das marcas do cristianismo. Encontramos aqui a ligação profunda entre criação e salvação: todos os traços humanos de Jesus, recebidos de Maria, sua mãe, são boa nova e convidam cada ser humano a considerar o que torna a sua própria humanidade concreta também uma boa nova.

38. Além disso, a esperança da ressurreição, como a da “vida eterna no mundo futuro”, atesta o imenso valor de cada pessoa, que não é destinada a desaparecer no nada ou no todo, mas a uma relação eterna com Deus que escolheu cada pessoa antes da fundação do mundo (Ef 1,4). A eleição de Abraão, Isaac e Jacó e a aliança irrevogável com o povo de Israel revelam já a aliança que Deus quer fazer com todas as nações e com cada ser humano, numa fidelidade indestrutível. Do mesmo modo, a encarnação do Filho eterno num ser humano singular confirma, funda e realiza a dignidade imprescritível de cada pessoa como irmão e irmã de Jesus Cristo.

39. O nosso mundo atual tem uma necessidade imensa de redescobrir os aspectos do mistério do ser humano que o apresentam na sua grandeza, sem ignorar a sua miséria: “O homem está infinitamente para além do homem”, afirma Blaise Pascal[53]. Esta convicção cristã desafia todas as formas de reducionismo antropológico. A fé na paternidade, na filiação e na inspiração fecunda (“pneumática”) do ser humano fundamenta e orienta toda a concepção autêntica da autonomia, da liberdade e da criatividade humanas. Estas estão enraizadas em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, para quem a onipotência, a sabedoria e o amor são um só no dom de si. Inversamente, a perda da fé na ressurreição e na vida eterna conduzirá à recusa de dar ao corpo o lugar que lhe compete, como também de reconhecer o valor sagrado de cada indivíduo na sua singularidade e transcendência. No entanto, o Criador revelou-nos as suas intenções: “Tu o fizeste pouco menor que os anjos, de glória e de honra o coroaste” (Sl 8,6).

3.3 A beleza dom da Igreja e do batismo

40. Os vários fios tecidos até agora são atados nas afirmações eclesiológicas e sacramentais do Símbolo. A profissão de fé de Niceia significa também acreditar na Igreja “una, santa, católica e apostólica” e no batismo “para a remissão dos pecados”. A Igreja e o batismo devem ser celebrados como dons que são também semper majora. Eles são objetos paradoxais da fé, confirmam e manifestam a plenitude superabundante de tudo o que está exposto no conjunto do Símbolo: trata-se de reconhecer neles muito mais do que aquilo que se vê. A Igreja é una para além de divisões visíveis, é santa para além dos pecados dos seus membros e dos erros cometidos pelas suas estruturas institucionais, é católica e apostólica para além das divisões identitárias ou culturais e das tribulações doutrinais e éticas que a agitam constantemente. Neste sentido, devem ser evitados tanto o “monofisismo” eclesiológico como o “arianismo”: o primeiro subestima, ou mesmo obscurece, a dimensão humana da Igreja, enquanto o segundo negligencia a dimensão divina da Igreja em favor de uma visão puramente sociológica e funcional. Do mesmo modo, na fé, o batismo é entendido como fonte de vida nova e de purificação do pecado para além do que é visível na vida imperfeita dos batizados, e do que, por vezes, é distanciado de Deus. Revela e eleva a dignidade inviolável de cada ser humano, conformando-o a Cristo, sacerdote, profeta e rei.

41. “Crer” na Igreja e “confessar” um só batismo é receber um dom de fé que permite discernir, no âmago da sua dimensão humana e frágil, a presença ativa e santificadora do Espírito Santo. O Espírito torna a Igreja una, santa, católica e apostólica, e dá ao batismo a sua eficácia. “Crer” a Igreja e o batismo é também perceber na Igreja e através dela a ação salvífica de Cristo. Assim como Cristo é o sacramento fundamental de Deus, a sua presença real e ativa no símbolo real da sua humanidade, assim a Igreja é o “sacramento universal da salvação” [54]. Finalmente, “crer” a Igreja e o batismo é discernir neles a presença do Deus Uno e Trino. A Igreja é semper major, pois encontra sua fonte e seus fundamentos no Deus Uno e Trino, e nela vivem o Pai, o Filho encarnado e o Espírito. Nela, a fé professada em Niceia continua sendo proclamada e celebrada - através do batismo e dos outros sacramentos: “Glória a ti, Pai e Filho com o Espírito Santo na santa Igreja” [55].

42. No encontro entre soteriologia e antropologia, crer a Igreja e confessar um único batismo confirma e desdobra a imensidão salvação e o mistério do ser humano. A salvação não é simplesmente um processo individual, é comunitário e sobrenatural. Recebida pela cooperação de outras pessoas, produz frutos espirituais para outras, que nos são próximas[56]. Isto ilumina a natureza do ser humano, que não é uma mônada isolada, mas um ser social, inserido numa família, numa nação, numa comunidade de fé e em toda a humanidade[57]. Por conseguinte, a fé na Igreja e no batismo implica que a redenção se inscreve em atos e estruturas visíveis, ligados à dimensão corpórea do indivíduo e do corpo social, que se desenvolvem na história. Estes são lugares do Espírito vivificante e inspirador, que atua em seu interior e para além deles, de modo a chegar a cada ser humano. No fundo, ao testemunhar a ligação entre o indivíduo e o todo, entre a corporeidade e a pertença à história, a Igreja insere-se na obra de Cristo que “revela plenamente o homem a si mesmo” [58]. De modo particular, como sacramento da unidade [59], a Igreja professada no Símbolo de Niceia é o sinal e o instrumento da unidade de todos estes aspectos da pessoa humana e do conjunto da humanidade: a visão cristã do ser humano faz explodir a estreiteza de todos os reducionismos que não tendem para a unidade, seja por afirmar o indivíduo em desfavor da coletividade, seja pela afirmação da coletividade em detrimento do indivíduo.

4. Celebrar juntos a imensidão da salvação: o significado Ecumênico de Niceia e a esperança de uma data comum para a celebração da Páscoa

43. A profissão de fé de Niceia, em toda a sua beleza e grandeza, exprime a fé comum de todos os cristãos. Todos estão unidos na profissão do Símbolo niceno-constantinopolitano, mesmo que nem todos reconheçam ao Concílio e às suas decisões o mesmo estatuto. O ano de 2025 é, pois, uma oportunidade inestimável para sublinhar o que temos em comum, que é muito mais forte, quantitativa e qualitativamente, do que aquilo que nos divide: juntos, cremos no Deus Uno e Trino, em Cristo como verdadeiro homem e verdadeiro Deus, na salvação por Jesus Cristo, segundo as Escrituras lidas na Igreja e sob a direção do Espírito Santo. Juntos, cremos a Igreja, o batismo, a ressurreição dos mortos a vida eterna. O Concílio de Niceia é particularmente venerado pelas Igrejas Orientais, não apenas como um Concílio entre muitos ou o primeiro de uma série, mas como o Concílio por excelência, que promulgou a confissão de fé dos “318 Padres Ortodoxos”.

44. Por conseguinte, 2025 é uma oportunidade para todos os cristãos celebrarmos juntos esta fé e o Concílio que lhe deu expressão. O ecumenismo teológico concentra, com razão, a sua atenção e os seus esforços nos nós não resolvidos das nossas diferenças, mas é, sem dúvida, igualmente frutuoso, se não ainda mais, celebrar juntos, para caminhar em direção ao restabelecimento da plena comunhão entre todos os cristãos, para que o mundo creia. Já sublinhamos como a insistência das diferentes tradições cristãs permite pôr em evidência a riqueza do texto do Símbolo (cf. supra § 17). A comemoração conjunta de Niceia poderá ser um caminho Ecumênico de enriquecimento recíproco, que oferecerá, ao longo do percurso, uma melhor compreensão do mistério, uma maior comunhão entre as tradições eclesiais e uma adesão mais forte à profissão comum da fé cristã.

45. Um dos objetivos de Niceia era estabelecer uma data comum para a Páscoa, para exprimir a unidade da Igreja em todo o Oikoumenē. Infelizmente, ainda não existe um acordo unânime neste poto. A divergência dos cristãos a respeito da mais importante festa de seu calendário cria danos pastorais nas comunidades, até ao ponto de dividir famílias, e causar escândalo entre os não cristãos, afetando o testemunho do Evangelho. É por isso que o Papa Francisco, o Patriarca Ecumênico Bartolomeu e outros líderes da Igreja têm apelado repetidamente pelo estabelecimento de uma data comum para a celebração da Páscoa. Em 2025, a Páscoa será celebrada na mesma data, tanto no Oriente como no Ocidente. Não seria esta uma oportunidade providencial para todas as comunidades cristãs continuarem a celebrar a Paixão e a Ressurreição de Cristo, a “festa das festas” (Matinas Pascais bizantinas), em comunhão também cronológica? Há uma série de propostas bastante realistas neste sentido. Sobre esta questão, a Igreja Católica permanece aberta ao diálogo e a uma solução ecumênica. Já no apêndice da Constituição Sacrosanctum Concilium, o Concílio Vaticano II não se opôs à introdução de um novo calendário, mas sublinhou que isso deveria ser feito “desde que haja um entendimento com todos os interessados, especialmente com os irmãos separados da comunhão com a Sé Apostólica”[60]. Note-se a importância que o mundo oriental atribui aos elementos estabelecidos na posteridade de Niceia para determinar a data da Páscoa: ela deve ser celebrada “no primeiro domingo após a lua cheia que se segue ou coincide com o equinócio da primavera”[61]. O domingo evoca a ressurreição de Cristo no primeiro dia da semana, enquanto a lua cheia a seguir ao equinócio da primavera recorda a origem judaica da festa, o 14 de Nissan, mas também a dimensão cósmica da ressurreição, uma vez que o equinócio da primavera evoca o momento em que a duração do dia prevalece sobre a da noite e a natureza revive depois do inverno.

46. É de notar que foi no Concílio de Niceia que a Igreja optou decisivamente por se separar da data da Páscoa judaica. O argumento de que o Concílio pretendia distanciar-se do judaísmo foi apresentado com base nas cartas do imperador Constantino, relatadas por Eusébio, que incluem justificações antijudaicas para a escolha de uma data de Páscoa não ligada ao 14 de Nissan[62]. No entanto, há que distinguir entre as motivações atribuídas ao Imperador e as dos Padres Conciliares. Em todo o caso, nada nos cânones do Concílio exprime esta rejeição do modo de proceder judaico. Não podemos ignorar a importância que tem para a Igreja a unidade do calendário e a escolha do domingo para exprimir a fé na ressurreição. Hoje, quando a Igreja celebra o 1700º aniversário de Niceia, estes são mais uma vez os objetivos de uma reflexão sobre a data da Páscoa. Para além da questão do calendário, seria desejável sublinhar sempre melhor a relação entre a Páscoa e o Pesaḥ na teologia, nas homilias como também na catequese, a fim de alcançar uma compreensão mais ampla e profunda do significado da Páscoa.

47. Na Vigília Pascal e em cada liturgia batismal, o Símbolo niceno-constantinopolitano é proclamado na sua forma mais solene, que é o diálogo. Esta profissão de fé, que é o fundamento da vida cristã individual e da vida da Igreja, encontrará toda a sua força se estiver enraizada na revelação feita aos nossos “irmãos mais velhos” e aos nossos “pais na fé” e vivida em comunhão visível por todos os discípulos de Cristo[63].

 

Capítulo 2

O símbolo de Nicéia na vida dos crentes
“Acreditamos como batizamos;
e rezamos como acreditamos”.

Prelúdio: a fé confessada na fé vivida

48. A fé professada em Niceia tem um rico conteúdo dogmático que foi decisivo para estabelecer a doutrina cristã. No entanto, o desafio desta doutrina era e continua a ser o de alimentar e orientar a vida dos fiéis. Neste sentido, é possível destacar um verdadeiro tesouro espiritual do Concílio de Niceia e do seu Símbolo, uma “fonte de água viva” da qual a Igreja é chamada a beber hoje e sempre. Foi para proteger o acesso a esta água viva que Santo Antão aceitou deixar o seu eremitério para testemunhar contra os arianos em Alexandria[64]. Este tesouro revela-se diretamente no modo como a profissão de fé nicena nasceu da lex orandi e foi por ela alimentada[65]. Além disso, os sínodos nunca pretenderam limitar os seus debates ao domínio especulativo das declarações de fé. Pelo contrário, seus participantes pretendiam discutir o conjunto da vida eclesial, a melhor maneira de acolher e praticar quotidianamente as verdades da fé e, inversamente, de regular o seu ensino sobre a ortopraxia litúrgica, sacramental e mesmo ética[66]. Em suma, os bispos levavam espiritualmente consigo para os concílios os membros do corpo da Igreja, com quem partilhavam a vida de fé e de oração e com quem cantavam o louvor e a glória do Pai, do Filho e do Espírito Santo, um só Deus. Para compreender o significado espiritual e teológico do dogma de Nicéia, precisamos explorar como ele foi recebido na prática litúrgica e sacramental, na catequese e na pregação, na oração e nos hinos do século IV.

1. Batismo e fé trinitária

49. Já antes de se ter desenvolvido teologicamente a doutrina da Trindade, a fé na Trindade estava na base da vida cristã celebrada no batismo. A profissão de fé batismal pronunciada na fórmula sacramental do batismo não exprimia simplesmente um mistério teórico, mas a fé viva que se referia à realidade da salvação dada por Deus e, portanto, ao próprio Deus. A fé batismal proporciona um “conhecimento” de Deus que é, ao mesmo tempo, um acesso ao Deus vivo. Assim, o apologista Atenágoras afirma: “Há [...] homens [...] que se deixam guiar unicamente pelo desejo de conhecer o verdadeiro Deus e seu Verbo, de saber o que é a unidade do Filho com o Pai, o que é a comunhão do Pai com o Filho, o que é o Espírito, o que é a união e a distinção das três pessoas assim confundidas, o Espírito, o Filho e o Pai” [67].

50. É por isso que a fórmula batismal, na qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo são colocados em pé de igualdade, constitui o argumento central contra Ário e os seus seguidores, muito mais do que o recurso à argumentação teológica. Isto é tão verdade para Ambrósio[68] e Hilário[69] como para Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Efrém, o Sírio[70]. Do mesmo modo, Atanásio insiste em que o Filho é nomeado na fórmula batismal não porque o Pai não seja suficiente, nem por mero acaso, mas porque :

Ele é o Verbo de Deus e a sua própria Sabedoria e, sendo a sua irradiação (apaugasma), está sempre com o Pai. Por isso, quando o Pai distribui a graça, só a pode dar no seu Filho, porque o Filho está no Pai como o resplendor da luz [...] Aquele que o Pai batiza, o Filho também batiza, e aquele que o Filho batiza é santificado no Espírito Santo[71].

51. Dito isto, para Atanásio e os Padres Capadócios, não se trata apenas de pronunciar a fórmula trinitária, mas o batismo pressupõe a fé na divindade de Jesus Cristo. Assim, o ensino da fé correta é necessário e faz parte da prática correta do batismo. Atanásio cita como base a formulação do preceito de Mt 28,19: “Ide... ensinai... e batizai” [72]. É por isso que Atanásio - tal como Basílio e Gregório de Nissa[73] - nega qualquer eficácia ao batismo ariano, porque aqueles que consideram o Filho uma criatura não têm uma concepção correta de Deus Pai: quem não reconhece o Filho também não compreende o Pai e não “possui” o Pai, porque o Pai nunca começou a ser Pai[74].

2. O Símbolo Niceno como confissão de fé

52. A confissão de fé nicena não só é a expressão da fé batismal, como pode ter vindo diretamente de um símbolo batismal da Igreja de Cesareia na Palestina (se damos crédito ao que relata Eusébio) [75]. Três adições teriam sido feitas: “...isto é, da substância do Pai”, “gerado, não criado”, e “consubstancial ao Pai (homoousios)”. Desta forma, fica estabelecido com completa clareza que aquele que “tomou carne por nós, homens... e sofreu” é Deus, homoousion tō Patri. No entanto, embora ele seja “da substância do Pai” (ek tēs ousias tou Patros), é distinto do Pai na medida em que é seu Filho. Por Ele, que “se fez homem para nossa salvação”, sabemos o que significa que o Deus Uno e Trino “é amor” (1Jo 4,16). Estes acréscimos são essenciais e marcam a originalidade e o contributo decisivo de Niceia, mas, ao mesmo tempo, deve ser constantemente sublinhado que o Símbolo, como símbolo de fé, está originalmente enraizado no contexto litúrgico, que é o seu ambiente vital e, portanto, é esse o contexto em que assume todo o seu significado. Não se trata certamente de uma exposição teórica, mas de um ato da celebração batismal, que se enriquece com o conjunto todo da liturgia e, por sua vez, a ilumina. Os nossos contemporâneos - por desconhecerem essas raízes litúrgicas e batismais - podem, por vezes, ter a impressão de que o Símbolo é uma afirmação muito teórica.

53. Neste sentido, a fé de Niceia permanece um “symbolon” (“ekthesis”, “pistis”), ou seja, uma confissão de fé. Distingue-se de uma interpretação ou de uma definição teológica técnica mais precisa, destinada a proteger a fé (“oros”, “definitio”), como a proposta, por exemplo, pelo Concílio de Calcedônia. Como símbolo, a confissão de Nicéia é uma formulação positiva e uma clarificação da fé bíblica[76]. Não pretende ser uma nova definição, mas antes uma evocação da fé dos apóstolos: “Cristo deu esta fé, os apóstolos proclamaram-na, os Padres de toda nossa Oikoumenē reunidos em Niceia transmitiram-na (paradosis)”[77].

54. Da mesma forma, é devido ao seu estatuto de confissão de fé e precisamente da fé apostólica, e não como definição ou ensinamento, que o Símbolo niceno é considerado como a prova decisiva da ortodoxia (pelo menos até ao final do século V). Por isso foi utilizado como texto de base nos concílios seguintes[78]. Assim, Éfeso e Calcedônia pretendiam ser interpretações do Símbolo de Nicéia: sublinhavam o seu acordo com Nicéia e opunham-se às posições assumidas pelos que discordavam de Nicéia. Quando a Confissão de Fé niceno-constantinopolitana foi lida no Concílio de Calcedônia, os bispos reunidos exclamaram: “Esta é a nossa fé. É nela que fomos batizados, é nela que batizamos! O Papa Leão acreditou assim, Cirilo acreditou assim”[79]. Note-se que a Profissão de fé pode ser expressa no singular - “eu creio” - mas também frequentemente no plural: “nós cremos”; do mesmo modo, a Oração do Senhor está no plural: “Pai Nosso...”. Minha fé é radicalmente pessoal e singular, mas, de igual modo, se inscreve radicalmente na fé da Igreja, enquanto comunidade de fé. O Símbolo niceno e o original grego do Símbolo niceno-constantinopolitano se abrem com o plural “cremos”, “testemunhando que naquele ‘Nós’, todas as Igrejas se encontravam em comunhão e todos os cristãos professavam a mesma fé”[80].

55. Como referimos no capítulo anterior, até hoje “Niceia” - “a confissão de fé dos 318 Padres Ortodoxos” - é considerada nas Igrejas Orientais como o Concílio por excelência, ou seja, não como “um Concílio entre outros”, nem mesmo como “o primeiro de uma série”, mas como a norma da fé cristã correta[81]. Os “318 Padres” são explicitamente mencionados na liturgia de Jerusalém. Além disso, nas Igrejas Orientais, ao contrário das Igrejas Ocidentais, Nicéia recebe uma comemoração própria no calendário litúrgico. É de notar que a confissão de fé teve, desde o iício, um peso diferente do atribuído às questões disciplinares. Enquanto as decisões por maioria são possíveis para as questões disciplinares, é a Tradição Apostólica que é decisiva para as questões de fé: “No que diz respeito à data da Páscoa, os Padres escreveram: ‘Está decidido’. No que diz respeito à fé, eles não escreveram: ‘Foi decidido’, mas: ‘Assim acredita a Igreja Católica!’ˮ[82].

3. Aprofundamento da pregação e da catequese

56. Os Padres do Oriente e do Ocidente não se contentaram em argumentar com a ajuda de tratados teológicos, mas também esclareceram a fé nicena em sermões dirigidos ao povo, a fim de proteger os fiéis contra interpretações errôneas, geralmente designadas pelo termo “ariano” - ainda que os “homoianos” do Ocidente no tempo de Agostinho diferissem muito dos “neo-arianos” do Oriente na sua argumentação. A visão teológica de que o Filho não é “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, mas apenas a criatura mais eminente do Pai, e que não é coeterno com Ele, foi reconhecida pelos Padres como uma ameaça persistente e combatida, mesmo independentemente de oponentes concretos. O prólogo do evangelho de João oferecia exatamente essa oportunidade para explicar a relação entre o Pai e o Filho, ou entre “Deus” e a sua “Palavra”, de acordo com a confissão de Nicéia[83]. Cromácio de Aquileia (ordenado bispo em 387/388, falecido em 407), por exemplo, transmitiu a fé nicena aos seus seguidores sem utilizar terminologia técnica[84]. Mesmo os Padres da Igreja que nutriam ceticismo de princípio em relação aos “debates teológicos”, tomaram uma posição muito clara contra a “impiedade ariana” (“asebeia”, “impietas”): os Arianos não compreendiam a “geração eterna do Filho”, nem a “igualdade-eternidade original” do Pai e do Filho[85]. Cometem mesmo um erro no seu monoteísmo ao aceitarem uma segunda divindade subordinada. A sua adoração é, portanto, pervertida e errônea.

57. Assim, nas suas catequeses, João Crisóstomo explica a fé batismal validamente formulada em Niceia e distingue a fé correta não só da doutrina homeusiana, mas também da doutrina sabeliana: os cristãos acreditam em Deus como “uma essência, três hipóstases” [86]. Agostinho apresenta um argumento semelhante nas suas instruções aos candidatos ao batismo[87]. A Oratio catechetica magna de Gregório de Nissa, cujas passagens mais extensas são dedicadas ao Verbo de Deus eterno e incarnado, pode ser considerada a obra-prima de uma catequese claramente destinada àqueles que a deviam transmitir, ou seja, bispos e catequistas. O tema não é apenas a relação entre o Filho-Palavra e o Pai (capítulos 1, 3, 4), mas também o significado da Encarnação como ação redentora (capítulo 5). Gregório quer deixar claro que o nascimento e a morte não são algo indigno de Deus ou incompatível com a sua perfeição (cap. 9 e 10) e explica a Encarnação em termos do amor de Deus pelos homens. Mas insiste sobretudo no fato de que o batismo cristão se realiza na “Trindade incriada”, isto é, nas três Pessoas coeternas. É só assim que o batismo confere a vida eterna e imortal: “Com efeito, quem se submete a um ser criado coloca, sem o saber, a sua esperança de salvação nesse ser e não na divindade” [88].

58. O cerne do debate é, de fato, mais uma questão existencial do que um problema teórico: o batismo está ligado ao “estabelecimento na filiação” (Basílio), ao “início da vida eterna” (Gregório de Nissa), à “salvação do pecado e da morte” (Ambrósio)[89]? Isso só é possível se o Filho (e o Espírito Santo) é Deus. Só quando o próprio Deus se torna “um de nós” é que existe uma possibilidade real de participarmos na vida da Trindade, ou seja, de sermos “divinizados”.

4. Oração ao Filho e doxologias

59. A profissão fé de Niceia serve de regra para a oração pessoal e litúrgica[90], que são marcadas por Niceia. Embora a “invocação do nome do Senhor (Jesus)” já esteja atestada nos escritos do Novo Testamento[91] e que, sobretudo, os hinos a Cristo[92] testemunhem a oferenda de louvor e adoração, a oração ao Filho tornou-se uma fonte de controvérsia na crise ariana.

60. Inspirando-se em alguns textos de Orígenes[93], os arianos do século IV, bem como os seguidores de Orígenes nos séculos V e VII, opuseram-se particularmente à oração litúrgica ao Filho. Os arianos tinham interesse em destacar as passagens da Escritura que mostram o próprio Jesus em oração, para sublinhar a sua inferioridade em relação ao Pai. Juntamente com a concepção (apolinarista), também muito difundida entre os arianos, segundo a qual o Logos toma o lugar da alma de Jesus, a subordinação do Logos ao Pai parecia assim provada. Para eles, portanto, a oração ao Filho era inadequada. A favor do seu ponto de vista, os Arianos argumentavam utilizando a redação tradicional da doxologia, que é de grande importância, particularmente nas liturgias orientais: “Glória e adoração ao Pai pelo (dia / per) Filho no (en / in) Espírito Santo”[94]. A diferença de preposições foi invocada como prova de uma diferença essencial entre as pessoas. Os arianos procuraram utilizar a liturgia - reconhecida como testemunha da fé da Igreja - para provar o que consideravam ser teologicamente justificado.

61. Por outro lado, os defensores de Niceia argumentavam que a prática da oração devia corresponder à fé, mas que esta, por sua vez, correspondia ao batismo. A fórmula batismal manifesta a igual dignidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Daí resulta que a oração - pessoal ou litúrgica - pode e deve ser dirigida também ao Filho. Embora não rejeitassem a antiga fórmula da doxologia, mas defendessem o seu significado ortodoxo[95], preferiam outras formulações e preposições: “tō Patri, kai...kai” (“ao Pai, e... e”), “tō Patri, dia...syn” (“ao Pai, pelo... com”), que também são atestadas na tradição bíblica e litúrgica[96]. Basílio refere-se assim, entre outros, ao antiquíssimo hino “Phōs hilăron” (talvez do século II), em que o Pai, o Filho e o Espírito são objeto de um cântico de adoração[97].

62. O princípio: “Devemos crer como somos batizados e, portanto, adorar como o batismo nos permite!”[98] aplica-se também à oração pessoal. A invocação de Jesus - tal como é praticada nas formas de oração a Jesus, especialmente nos círculos monásticos - é explicitamente justificada pela invocação de “homoousios tôi Patri”. “Quando dizemos 'Jesus'“, explica Chenouté, um Padre copta do século V, “a Santíssima Trindade também é nomeada”. Quando se invoca o Filho encarnado, ele não é invocado separadamente do Pai e do Espírito Santo. Quem não quiser rezar a Jesus está seguindo a “nova impiedade”; não entende nada da Trindade, nem entende nada de “Jesus” [99]. A maneira como se reza mostra aquilo em que se acredita.

63. A correção na oração tem uma dimensão soteriológica. É Gregório de Nissa quem faz a advertência mais forte a esse respeito: a esperança do crente é mais do que a moral, no sentido atual do termo, mas exprime-se também na oração. A esperança dirige-se para a divinização operada por Deus: se “a primeira grande esperança já não está presente naqueles que se deixam levar pelo erro doutrinal”, isto tem por consequência que “não haveria vantagem em comportar-se corretamente com a ajuda dos mandamentos”. E Gregório continua

Assim, nós somos batizados como o recebemos, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; acreditamos como somos batizados, pois convém que a fé esteja de acordo com a confissão; glorificamos como acreditamos, pois não é natural que a glória combata a fé. Mas aquilo em que cremos também glorificamos. Além disso, como a fé está no Pai, no Filho e no Espírito Santo, e como a fé, a glória e o batismo são mutuamente dependentes, não se distingue entre a glória do Pai, do Filho e do Espírito Santo[100].

64. A adição da doxologia trinitária no final de cada salmo, cuja ordem é atribuída ao Papa Dâmaso (384 d.C.), pode ser entendida neste sentido. Cassiodoro observa que todas as heresias são assim reduzidas a nada:

A Mãe Igreja acrescenta o louvor da Trindade a todos os salmos e cânticos. Ela presta homenagem Àquele de quem estas palavras provêm, e assim corta a grama sob os pés das heresias de Sabélio, Ário, Mani e outros[101].

É o caso, nomeadamente, do aditamento “sicut erat in principio...”, entendido como uma profissão inequívoca de fé anti-ariana[102].

5. A teologia nos hinos

65. Finalmente, os hinos são uma expressão da profissão de fé nicena que encontrou um lugar na vida do crente, informada por Niceia. Assim, muitos hinos terminam com a doxologia trinitária. Além disso, o confronto com a heresia ariana desempenhou um papel importante no desenvolvimento da poesia cristã. Foi primeiramente no Oriente que se compuseram hinos e cânticos em resposta aos poemas de propaganda dos grupos heterodoxos[103]. Quanto ao Ocidente, pode-se mesmo dizer que o seu contributo teológico mais importante no século IV foi a composição de hinos.

66. Além de João Crisóstomo, foi sobretudo Efrém, o Sírio (306-373), que, na sua poesia teológica (que mais tarde marcou toda a literatura siríaca clássica) e sobretudo nos hinos De fide e De nativitate, cantou o mistério de Cristo: Cristo é Deus, apesar da fraqueza da sua natureza humana; a kenosis de Cristo é um milagre tão grande só porque ele é Deus e permanece Deus neste esvaziamento[104]. É com profunda piedade que Efrém descreve as relações intra-trinitárias: o Filho está no Pai “antes de todos os tempos”, é “igual ao Pai e, no entanto, distinto dele” [105]. Utiliza prontamente a imagem do sol, da sua luz e do seu calor, que estão ligados na unidade[106]. Refere-se constantemente aos três “nomes” a que corresponde a realidade divina e nos quais “consistem o nosso batismo e a nossa justificação” [107]. Faz tudo isto deixando claro o contexto da fé nicena, pois cita “o glorioso sínodo”, referindo-se claramente a Niceia[108]. Outros teólogos-poetas siríacos do século V, como Isaac de Antioquia e Mar Balai, compuseram sermões e cânticos métricos dirigidos ao próprio Cristo, glorificando-o explicitamente com atributos divinos: “Louvado seja Ele [Jesus Cristo] e seu Pai, e glória ao Espírito Santo” - “Louvado seja Ele, o Altíssimo, que veio para nos redimir, louvado seja Ele, o Todo-Poderoso, cujo simples movimento de cabeça decide o mundo” [109].

67. Hilário aprendeu a cantar hinos durante o seu exílio e introduziu-os na Gália; Ambrósio também confessa ter adotado o “costume do Oriente” durante os ferozes conflitos com os arianos em Milão, em 386-87. O Filho é “sempre Filho, tal como o Pai é sempre Pai. De que outra forma poderia o Pai ter este nome se não tivesse um Filho?”, sublinha Hilário no hino Ante saecula qui manens, no qual descreve o “duplo nascimento do Filho, que nasceu do Pai, para o Pai que não conhece nascimento, e nasceu da Virgem Maria, para o mundo”.

68. Ao contrário dos hinos altamente teológicos de Hilário, que dificilmente encontravam lugar na liturgia, os hinos de Ambrósio rapidamente se tornaram famosos em toda parte e deram um poderoso encorajamento à fé, como era o objetivo de Ambrósio. O seu hino matutino Splendor paternae gloriae pode ser visto como um comentário à Confissão de Nicéia. Particularmente notáveis são as estrofes finais de alguns hinos, que sublinham a igualdade do Filho com o Pai: “Aequalis aeterno Patri...”, ou que se dirigem ao Filho: “Iesu, tibi sit gloria ... cum Patre et almo Spiritu”. Em um hino muito curto, talvez da autoria de Ambrósio, a confissão de Deus uno em três pessoas é quase estabelecida em verso como uma frase-chave para os fiéis: “O lux beata trinitas, et principalis unitas...”.

69. Além dos de Ambrósio, são importantes para a cristologia sobretudo os hinos de Prudêncio (Aurelius Prudentius Clemens, 348-415/25). O poeta espanhol ficou particularmente impressionado com a verdadeira divindade e humanidade do Redentor, no qual se funda a nossa nova criação

Christus forma Patris, nos Christi forma et imago;
Condimur in faciem Domini bonitate paterna
Venturo in nostram faciem post saecula Christo
[110].

 

Capítulo 3
Nicéia como evento teológico
e como evento eclesial

70. Comemorar Niceia é compreender como, após 1700 anos, o Concílio permanece novo, dessa novidade escatológica inaugurada na manhã de Páscoa, que continua a renovar a Igreja. É um evento no sentido mais forte, um ponto de viragem que se inscreve no tecido da história com as suas concatenações, mas é também um ponto de concentração, introduzindo uma verdadeira novidade e exercendo uma influência decisiva sobre o que se segue. Consoante à língua, o termo “evento” refere-se ao que acontece, ad-ventus (avènement, Avent, avvenimento), ou ao que vem de (évènement, event), à produção de um fato (acontecimiento) ou ao aparecimento do novo (Ereignis). Assim, Niceia é a expressão de uma viragem no pensamento humano, provocada pela Revelação do Deus Uno e Trino em Jesus, que fecunda o espírito humano dando-lhe novos conteúdos e novas capacidades. É um “evento de Sabedoria”. Do mesmo modo, Niceia, que mais tarde foi qualificado como o primeiro concílio Ecumênico, foi também a expressão de uma viragem no modo como a Igreja se estrutura e assegura sua unidade e a verdade da sua doutrina através da confissão de fé: foi um “evento eclesial”. Obviamente que, em ambos os casos, a novidade se funda em um processo prévio, uma realidade dada, a mesma que é transformada pela novidade. O Evento de Sabedoria pressupõe a cultura humana, assume-a, por assim dizer, para a purificar e transfigurar. O Evento eclesial baseia-se na evolução anterior das estruturas da Igreja dos primeiros séculos, ela própria enraizada na herança judaica e greco-romana.

71. Ora, a fonte deste duplo evento é outra, de iniciativa divina, o evento da Revelação de Deus, o “evento Jesus Cristo”. Esta é a Novidade por excelência: o Novus é o Novum[111]. Trata-se da própria Revelação, uma vez que o evento de Sabedoria e o evento eclesial fazem parte da transmissão deste dom primordial[112]. Nele, Deus faz aliança com um povo para fazer aliança com todos os povos; assume uma humanidade para assumir toda a humanidade. Niceia é expressão e fruto da novidade da Revelação, e é por isso que o Concílio de 325 oferece um paradigma para todas as etapas da renovação do pensamento cristão, bem como das estruturas da Igreja. Além disso, pelo fato de Nicéia nascer do Novum que é Cristo, pode ser compreendida de forma sempre renovada e enriquecer continuamente a vida da Igreja. Trata-se, portanto, de explorar primeiro o acontecimento fonte, o evento Jesus Cristo, e depois examinar as suas consequências para o pensamento humano e para as estruturas eclesiais.

1. O evento Cristo: “A Deus, ninguém jamais viu. O Deus Unigênito [...] foi quem o revelou” (Jo 1,18).

1.1 Cristo, Verbo encarnado, revela o Pai

72. O Símbolo niceno é a expressão, a colocação em palavras, de um acesso inaudito, seguro e plenamente salvífico a Deus, oferecido pelo evento Jesus Cristo. Na Encarnação, na vida, na Paixão, na Ressurreição e na Ascensão ao Céu do Verbo consubstancial ao Pai, testemunhadas na Sagrada Escritura e na fé da Igreja Apostólica, Deus semper major oferece, por sua própria iniciativa, um conhecimento e um acesso a si mesmo que só Ele pode dar, e que estão, eles próprios, para além do que os seres humanos podem imaginar e até esperar[113]. De fato, o Novo Testamento transmite à Igreja de todos os tempos o testemunho que Jesus deu de si mesmo e que o Pai, na luz e na força do Espírito Santo, confirmou definitivamente na Páscoa da morte, ressurreição e ascensão ao céu do Filho feito carne, da efusão do Espírito, na plenitude dos tempos, “propter nos et propter nostram salutem[114]. Assim, a fé da Igreja testemunha que Jesus, o Unigênito, revelou Deus, o Pai, a quem “ninguém jamais o viu” (Jo 1,18; cf. Jo 3,16.18 e 1Jo 4,9). Este testemunho está resumido na resposta que Jesus deu ao apóstolo Filipe, que lhe pedira: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso basta”. Jesus respondeu-lhe

Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me conheces? Quem me viu, viu o Pai. Como tu dizes: “mostra-nos o Pai?” Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos falo, não as falo por mim mesmo, mas é o Pai que, permanecendo em mim, realiza as suas obras (Jo 14,8-11).

73. Se Jesus nos faz ver o Pai, tudo nele é acesso ao Pai. Cristo, na sua humanidade frágil e vulnerável, é a verdadeira expressão de Deus Pai: “vê-lo é ver o Pai” (Jo 14,9) [115]. Por conseguinte, Deus não se escondeu primeiro no Gólgota sob a impotência do Crucificado, para depois se manifestar na manhã de Páscoa, finalmente Ele próprio, finalmente todo-poderoso. Pelo contrário, o amor de Jesus Cristo, que se deixa crucificar e que, sofrendo a morte física, desce ao lugar onde o pecador é prisioneiro do pecado (o šəʾôl ou inferno), é a revelação do Amor do Deus Trino, que não opera pela força, mas é precisamente mais forte do que a morte e o pecado. Foi precisamente diante da cruz que Marcos fez com que um centurião pagão dissesse: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). Como disse o Papa Bento XVI em seu livro sobre Jesus

Na cruz, faz-se perceptível sua condição de Filho, ser um com o Pai. A cruz é a verdadeira “altura”, a altura do amor “até o fim” ( Jo 13,1); na cruz, Jesus se encontra à “altura” de Deus, que é Amor. Ali, pode ser “reconhecido”, pode-se compreender o “Eu sou”. A sarça ardente é a cruz. A suprema instância de revelação, o “Eu sou” e a cruz de Jesus são inseparáveis[116].

74. O conhecimento de Deus por Cristo não oferece meros conteúdos doutrinais, mas leva-nos à comunhão salvífica com Deus, porque nos mergulha, por assim dizer, no próprio coração da realidade, ou melhor, da pessoa a ser conhecida e amada. O prólogo do Evangelho de João é expressão da mais alta contemplação do mistério de Deus, manifestado a nós em Jesus, para que possamos entrar, na graça do Espírito Santo derramado “sem medida” (Jo 3,34), na própria vida de Deus Uno e Trino, revelada pelo Logos. A figura deste Logos faz eco não só do Logos divino discernido pelo pensamento grego, mas também, de forma ainda mais profunda, da herança veterotestamentária da Palavra de Deus, o Dābār testemunhado pelo Antigo Testamento. Com efeito, a revelação feita a Israel e transmitida nas Escrituras introduz-nos já num conhecimento radicalmente novo de Deus que inaugura este acontecimento da Revelação. Este Logos, o Filho, “Deus de Deus”, que está com Deus desde o princípio, como sua Palavra que o exprime em toda a verdade, é também Deus como o Pai. Na plenitude dos tempos, o Logos “se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14), para que aqueles que o acolhem recebam “o poder (exousia) de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,14). Ao admitir os seres humanos à plena comunhão consigo, o Logos feito carne tornou-os “participantes da natureza divina”[117], conforme a afirmação textual da Escritura (2Pd 1,4).

75. Este conhecimento e esta comunhão com Deus, autênticos e inauditos, levam também a uma comunhão salvífica com os irmãos e irmãs na humanidade amada por Deus, pois o evento Jesus Cristo é inseparavelmente comunhão com Deus e com cada ser humano. A fé da Igreja Apostólica testemunha esta comunhão em Cristo e por Cristo, na comunhão trinitária:

O que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam da Palavra da Vida [...], nós vos anunciamos, para que estejais em comunhão conosco. A nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Nós vos escrevemos estas coisas, para que a nossa alegria seja completa (1Jo 1,1.3-4).

A tradição teológica sublinha que a caridade nos faz amar a Deus e ao próximo, na medida em que ele é amigo de Deus[118]. Podemos pensar que as três virtudes teologais nos introduzem num conhecimento pleno e radicalmente novo de Deus e na comunhão com ele. Mas, além disso, de acordo com o acesso renovado a Deus que elas oferecem, abrem-nos um caminho de fé para a fraternidade, uma esperança inaudita no próximo, e uma caridade que perdoa tudo e impele a nos doar.

1.2 “Temos o pensamento (νοῦς) de Cristo” (1Cor 2,16): analogia da criação e analogia da caridade

76. O evento Jesus Cristo, ao dar-nos acesso a Deus de um modo incomparável, suscita e implica uma “via” de acesso também ela nova e única: acolher o Símbolo na fé e com compreensão, ou melhor, acolher o Deus que nele se manifesta, conduz-nos ao olhar de Cristo consubstancial ao Pai, ao “pensamento” ou à própria mens de Cristo e à sua relação com o Pai e com os outros. “Nós temos o pensamento de Cristo (noun Christou)” [119], exclama São Paulo (1Cor 2,16). É um grito de admiração. Também aqui, Niceia mostra a imensidão do dom de Deus. Mas indica também que esta é a única maneira de aceder ao que o Símbolo exprime, tanto na letra como no espírito. Não podemos contemplar o Deus de Jesus Cristo, a redenção que nos é oferecida, a beleza da Igreja e da vocação humana, e participar nelas, sem “ter o pensamento de Cristo”. Não se trata simplesmente de conhecer Cristo, mas de entrar na própria inteligência de Cristo, no sentido de um genitivo subjetivo. Não se pode aderir plenamente ao Símbolo, nem confessá-lo com todo o ser, sem “a sabedoria que não é deste mundo”, “revelada pelo Espírito Santo”, o único que “perscruta as profundezas de Deus” (1Cor 2,6.10):

Na fé, Cristo não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do amor de Deus, mas é também Aquele a quem nos unimos para poder acreditar. A fé não só olha para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus olhos: é uma participação no seu modo de ver. [...] A vida de Cristo, a sua maneira de conhecer o Pai, de viver totalmente em relação com Ele abre um espaço novo à experiência humana, e nós podemos entrar nele[120].

77. Isto é possível porque Cristo vê o Pai com os seus olhos humanos e convida-nos a entrar no seu olhar. Por outro lado, este caminho exige uma profunda transformação do nosso pensamento, da nossa mente, que deve implicar conversão e elevação: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da mente” (Rm 12,2). E é precisamente isso que o evento Jesus Cristo traz: a mente, a vontade e a capacidade de amar são literalmente salvas pela Revelação, que Niceia professa. São purificadas, orientadas e transfiguradas. Ganham novas forças, formas e conteúdos. As nossas faculdades só podem entrar em comunhão com Cristo conformando-se com Ele, num processo que torna os crentes “semelhantes (symmorphizomenos)” (Fl 3,10) ao Crucificado Ressuscitado até nas suas mens. Este novo modo de pensar caracteriza-se pelo fato de ser inseparavelmente conhecimento e amor. Como salienta o Papa Francisco: “São Gregório Magno escreveu que 'amor ipse notitia estˮ, o próprio amor é conhecimento, traz em si uma nova lógica”[121]. É um conhecimento misericordioso e compassivo, uma vez que a misericórdia é a substância do Evangelho e reflete o próprio caráter do Deus de Jesus Cristo, professado no Símbolo niceno[122]. A mens renovada implica uma compreensão da analogia revisitada à luz do mistério de Cristo. Ela reúne o que poderíamos chamar a “analogia da criação”, em virtude da qual percebemos a presença divina na paz da ordem cósmica[123], e o que poderíamos chamar a “analogia da caridade”[124]. Esta analogia, invertida, por assim dizer, perante o mistério da iniquidade e da destruição, mas iluminada pelo mistério mais forte da Paixão e da Ressurreição de Cristo, discerne a presença do Deus de amor no coração da vulnerabilidade e do sofrimento. Esta sabedoria de Cristo é descrita na primeira Epístola aos Coríntios como aquela que “Deus converteu em loucura a sabedoria deste mundo”:

Cristo não me enviou para batizar, mas para evangelizar; não com a sabedoria da palavra, para que não seja aniquilada a cruz de Cristo. De fato, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que são salvos, para nós, ela é poder de Deus. Está escrito: “destruirei a sabedoria dos sábios e a inteligência dos inteligentes confundirei”. Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o argumentador deste mundo? Aliás, Deus não converteu em loucura a sabedoria deste mundo? De fato, pela sabedoria de Deus, o mundo não foi capaz de reconhecer a Deus por meio da sabedoria, mas por meio da loucura da pregação, Deus quis salvar os que creem (1Cor 1,17-21).

Esta conversão e transfiguração não podem ocorrer sem a graça. A inteligência humana revela-se como constitutivamente ordenada à graça e depende da graça para ser plenamente ela mesma, tal como a própria pessoa humana[125]. É isto que nos permite compreender como as faculdades humanas, restituídas a si mesmas e transfiguradas pelo evento Jesus Cristo, são levadas à sua plenitude, desdobrando-se nas formas da fé, da esperança e da caridade, primícias, neste mundo, da vida da glória: “tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus” (Fl 2,5).

1.3 Ingresso teológico no conhecimento do Pai através da oração de Cristo

78. Como é que podemos entrar na “mente de Cristo” oferecida pelo evento Jesus Cristo? Isto é possível porque Jesus Cristo não é apenas um mestre ou um guia, mas a própria Revelação e Verdade de Deus; quem o recebe é mais do que um simples destinatário de instrução. Como a pessoa do Ressuscitado não é um objeto do passado, quem quiser compreender o mistério íntimo de Jesus, a revelação de Deus na sua humanidade, deve deixar-se incluir na sua relação de comunhão com o divino Pai. Isto se dá através da vida teologal, da leitura das Escrituras na Igreja, da oração pessoal e litúrgica, especialmente da Eucaristia.

79. A participação por graça na oração de Cristo é a via régia para o reconhecimento de Cristo, que revela o conhecimento do Pai (“Meu Pai e vosso Pai”, em Jo 20,17). Joseph Ratzinger / Papa Bento XVI declara: “Como a oração é o centro da pessoa de Jesus, é participando de sua oração que podemos conhecê-lo e compreendê-lo” [126]. Em outras palavras, o conhecimento de Cristo começa com a entrada da pessoa que o reconhece no ato de oração de Jesus: “Onde não há relacionamento com Deus, fica incompreensível mesmo Aquele, que no seu mais íntimo não é outra coisa que relação com Deus, com o Pai”[127]. E o que se aplica a cada crente aplica-se também à Igreja no seu conjunto. Só enquanto comunidade de oração inserida na relação de Jesus com o Pai, a Igreja é o “nós” que reconhece Cristo tal como é evocado em Jo 5,18-20 e em 1Jo 3,11[128]. Mais uma vez, é isto que está em jogo nas afirmações cristológicas do Símbolo: “A expressão dogmática fundamental ‘Filho consubstancial’, na qual podemos resumir todo o testemunho dos antigos concílios, não faz senão traduzir o fato da oração de Jesus em linguagem filosófico-teológica, nada mais”[129]. A fé expressa por Niceia nasce da relação de Jesus com o Pai e leva-nos a ela, para oferecer aos seres humanos e à Igreja a participação no conhecimento e na comunhão de Jesus com o Pai e o Espírito Santo.

2. O evento de Sabedoria: algo novo para o pensamento humano

2.1 A revelação enriquece e alarga o pensamento humano

80. Ao estabelecer a fé cristológica e trinitária, o Símbolo niceno inscreve-se num movimento de fecundação do pensamento humano, de “alargamento da razão”, através da Revelação no seu processo de transmissão[130]. De fato, o acesso incomparável a Deus proporcionado pelo evento Jesus Cristo, bem como a participação no pensamento (phronēsis) e na oração de Cristo, não podem deixar de ter um impacto decisivo no pensamento e na linguagem humana. Trata-se de um “Evento de Sabedoria”, através do qual estes devem ser e são alargados pela Revelação para que esta se possa exprimir neles. E, neste mesmo movimento, testemunham o fato de serem capazes de se deixar conduzir para além de si mesmos. Na história deste evento de Sabedoria, Niceia constitui um ponto de viragem importante, “um caminho novo e vivo” (Hb 10,20), cuja importância decisiva Pavel Florensky compreendeu e exprimiu com palavras vigorosas:

É impossível não estremecer ao recordar aquele momento único, para sempre significativo pela sua importância filosófica e dogmática, em que o trovão do “Homoousios” soou pela primeira vez na Cidade da Vitória [Nicéia]. Não se tratava de uma questão particular de teologia, mas de uma definição radical da Igreja de Cristo. Este termo, por si só, não só exprime o dogma cristológico, mas também fornece uma avaliação espiritual das regras da razão. O racionalismo foi condenado à morte. Pela primeira vez, o novo princípio da atividade racional foi proclamado urbi et orbi[131].

O Logos que é Cristo encarnado, Filho do Pai na comunhão do Espírito Santo, mostra que ele próprio é a medida de todo o logos humano, que ele pode animar e expandir, mas do qual ele pode também ser o juiz, pondo-o em crise (krisis) no sentido estrito do termo. De fato, é impressionante observar como Atanásio, em um juízo lapidar, considera que a rejeição da plenitude da figura de Cristo por parte de Ário constitui uma negação da razão, do logos tout court: “Negando o Logos de Deus, vêem-se privados de todo o logos” [132]. No fundo, o evento de Sabedoria produzido pelo evento Jesus Cristo introduz a razão e o pensamento humanos na sua vocação mais alta e mais verdadeira. Devolve-o, por assim dizer, a si mesmo. De tal modo que, como veremos, o homoousios não é um simples exemplar de interculturalidade, mas pertence a um evento prototípico de sabedoria, inaugural e fundacional da Igreja na sua apostolicidade.

81. O evento Jesus Cristo torna possível uma nova ontologia, com as dimensões do Deus uno e trino e do Logos encarnado. A razão humana já se tinha deixado abrir e penetrar pelo mistério, tornado acessível pela revelação da criação ex nihilo (2Mc 7,28; Rm 4,17), da transcendência ontológica de um Deus que é mais íntimo de cada criatura do que ela própria[133]. Ela se renova de alto a baixo quando é informada pelo sentido profundo dado a todas as coisas pelo mistério do Deus Uno e Trino que é amor (1Jo 4,8.16) - a alteridade, a relação, a reciprocidade, a interioridade mútua manifestam-se doravante como a verdade última e as categorias estruturantes da ontologia. Com isso, o ser ilumina-se e mostra-se ainda mais rico do que parecia nas suas primeiras versões filosóficas, por mais profundas e complexas que fossem. Além disso, Niceia, que parte da questão cristológica e soteriológica para enunciar o Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, é um bom reflexo do modo como a fenomênico cristológico motiva a inventio da doutrina trinitária, através da dinâmica entre a ordem da descoberta, cristológica e pneumatológica, colocada no seu centro, e a ordem da realidade trinitária, que a estrutura. Niceia acelerou a reflexão cristã sobre a teo-logia, ou seja, a exploração da “Trindade imanente”. Uma vez que o mistério de Cristo, realizado na história e numa humanidade singular, dá acesso a Deus, a matéria e a carne, o tempo e a história, a novidade, a finitude e a fragilidade ganham, elas próprias, as suas cartas de nobreza e a sua consistência na expressão do ser. De fato, através da Revelação, o ser revela-se também semper major.

82. O evento de Sabedoria implica evidentemente uma renovação da antropologia, uma vez que o evento Jesus Cristo lança uma nova luz sobre o ser humano. Mencionemos brevemente estes aspectos, desenvolvidos no primeiro capítulo deste documento[134]. A antropologia da Bíblia obriga-nos a rever o conceito de ser humano, a partir da nobreza da matéria e do singular. O Criador, no Gênesis, quis cada indivíduo e o “gravou” nas palmas das suas mãos (Is 49,16). Além disso, Jesus tem cada ser humano como seu irmão e sua irmã, porque o acontecimento da Encarnação enobreceu cada ser humano, individualmente, de um modo insuperável e imprescritível. Quando o Símbolo niceno-constantinopolitano declara que Jesus Cristo, como verdadeiro homem, é Filho de Deus e, como tal, “igual” a Deus Pai, cada ser humano - qualquer que seja a sua origem, nação, talentos ou formação - é dotado de uma dignidade que obriga a inteligência humana a pensar de forma nova, a ultrapassar os limites de uma visão meramente natural. Há uma dignidade propriamente cristológica dos seres singulares.

83. De forma semelhante ao que acontece quando se trata de entrar no “pensamento de Cristo”, o alargamento da ontologia e da antropologia implica uma conversão e pode deparar-se com a resistência do pensamento, habituado aos seus limites. O evento de Sabedoria obriga-nos a ter em conta não só a “analogia da criação”, mas também a “analogia da caridade”. Perante a kenosis da Encarnação e da Paixão de Cristo, perante o sofrimento e o mal que afetam a humanidade, o espírito humano tropeça nos seus limites. Coloca-se a questão: porque é que o Pai onipotente parece ter observado primeiro, do alto, a via-sacra do Filho sofredor e só atuado depois da sua morte? Porque é que não respondeu imediatamente à oração no Jardim das Oliveiras, apresentada com o suor do sangue do medo: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice...” (Mt 26,39b)? De fato, a igualdade de essência do Filho encarnado e crucificado com o Pai, professada no Símbolo niceno, convida o pensamento humano a converter-se a si mesmo e ao significado do termo “onipotência”. O Deus Uno e Trino não é primeiro onipotente e somente depois amoroso; pelo contrário, a sua onipotência é idêntica ao amor que se manifestou em Jesus Cristo. De fato, o que Jesus viveu, como atesta o NT, é - através da ação do Espírito - a revelação na história, ao nível da economia trinitária, da relação e da realidade intratrinitária imanente em Deus[135]. Deus é verdadeiramente Deus quando a sua onipotência amorosa nada impõe, mas antes dá ao seu parceiro de aliança, o homem, a capacidade de se ligar a ele livre e gratuitamente. Deus está em sintonia com o seu próprio ser quando não converte à força a humanidade pervertida pelo pecado, mas a reconcilia consigo através dos acontecimentos de Belém e do Gólgota. Em tudo isto, os nossos modos de ver humanos são chamados a deixar-se transfigurar profundamente por Cristo: “Os teus pensamentos não são os meus pensamentos” (Is 55,8; ver também Mt 16,23).

2.2 Um evento cultural e intercultural

84. Se o evento Jesus Cristo renova o pensamento recriado segundo um evento de Sabedoria, também renova, purifica, fecunda e alarga a cultura humana. De fato, o Concílio de Niceia, que, para a Igreja espalhada por todas as nações, exprimiu a fé cristã em língua grega e adotou um termo derivado da filosofia grega, constitui, sem dúvida, um acontecimento cultural. É necessário que a fé assuma a cultura humana, tal como assume a natureza humana, uma vez que natureza e cultura são constitutivas do ser humano e, portanto, inseparáveis. O Papa Francisco lembra-nos que “o ser humano está sempre culturalmente situado” [136]. Porque o homem é um ser relacional e social que faz parte da história, é através da cultura que ele atinge a plenitude da sua humanidade[137]. Além disso, a Revelação, que estabelece a comunhão entre Deus e o ser humano, precisa de destinatários que tenham a sua própria consistência para a acolherem em plena liberdade e responsabilidade. Daí a eleição do povo das doze tribos de Israel, que teve de se distinguir de todos os outros povos e de aprender penosamente a separar a verdade do erro, antes de mais para seu próprio bem. Daí Jesus Cristo, em quem o Filho de Deus se tornou verdadeiramente humano, um hebreu, um galileu, cuja humanidade traz as marcas culturais do percurso histórico do seu povo. Daí a Igreja, constituída por todas as nações. Assim, partindo do princípio tomista, “a graça supõe a natureza”, e ampliando-o, o Papa Francisco acrescenta: “a graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura daqueles que o recebem” [138].

85. Esta assunção da cultura pela Revelação implica uma certa reciprocidade de influência entre ambas, apesar da sua assimetria. Assim como o espírito humano é capaz de se transfigurar, também a cultura tem a vocação de se deixar iluminar pela Revelação, a ponto de poder acolher, ao preço da conversão, a sabedoria do Crucificado: “que sejam impregnados pela virtude do Evangelho os modos de pensar, os critérios de julgar e as normas de agir; numa palavra, é necessário que toda a cultura do homem seja penetrada pelo Evangelho” [139]. No entanto, a fé não é alheia às culturas em que é vivida, pois desde o Pentecostes a fé cristã inclui a certeza de que não há uma única cultura humana que não aguarde e espere a sua realização a partir da visita do Verbo de Deus, que difundiu ele mesmo as semina Verbi em todas as culturas à espera da sua visitação[140]. É assim que elas se tornam plenamente elas mesmas. É, portanto, a partir do interior, da sua abertura ao verdadeiro, ao bom e ao belo, que a Revelação os purifica e eleva. Mas depois, as culturas e as línguas assumidas e transfiguradas pela novidade da Revelação permitem enriquecer e clarificar a expressão da fé. Esta reciprocidade verificou-se ao longo dos séculos na fecundação da língua, da poesia e da arte pela Bíblia, cuja compreensão é ela própria iluminada pela sua difração noutras palavras e visões do mundo. É também o que acontece em Niceia no uso de homoousios, que clarifica a compreensão da Igreja sobre a filiação de Jesus Cristo, ao mesmo tempo que transfigura o termo que assume.

86. Nesta assunção da cultura, um lugar único e providencial deve ser reservado à relação entre a cultura hebraica e a cultura grega. O homoousios será visto aqui como fruto de uma síntese particularmente forte entre a cultura semita, já tocada e transfigurada pela Revelação, mas também moldada pelos encontros e desencontros com povos de outras culturas - egípcios, cananeus, mesopotâmicos, romanos - e o mundo grego. Durante mais de três séculos antes do nascimento de Jesus e até ao século III d.C., o ensino e a vida intelectual do judaísmo helenístico tinham sido expressos não só em aramaico, mas também em grego, tendo a Septuaginta como centro de gravidade. O ensinamento de Jesus foi registado e transmitido em grego, para comunicar o Evangelho a todos na língua universal da bacia mediterrânica, mas também porque o Novo Testamento faz parte da história da relação do povo judeu com a cultura e a língua gregas. Tal como na Septuaginta, há influências em ambas as direções. Por exemplo, o panta ta ethnē de Mt 28,19 traduz a antiga ideia judaica de todas as nações afluindo a Jerusalém, e măthētēs (discípulos-estudantes) traduz o aramaico talmudim. Por outro lado, os evangelistas utilizam o grego em uso nos tribunais para interpretar o julgamento e a paixão de Jesus, o autor dos Atos baseia-se na poesia épica da Odisseia para narrar as viagens de Paulo, e Paulo faz frequentemente eco de elementos da filosofia estoica, tal como certas passagens do NT apresentam vestígios de um vocabulário ontológico grego[141]. Era natural que o cristianismo nascente desse continuidade a esta síntese do pensamento semita e grego, em diálogo com autores judaico-helénicos e greco-romanos, para interpretar as Escrituras e desenvolver o seu próprio pensamento. A riqueza da expressão grega do judaísmo e do cristianismo pode fazer pensar que houve uma dimensão fundadora neste enxerto da cultura grega na cultura hebraica, que permitiu explicar em grego a unicidade e a universalidade da salvação em Jesus Cristo face à razão filosófica[142]. Evidentemente, toda uma parte dos cristãos, sobretudo fora das fronteiras do Império Romano, não pertencia a esta área cultural e utilizou o seu próprio gênio a serviço da expressão da fé no mundo siríaco da Armênia e do Egito, mas também ela se situou frente ao pensamento grego, deixando-se inspirar por ele e tomando distância com relação a ele.

87. O Concílio de Niceia não é apenas um acontecimento de assunção e fecundação da cultura pela Revelação, mas é também a ocasião de encontros interculturais. Este encontro de culturas é um aspeto importante do evento de Sabedoria realizado pelo evento Jesus Cristo, de tal modo que a Revelação conecta e põe em comunhão as culturas entre si, tornando possível o mais alto grau de interculturalidade. O intercâmbio e a fecundação mútua são parte constitutiva de todas as culturas, que só existem no processo em que estão em contato umas com as outras e, assim, evoluem, enriquecem-se e, por vezes, opõem-se e põem-se em perigo. No entanto, o poder renovador da Revelação confere à intensidade destas relações um salto qualitativo. Por um lado, ao dar acesso à fonte transcendente da verdade e do bem, à raiz da universalidade do espírito humano que torna possível a sua comunicação, ela abre plenamente o espaço comum dos seus encontros e trocas[143]. Por outro lado, o evento Jesus Cristo é um poder de conversão e de libertação face às forças de confinamento e de oposição ao outro contidas na vida dos povos e das culturas. Só uma cultura “salva”, por assim dizer, é capaz de se ultrapassar a si mesma sem se perder, e de se abrir aos outros para se enriquecer com eles e para os enriquecer. A escuta da Palavra de Deus e da Tradição, e, portanto, da palavra do Outro, habitua a mente e as culturas, por assim dizer, à escuta dos outros[144]. Isto não conduz a uma justaposição externa e empobrecida de culturas, nem a uma fusão num todo indistinto, mas a uma interculturalidade resgatada e elevada, em que cada cultura se supera a si mesma, ao mesmo tempo que se reforça na sua própria consistência, em virtude de uma forma de pericorese das culturas[145]. É por isso que é preciso ter em conta tanto a novidade real como a “elevação” das culturas, como o fato de que aqueles que aceitam o Evangelho de Cristo conservam a sua identidade cultural e são reforçados por ela[146]: “Os cristãos não se diferenciam dos outros homens nem pela pátria nem pela língua nem por um gênero de vida especial. […] seguem os costumes da terra, quer no modo de vestir, quer nos alimentos que tomam, quer em outros usos; mas o seu modo de viver é admirável e passa aos olhos de todos por um prodígio” [147].

88. A interculturalidade é, de fato, a manifestação de uma questão mais profunda, que constitui o seu fundamento: o desígnio divino da unidade dos povos e o árduo caminho desta unidade na diversidade. Este é um dos grandes fios condutores da história bíblica da salvação. A história da Torre de Babel, em Gn 11,1-9, sublinha a tensão entre a riqueza da multiplicidade das línguas e das culturas, por um lado, e a capacidade dos seres humanos de romperem a unidade da casa comum, de perturbarem o logos do oikos. O chamamento de Abraão, a sua promessa de que nele “se abençoarão todas as tribos da terra” (Gn 12,3), é a primeira resposta salvífica de Deus. Os profetas estenderam esta promessa aos povos do mundo, anunciando a unidade de todas as nações em torno do povo eleito e da Lei[148]. O Novo Testamento apresenta esta unidade realizada no Messias, que, pelo seu sangue e pela sua carne, “derrubando o muro de inimizade” entre Israel e as nações, para “formar em si mesmo um só homem novo” (Ef 2,14.15b). Deste modo, os gentios são associados ao povo da Aliança, sendo “admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo e beneficiários da mesma promessa” (Ef 3,6). Isto é possível em Cristo, o universal singular, que mantém unidas a alteridade e a identidade, e que assume toda a humanidade ao assumir uma humanidade genealógica e culturalmente situada. O antítipo de Babel, o Pentecostes das línguas de fogo em Atos 2,1-18, é a manifestação e a realização deste poder de comunhão do logos humano, que em última análise procede do Logos de Deus[149]. Não é na unidade fusional de uma única língua que o Espírito Santo realiza a comunhão destes judeus de línguas e culturas diferentes, mas inspirando uma compreensão do outro, imagem do que será a Igreja que reúne todas as nações, todos empenhados na sua realização, quando os “144.000 marcados com selo” das doze tribos de Israel e a “multidão imensa, que ninguém podia contar, gente de todas as nações, tribos, povos e línguas” realizarão a plena comunhão escatológica da humanidade na nova Jerusalém (Ap 7,4.9).

89. A dimensão intercultural de que Niceia é a expressão fundadora pode ser vista também como um modelo para o período contemporâneo, em que a Igreja está presente em diversos âmbitos culturais: culturas asiáticas, africanas, latino-americanas e oceânicas, novas culturas populares europeias, para não falar da nova forma cultural trazida pela revolução digital e pela tecnociência. Todos estes universos culturais contemporâneos parecem muito distantes da antiga cultura grega, que foi a primeira a acolher a forma de inculturação dogmática alcançada no evento de Niceia. Por um lado, há que sublinhar que foi nessas categorias gregas que a Igreja se exprimiu de forma normativa e que, por isso, elas estão para sempre ligadas ao depósito da fé[150]. Por outro lado, porém, a Igreja pode inspirar-se nos Padres Nicenos para procurar expressões significativas da fé em diferentes línguas e contextos atuais, mantendo-se fiel aos termos daquela época e encontrando neles as suas raízes vivas. Com a graça do Espírito Santo, as comunidades cristãs, os seus teólogos e pastores, em comunhão efetiva com o Magistério, devem eles próprios, nas suas próprias situações culturais e linguísticas, levar a cabo uma tarefa semelhante à do passado na afirmação da unidade radical do Filho e do Pai. Niceia continua a ser um paradigma para todos os encontros interculturais e para a possibilidade de receber ou forjar novas formas autênticas de exprimir a fé apostólica.

2.3 A fidelidade criativa da Igreja e o problema da heresia

90. A percepção de Niceia como evento de Sabedoria, provocado pelo evento Jesus Cristo, permite-nos reler com maior fineza a história das heresias a que o Concílio responde. A heresia, que se afasta intencionalmente do testemunho apostólico e mutila a sua integridade, é vista pelos Padres como a novidade que sai do caminho da regula fidei e da traditio e, por isso mesmo, se afasta da realidade histórica de Cristo. Ário é criticado precisamente por ter introduzido algo novo[151]. No entanto, tendo em conta o novum inaugurado pelo evento Jesus Cristo, pode ser esclarecedor entender a heresia também como uma resistência fundamental, tanto passiva como ativa, à novidade sobrenatural que abre o pensamento e as culturas humanas para além de si mesmas - uma novidade da graça de que dá testemunho a nova linguagem da fé expressa pelo homoousios. É quase inevitável que o ser humano, com todas as suas faculdades e em todo o seu ser, resista a esta novidade inaudita que o converte e transfigura. Trata-se de uma resistência, e, portanto, de um pecado do “homem velho” (Rm 6,6; ver também Ef 2,15), da dificuldade de conceber e aceitar plenamente a imensidão de Deus e do seu amor, e a imensa dignidade do ser humano. O caminho lento, tateante, mas prudente, percorrido pelas primeiras tentativas de compreender o sentido do mistério do Crucificado e da sua ressurreição gloriosa, a passagem do querigma apostólico aos primeiros passos daquilo a que hoje chamamos teologia, é, portanto, acompanhado de tensões constantes e de uma pluralidade de opiniões que se afastam da plenitude do testemunho apostólico e são designadas pelo termo heterodoxia, bem como pelo de heresia.

91. Em vez de fazer uma lista exaustiva das heresias dos primeiros séculos, destacamos esta resistência ao novum da Revelação através de alguns exemplos. Muitas vezes considerada como a primeira heresia, a doutrina racionalista dos gnósticos banalizava o realismo do mistério da Encarnação através do docetismo e, reduzindo a História Sagrada a narrativas mitológicas, negava a plenitude da salvação humana, que era relegada para o plano de uma espiritualidade etérea. Na sua luta contra o gnosticismo, Irineu sublinha que se trata de uma resistência à ideia de que Deus é capaz e está disposto a entrar ele próprio na história, a unir-se à humanidade até o fim, até o ponto de se tornar verdadeiramente humano e morrer. Trata-se de uma resistência a acreditar na beleza do singular, da matéria e da história, revelada também no evento Jesus Cristo e de que dão testemunho o Antigo e o Novo Testamento. Posteriormente, os Padres não hesitaram em recorrer a conceitos e quadros de pensamento provenientes da filosofia grega para aperfeiçoar o pensamento cristão. Ao fazê-lo, foram obrigados a extrapolar quadros de pensamento que, por si só, eram incapazes de tornar possível conceber que o Logos se pudesse tornar carne, que o Logos ou o Nous (νοῦς) que exprimem a divindade fossem iguais à fonte de onde provêm, ou que fosse possível uma multiplicidade que não contradissesse a unidade divina e fosse mesmo boa dentro dessa unidade. Os defensores das heresias cristológicas e trinitárias são os que não conseguiram deixar que estes quadros de pensamento, seja qual for a sua riqueza e o seu contributo real para o pensamento da doutrina cristã, fossem alargados pela imensidão inaudita do nous (νοῦς) Christou. A mesma dificuldade pode ser encontrada na interação das correntes cristológicas no Oriente ao longo do século III, que, de certa forma, prepararam o caminho para a heresia ariana. É preciso evitar caricaturar as diferentes posições dos protagonistas destas correntes, pois eles eram sobretudo pensadores individuais, mas todos eles lutaram com as mesmas dificuldades para manter unidas a riqueza trinitária do Deus único e a radicalidade da assunção plena de uma humanidade singular pelo Filho igual ao Pai: uns enfrentaram uma teologia trinitária de tendência subordinacionista e uma cristologia que corria o risco de ser docetista, enquanto outros resistiram a formas de modalismo trinitário e de adocionismo. São estas mesmas resistências às velhas formas de pensamento que se exprimem, algumas décadas antes de Niceia, na doutrina de Ário: para ele, é inconcebível que o Filho, diferente do Pai, que nasce e morre, possa ser coeterno e igual a Deus, sem pôr em causa a unidade e a transcendência divinas e, portanto, a redenção dos seres humanos.

92. Esta resistência é perfeitamente compreensível, dado o seu carácter humano. Elas testemunham, como que em negativo, a incrível luz que o evento Jesus Cristo lança sobre a percepção de Deus e sobre a vocação divina do ser humano, e a não menos incrível transfiguração do pensamento e da cultura humana, que se desdobra no evento de Sabedoria que daí decorre. Nada do que é humano é abolido, mas o acesso à imensidão da verdade de Deus exige a própria Revelação de Deus e a graça que converte e eleva as faculdades e as realizações humanas. De certo modo, a resistência das heresias permite-nos ver Niceia em toda a sua força de incomensurável novidade.

3. O evento eclesial: o Concílio de Niceia, primeiro concílio Ecumênico

3.1 A Igreja se inscreve por sua natureza e suas estruturas no evento Jesus Cristo

93. O Concílio de Niceia não é apenas um acontecimento na história da doutrina, ele é também um evento eclesial, que corresponde a uma etapa fundamental no processo de estruturação da Igreja. No decurso de um longo processo que se seguiu a Niceia, o “Concílio Ecumênico” tornou-se farol de orientação e decisão doutrinal e jurídica de toda a Igreja, seu lugar de comunhão e de autoridade última. Do ponto de vista da sua estrutura, pode ser visto como um ponto de viragem que orienta a vida futura da Igreja, semelhante ao que o Símbolo niceno representa do ponto de vista do acesso a Deus (evento Jesus Cristo) e ao pensamento humano (evento de Sabedoria)? Seria esse o caso se o Concílio Ecumênico enquanto tal pudesse ser considerado como um fruto e uma expressão especificamente eclesial do evento Jesus Cristo.

94. Desde seus inícios, a Igreja tem consciência de fazer parte da continuidade do povo eleito, assembleia convocada (qāhāl/ekklēsia - cf. Dt 5,22) para viver segundo a Torá revelada e adorar o Senhor seu Deus. Também ela se vê como “a geração escolhida, o sacerdócio régio, a nação santa, povo que ele adquiriu, a fim de proclamar os grandes feitos daquele que vos chamou das trevas par a sua luz maravilhosa” (1Pd 2,9). Nos Atos dos Apóstolos, ela é apresentada como uma comunidade de discernimento da vontade de Deus, cujo ator principal é o Espírito Santo, guiada por homens que continuam o papel dos doze apóstolos, “testemunhas da Ressurreição” (At 1,22)[152]. De certo modo, é na comunidade eclesial, como corpo de Cristo, que podemos discernir “os sentimentos de Cristo” (Fl 2,5; ver § 77 acima).

95. Esta consciência foi expressa pelos primeiros Padres, que ligaram a estrutura e o funcionamento da Igreja à sua natureza profunda e à sua vocação. Assim, no início do século II, Inácio de Antioquia sublinhava que as várias Igrejas particulares se consideram solidárias como expressão da única Igreja. Os seus membros são synodoi, companheiros de viagem, onde cada um é chamado a desempenhar o seu papel segundo a ordem divina que estabelece a harmonia expressa pela synaxis eucarística. Assim, através da sua unidade e da sua ordem, a Igreja canta o louvor de Deus Pai em Cristo, caminhando para a sua unidade plena, que se realizará no Reino de Deus. Cipriano de Cartago aprofundou este ensinamento em meados do século III, especificando o fundamento sinodal e episcopal sobre o qual deve assentar a vida da Igreja: nada se faz sem o bispo (nihil sine episcopo), mas também nada se faz sem o “vosso conselho” (o dos presbíteros e dos diáconos) ou sem o consentimento do povo (nihil sine consilio vestro et sine consensu plebis)[153]. Unidade ligada à unidade da Trindade, inspiração do Espírito Santo, caminho conjunto (synodos) para o Reino, fidelidade à doutrina dos Apóstolos e à celebração da Eucaristia, ordem e harmonia dos ministros e dos batizados, com um papel especial conferido aos bispos: estes elementos mostram que a Igreja, suas estruturas e seu funcionamento, está profundamente inscrita no evento Jesus Cristo, como seu momento e sua expressão privilegiada. Comemorar Niceia, significa recolher e comemorar todo o processo sinodal que precedeu e culminou no Concílio Ecumênico.

3.2 A colaboração estrutural dos carismas da Igreja e o caminho para Niceia

96. Estes elementos próprios da natureza teológica da Igreja, que só podem ser fruto do evento da Revelação, manifestaram-se no percurso histórico que conduziu ao Concílio Ecumênico de Niceia através da interação de três carismas, aplicados ao governo, ao ensino e à tomada de decisões comunitárias na Igreja: primeiro a hierarquia tripartite, depois os mestres e o sínodo. Uma ordem de precedência, na qual os apóstolos vêm em primeiro lugar, parece estar bem estabelecida no corpus paulino: “na Igreja, Deus estabeleceu em primeiro lugar, alguns como apóstolos; em segundo lugar, alguns como profetas; e em terceiro, os que ensinam” (1Cor 12,28; cf. Ef 4,11). A primeira caraterística é o desenvolvimento progressivo da hierarquia tripartite de bispos, presbíteros e diáconos. Esta hierarquia, que supervisionava os profetas e os mestres itinerantes dos primeiros 150 anos do cristianismo (muitas vezes chamados “apóstolos”, em sentido geral), veio a suplantá-los em certa medida, tornando-se a estrutura de governo local da Igreja. A figura do bispo, em particular, exprime a dimensão apostólica da Igreja. A partir do século IV, formaram-se as províncias eclesiásticas, que exprimiam e promoviam a comunhão entre as Igrejas particulares, chefiadas por um metropolita.

97. Uma vez que os cristãos são chamados a anunciar Cristo e a transmitir o seu ensinamento e o ensinamento dos Apóstolos a todas as nações, não é de estranhar que a segunda caraterística do cristianismo no período pré-niceno fosse a importância decisiva das escolas e dos mestres, que ensinavam os catecúmenos e interpretavam as Escrituras. Os mestres podiam ser ministros ordenados ou não. Pelágio, por exemplo, ensinava em Roma no início do século V, embora não fosse sacerdote, assim como Melânio, o Velho, e Rufino, em Jerusalém, e Jerônimo, em Belém e depois em Roma. O próprio Orígenes dirigiu a Escola de Alexandria após a morte do seu pai Leónidas, antes de ser ordenado.

98. Finalmente, depois da segunda metade do século II e no início do século III, sobretudo na Ásia Menor, o sínodo assume um papel cada vez mais relevante na decisão de questões importantes de disciplina, de culto e de ensino. Inicialmente, os sínodos eram locais, mas o envio de cartas sinodais comunicando as suas decisões (ata) a outras Igrejas, a troca de delegações e os pedidos de reconhecimento mútuo testemunham a “firme convicção de que as decisões tomadas são expressão da comunhão com todas as Igrejas”, na medida em que “cada Igreja local é expressão da Igreja una e católica” [154]. É de notar que o sínodo tem uma dimensão jurídica ou canônica muito clara, enquanto instituição que legisla. Os documentos e as colecções de cânones sinodais estão reunidos nos arquivos episcopais, nomeadamente em Roma: o desenvolvimento do direito canônico e dos sínodos andam de mãos dadas e acompanham-se mutuamente. Não é possível atribuir unicamente à legitimação da Igreja por Constantino a transição para uma Igreja institucionalizada de tipo estatal. Concebida como uma polis (cidade) que reflete a cidade de Deus, a Jerusalém celeste (cf. Is 60 e 62; 65,18; Ap 3,12; 21,1-27), ou como um synodos no sentido literal de um povo que segue o mesmo caminho de Jesus em direção ao Reino, tendo Jesus à cabeça como seu proestos, ou presidente, a Igreja é constitutivamente “política” e institucional[155].

99. Estes três carismas evoluíram de forma diferente e à sua maneira no interior da Igreja, mas nenhum deles foi separado ou emancipado dos outros dois. Embora surgissem naturalmente tensões entre eles e dentro deles, enriqueciam-se, informavam-se e reforçavam-se mutuamente. Os mestres participavam frequentemente nos sínodos, como membros. Do mesmo modo, os bispos foram, desde o início, mestres e pregadores segundo o modelo de Inácio de Antioquia. Obviamente, os bispos presidiam os sínodos e desempenhavam um papel de liderança como guardiães da ortodoxia da fé e da prática. Além disso, em seu papel sacramental, o bispo presidia à celebração eucarística que abria e concluía cada sínodo, fonte e cume do “caminhar juntos” que é o synodos[156]. Sinal da recepção das decisões sinodais, como também da comunhão dos fiéis com os seus bispos, estabelecidos na sucessão apostólica na “Catholica”, a Igreja de Deus única, a Eucaristia manifestava e realizava de maneira visível a pertença ao corpo de Cristo e a pertença recíproca entre os cristãos (cf. 1Cor 12,12) [157].

100. Estes elementos do processo de estruturação da Igreja não só mostram que se enraízam no evento Jesus Cristo, como também é possível discernir nestes processos uma certa analogia com o que constituiu o evento de Sabedoria, acima analisado. Tal como o pensamento humano, profundamente renovado pelo evento Jesus Cristo, assume e transforma as culturas humanas, nomeadamente através do encontro do pensamento semita, já trabalhado a partir do interior pela Revelação, com a cultura grega e outras culturas, assim também as três dimensões ou carismas que identificamos surgiram tanto de instituições judaicas como de versões locais de instituições greco-romanas dos primeiros séculos da nossa era, tanto civis como sacras. Por um lado, o judaísmo do Segundo Templo tinha a sua própria hierarquia sacerdotal, escolas e sínodos. Por outro lado, como não existiam escolas específicas para eles, os mestres cristãos eram quase todos formados como oradores e intérpretes no enkyklios paideia, ou sistema de educação geral do mundo greco-romano, e por isso usavam a retórica e a filosofia, que ajudaram a inserir no patrimônio da doutrina cristã. O sínodo (concilium em latim) já era, também ele, uma instituição antiga no mundo greco-romano, quando os cristãos lhe atribuíram um lugar importante. Mas estes diferentes aspectos assumem dimensões próprias, são transfigurados, se assim o quisermos, quando postos a serviço da missão da Igreja de anunciar o Evangelho e ser sinal efetivo de unidade para a humanidade.

3.3 O Concílio Ecumênico de Niceia

101. Em 325, realizou-se em Niceia um sínodo que foi, em parte, o culminar deste processo, mas consistiu também em uma forma excepcional dele, devido ao seu alcance Ecumênico. Convocado pelo imperador para resolver uma disputa local que se tinha estendido a todas as Igrejas do Império Romano do Oriente e a muitas Igrejas do Ocidente, reuniu bispos de várias regiões do Oriente e legados do bispo de Roma. Pela primeira vez, portanto, os bispos de toda a Oikouménè foram reunidos em sínodo. Sua profissão de fé e suas decisões canônicas foram promulgadas como normativas para toda a Igreja. A comunhão e a unidade sem precedentes que o evento Jesus Cristo introduziu na Igreja tornam-se visíveis e eficazes de um modo novo, através de uma estrutura de alcance universal. O anúncio do Evangelho de Cristo, em toda a sua imensidão, recebe, também ele, um instrumento de autoridade e alcance sem precedentes:

No Concílio de Niceia, pela primeira vez, através do exercício sinodal do ministério dos Bispos, exprime-se, institucionalmente, a nível universal a ἐξουσία do Senhor ressuscitado que guia e orienta no Espírito Santo o caminho do povo de Deus. Análoga experiência se realiza nos sucessivos Concílios ecumênicos do Primeiro Milênio, através dos quais se define normativamente a identidade da Igreja una e católica[158].

102. Com o Concílio de Niceia, a própria ideia de um sínodo ou concílio Ecumênico ficou estabelecida. Embora nenhuma das suas acta tenha sobrevivido, com toda a probabilidade, e apesar de uma recepção lenta e árdua, a proclamação do homoousios e os canones de Niceia perduraram. Após este longo processo de recepção - que será típico de qualquer concílio - Nicéia tornou-se o ideal de concílio na mente de muitos. A sua apresentação tradicional como um concílio unificado, inspirado pelo Espírito Santo, ajudou-o a tornar-se o concílio ideal na posteridade e criou gradualmente a estima dos cristãos pelos concílios Ecumênicos. Niceia abriu o caminho para os concílios Ecumênicos seguintes e, assim, para um novo modo de sinodalidade ou conciliaridade que marca a vida da Igreja até hoje, tanto no seu papel de definição e proclamação da fé como na manifestação da unidade de toda a Oikouménè nele representada.


Capítulo 4

Manter a fé acessível a todo o povo de Deus

Prelúdio: o Concílio de Niceia e as condições de credibilidade do mistério cristão

103. A primeira ideia que temos do Concílio de Niceia é que foi um concílio dogmático que defendeu e clarificou a fides quae cristológica e trinitária. E é uma ideia legítima. Neste último capítulo, se trata de explicar como o evento conciliar constituiu também um certo mecanismo institucional da Igreja una e católica para resolver um conflito dogmático em condições que pudessem tornar sua decisão passível de recepção. O exame na perspectiva da teologia fundamental deve, portanto, complementar o dogmático e o histórico. É a fides quae, a verdade salvífica, que gera a adesão à salvação, a fides qua; mas em Niceia a própria fides qua foi colocada a serviço da aceitação e da compreensão da fides quae. A consideração dos processos da fides qua, ou seja, das condições de definibilidade e de recepção da fides quae, revela a natureza e o papel da Igreja. É claro que a constituição deste mecanismo institucional foi um processo gradual, que não apareceu totalmente pronto, como, no mito, Atenas da cabeça de Zeus. Em suma, que o conceito dogmático de “concílio Ecumênico” não pode ter sido exatamente contemporâneo do acontecimento de 325. Como visto no capítulo II, o lugar por excelência onde a fides qua e a fides quae se encontram é o batismo. É aí que o cristão singularmente é incorporado na fé da Igreja, que recebe da Igreja mãe. Neste contexto do batismo e da catequese de iniciação, a Igreja primitiva desenvolveu a regra de fé como o resumo mais substancial da fé. Dada a sua relevância, ela foi utilizada para discernir a verdade da fé face à heresia (Irineu, Tertuliano, Orígenes, por exemplo). Ela é precursora da posição dogmática do símbolo como síntese dos elementos normativos da fé. Esta consciência de uma norma (regula; kănōn) está presente nos procedimentos dos sínodos anteriores a Niceia que discerniam a fé.

104. Com base nas múltiplas experiências dos sínodos regionais e locais dos séculos II e III, é possível sustentar a tese dogmática de que uma verdade eclesiológica considerada, a priori, operativa foi chamada em questão, como referência de base, par resolver uma questão trinitária, cristológica e soteriológica ameaçada de alteração, deturpação ou perda. Os processos da fides qua manifestam a natureza da Igreja. O Verbo de Deus que se fez carne (Jo 1,14) dá verdadeiramente a conhecer o Pai, e este conhecimento, pela força do Espírito Santo, é confiado à Igreja, que tem a missão de o guardar e transmitir. Esta missão implica que a Igreja pode interpretar as Escrituras com autoridade. Isto mostra também que crer a Igreja - como professa o Símbolo - e aceitar na fé a sua autoridade para definir a doutrina cristológica e trinitária se funda no ato de fé em Jesus Cristo e na Trindade, numa forma de “prioridade” ou de “causalidade recíproca”, segundo a feliz expressão tomista[159]. Finalmente, o objetivo último de todo este procedimento eclesial deve também ser objeto da nossa atenção. A hipótese é que o procedimento conciliar foi posto a serviço dos pequenos, a serviço mesmo da fé das crianças, que é o paradigma da fé do verdadeiro discípulo aos olhos do Senhor Jesus e, portanto, do anúncio do Evangelho a todos. Isto ilumina o sentido do magistério da Igreja, que visa uma caridade protetora para com os “mais pequeninos” dos “irmãos” de Cristo (Mt 25, 40).

1. A teologia a serviço da integralidade da verdade salvífica

1.1 Cristo, verdade escatologicamente eficaz

105. Na medida em que Niceia propõe uma verdade no que se refere à salvação e a distingue do erro, a sua primeira questão, do ponto de vista da teologia fundamental, é a do lugar da verdade na soteriologia. Esta convicção decorre, antes de mais, da própria forma da Revelação, que, ao se deixar registrar, ser posta em palavras escritas, mostra que a dimensão da verdade é constitutiva dela. A fé cristã pressupõe que a verdade de Cristo se torne acessível a seus discípulos. De fato, o próprio Salvador é a verdade: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). No cristianismo, a verdade é uma pessoa. A verdade já não é uma simples questão de lógica ou de raciocínio; não é possível possuí-la, e não pode ser separada dos outros atributos identificados com a própria pessoa de Cristo, como a bondade, a justiça e o amor. O fato é que a adesão a Cristo convoca sempre a inteligência dos discípulos: “Credo ut intelligam[160]. De fato, não é imaginável nem coerente pensar que o Deus que criou o ser humano inteligente e livre - uma das dimensões da criação à imagem e semelhança do próprio Criador (Gn 1,26-27) - possa, como Deus Salvador, ser indiferente ao acesso ao conhecimento da sua verdade e da verdade salvífica. Além disso, esta verdade salvífica tem uma dimensão comunitária. Niceia é um ato comunitário de expressão da verdade, para a comunicar a toda a Igreja. De fato, não é imaginável nem coerente pensar que o criador da família humana, e em particular da sua capacidade de comunicação inteligível através das línguas (Gn 11,1-9: Torre de Babel; At 2,11: Pentecostes), possa ser indiferente ao acesso comunitário à sua verdade e à verdade salvífica. É por isso que a desintegração da unidade da fé compromete a força e a eficácia da salvação em Jesus Cristo.

106. Este lugar constitutivo da verdade na salvação reflete-se na própria natureza da Igreja como “portadora da verdade” (alēthefora). Ela é portadora de outro que não ela mesma, Cristo-Verdade, e não seria ela mesma sem isso. A Igreja é, por necessidade ligada à sua origem, um lugar de busca, de descoberta, de proteção e de estabelecimento da verdade realizada na Palavra para o benefício pessoal e eclesial dos seus discípulos e de todos os seres humanos. É também um lugar de comunhão com a força vivificante desta verdade, que circula no seu interior, ao mesmo tempo que irriga a busca da verdade no mundo, seu pensamento e sua cultura[161]. A tradição (transmissão) vivificante da própria verdade salvífica é, pois, um dos significados mais vigorosos que se pode dar ao conceito dogmático de Tradição eclesial[162].

107. A centralidade da verdade explica a profunda rejeição da idolatria nas Escrituras. O Santo de Israel é um Deus que fala, ao contrário dos ídolos. “Eles têm boca e não falam”, dizem os Salmos (115,5 e 135,15), com eco em 1Cor 12,2: “sabeis que, quando ainda gentios, éreis como que induzidos e levados para o culto dos ídolos mudos”. Além disso, a verdade, o poder, a justiça e a santidade de Deus sempre foram concebidos, biblicamente, em relação à sua pretensão de oferecer uma salvação verdadeira e universal, enquanto as práticas idolátricas pretendem oferecer apenas um dom parcial e regional. Além disso, sendo ela uma pessoa que vem de Deus e é Deus e Senhor (Jo 13,14), a verdade da salvação deve ser recebida, ao passo que, na idolatria, o divino é construído a partir do humano. O fato de Deus não poder ser modelado como a estátua de um ídolo, como Sb 13,11-19 exprime com ironia, remete-nos para a noção de autorrevelação divina, que contrasta fortemente com a ideia de autorrealização tão comum nas religiões, mesmo na antiguidade, como o demonstra o gnosticismo, descrito por Irineu como uma heresia e como “falsa gnose”. O gnosticismo “mente”, contradiz a própria noção de verdade salvífica, porque não é recebida de Deus e livremente acolhida no amor. Pelo contrário, através da sua encarnação, o Verbo de Deus apela ao ato eclesial e pessoal da fé como recepção no Espírito Santo, com a mente e com todo o ser, dos mistérios que salvam: “Vós adorais o que não conheceis. Nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus” (Jo 4,22). Por fim, Jesus é o Verbo de Deus, enviado ao mundo para uma missão de palavra, para uma palavra de verdade integral que exige do ser humano uma resposta de fé. Por isso, esta é uma verdade realmente salvífica, escatologicamente eficaz: “hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). A escolha feita por Niceia de exprimir em palavras uma verdade integral de salvação para todos, a ser acolhida na fé, expressa fidelidade não só à verdade cristológica (fides quae), mas também à relação pessoal com a verdade que é o próprio Cristo (fides qua).

1.2 A salvação e o processo de filiação divina

108. Esta verdade soteriológica deve ser tomada no seu sentido mais forte, ontológico. Sem pretender oferecer uma compreensão exaustiva que desvirtuaria o mistério da salvação enquanto mistério, ela, no entanto, dá acesso à própria verdade da filiação e da paternidade de Deus. O Deus da verdade quis, por assim dizer, pôr os homens à prova da pretensão filial, inaudita, do seu Filho único, Jesus. A verdade revelada por Deus concentra-se então na verdade do seu Filho unigênito. Este termo não se reduz a uma simples metáfora ou analogia, porque o que aqui é metafórico se abre, ele mesmo, para o registo da ontologia, tal como o symbolon, no sentido forte do termo, dá acesso real e efetivo à realidade que significa. O testemunho do Pai dado a Jesus é o fundamento desta verdade: “Se aceitamos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior. E o testemunho de Deus é este: ele testemunha a respeito do seu Filho. Aquele que crê no Filho de Deus tem este testemunho dentro de si” (1Jo 5,9-10a). O autor acrescenta: “Aquele que não crê em Deus faz de Deus um mentiroso” (1Jo 5,10b). Nossos antigos catecismos gostavam de formular esta convicção íntima do ato de fé dos cristãos com uma simplicidade direta: “Deus não pode enganar nem a si mesmo, nem a nós” [163], na qual Tomás de Aquino teria reconhecido as suas próprias formulações[164]. Isto justifica a opção ontológica do neologismo niceno homoousios, que prolonga e clarifica a terminologia bíblica e dos hinos. A confirmação da verdade ontológica da filiação divina de Jesus é, como vimos no primeiro e no terceiro capítulos, o fato de a relação de paternidade e filiação estar misteriosamente invertida entre o divino e o humano: a paternidade humana e terrena tornou-se uma nomeação segunda e derivada do seu protótipo, Deus Pai (Ef 3,14; Mt 23,9). É esta verdade da filiação divina, na qual o crente é convidado a entrar, que está na base da verdade da filiação batismal[165]. Ser salvo, segundo o Evangelho de Jesus, consiste em entrar na verdade plena da filiação, que se insere na filiação eterna de Cristo.

2. A mediação da Igreja e a inversão da sequência dogmática: Trindade, cristologia, pneumatologia, eclesiologia

2.1 As mediações da fé e o ministério da Igreja

109. Esta verdade salvífica e eficaz é explicitada e comunicada em Niceia em uma interpretação do texto bíblico, um exercício da inteligência da fé, com o emprego de termos provenientes dos hinos e da filosofia. De fato, toda a economia da revelação bíblica atesta que a força da convicção sobre a verdade cristológica não deve certamente ser entendida em perspectiva fundamentalista, para a qual o sentido das Escrituras está disponível apenas de forma imediata. Pelo contrário, a tradição interpretativa da doutrina eclesial e a investigação dos teólogos mostram que a fé tem necessidade de muitas mediações, a começar pela primeira, única e fundamental, a da humanidade do Filho unigênito, recebida de Maria. Deus fez com que a sua verdade divina inaudita passasse para a humanidade através da mediação do seu Verbo encarnado: “Este é o meu Filho amado, no qual está o meu agrado. Escutai-o” (Mt 17,5; 3,17). Além disso, os diferentes gêneros literários de expressão da Revelação que constituem os livros bíblicos exigem economias hermenêuticas[166]. O Símbolo, nascido da liturgia e proclamado em ambiente litúrgico, testemunha que a mediação interpretativa não se reduz a um comentário do texto, mas realiza-se gestis verbisque, onde a fé é vivida em uma comunidade de oração e de graça[167]. Vemos isso no relato de Lc 24, onde o próprio Cristo ressuscitado não só se explica através da exegese da Lei e dos profetas, mas também, finalmente, através da sua presença e da sua doação eucarística, na “fração do pão”, como explicou o Papa Bento XVI na Verbum Domini:

Palavra e Eucaristia correspondem-se tão intimamente que não podem ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-se carne, sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério eucarístico. Com efeito, sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta a compreensão da Escritura[168].

110. Assim, a concatenação ordenada dos mistérios, tal como é apresentada na dogmática, pode ser utilmente invertida na teologia fundamental. É por meio do mistério da Igreja, o mistério “mais difícil de acreditar” [169], que são propostos os mistérios inauditos da fé cristã, dos quais depende lógica e ontologicamente a própria Igreja. De fato, é à Igreja que compete, em primeiro lugar, estabelecer a credibilidade do caminho de fé. Obviamente, “existe uma ordem ou ‘hierarquia’ das verdades da doutrina católica, já que é diferente o nexo delas com o fundamento da fé cristã” [170]. A doutrina cristológica, trinitária e soteriológica do Credo constitui este fundamento. No entanto, dentro do nexus mysteriorum dos dogmas, o ato de interpretação do Concílio lança luz sobre a participação da Igreja, de acordo com o seu lugar e papel específicos, na ordem da salvação[171].

2.2 Dissenso e sinodalidade

111. A mediação interpretativa da Igreja assumiu a forma de arbitragem, sobretudo dinate de dissensões ou da necessidade de traduzir o texto sagrado. O “Concílio de Jerusalém”, em Atos 15, testemunha pela primeira vez um desacordo doutrinal (a relação dos discípulos de Cristo provenientes dos gentios com a Lei mosaica) e prático (circuncisão, idolatria e fornicação). Tais descordos se tornaram fonte de conflito, cuja resolução, sob a forma de um consenso eclesial recuperado, foi examinada pelo colégio dos “apóstolos e anciãos” (At 15,6). O procedimento seguido é: primeiro, uma sucessão de testemunhos autorizados (Pedro, Paulo e Barnabé, Tiago), acolhidos em espírito de escuta recíproca[172]; depois um apelo à autoridade de Moisés; a instituição de “enviados” oficiais, para lidar com os mensageiros “sem mandato” (At 15,24); e, por fim, a redação de um documento prescritivo (At 15,23-29) a ser apresentado oficialmente à Igreja de Antioquia, que se tinha reunido por convocação destes mensageiros mandatados (At 15,30-31). Todos foram envolvidos, porque a questão foi submetida a toda a Igreja de Jerusalém (At 15,12), que esteve presente durante o processo de discernimento eclesial e participou na decisão final (At 15,22)[173]. É sinal deste caráter comunitário os mensageiros serem enviados aos pares (At 15,27). É essencial para a presente reflexão que a Igreja, assistida pelo Espírito Santo e agindo sinodalmente, apoiando-se no sensus fidei fidelium[174]e na autoridade particular dos apóstolos, constitui o mistério vivo e operante no qual se elaborou o desenvolvimento doutrinal sobre a distinção entre os discípulos de Cristo provenientes do povo judeu e os provenientes de povos gentios, no que diz respeito à prática da Lei mosaica. A arbitragem da fé que dizia respeito ao desígnio universal de Deus, a entrada das nações no mistério primeiramente revelado a Israel, teve lugar aqui, na troca entre fides qua e fides quae, no mistério dinâmico da Igreja.

112. Desde antes da encarnação do Verbo, o povo eleito teve de enfrentar um problema semelhante de conservação, mas sobretudo de difusão, da Revelação na diáspora de Israel e, além disso, entre as populações que o Novo Testamento chama de “prosélitos” (Mt 23,15 e At 2,10 e 6,15) e de “tementes a Deus” (At 10,2), de origem pagã. Foi esta opção fundamental, cuja verdadeira origem se perde na lenda (Epístola de Aristeu ou Talmud-Soferim 1,7), que autorizou a tradução da Bíblia do povo judeu do hebraico para o grego, dando origem à versão alexandrina da Septuaginta. Estas traduções, tal como o uso posterior do neologismo homoousios, implicaram uma grande arbitragem lexical para garantir que as verdades do texto original, concebidas no campo semântico de uma língua semítica, não se perdessem quando o texto foi transferido para o campo semântico de uma língua indo-europeia.

113. Estas arbitragens exprimem a própria natureza da Igreja e permitem compreender o sentido do magistério que ela exerce. Com efeito, a Igreja é uma realidade da graça inscrita na história. Ela é constituída e movida pelo Espírito Santo, o mesmo Espírito que realizou a Encarnação do Verbo e que continua a realizar a incorporação dos crentes ao Corpo Místico, que enfrenta as alegrias, as tentações e as vicissitudes da história. A sua missão de salvação realiza-se não só através da pregação, do ensino das Escrituras e da celebração dos sacramentos, mas também através do magistério exercido pelos bispos, sucessores dos apóstolos, em comunhão com o bispo de Roma, sucessor de Pedro. Isto não quer dizer que a verdade da fé seja histórica e mutável: antes, quer dizer que o reconhecimento da verdade e o aprofundamento da sua compreensão constituem uma tarefa histórica para o único Sujeito-Igreja. A Igreja não possui, portanto, a verdade, que não pode ser fabricada - pois o que está em causa é fundamentalmente o próprio Cristo -, mas a recebe, recorda e interpreta. Para cada geração, acreditar com a Igreja significa participar nos seus esforços incessantes para alcançar uma compreensão mais profunda e completa da fé. O dever de fidelidade não pode ser reduzido a uma simples docilidade passiva: é um dever de apropriação ativa por parte de todos os discípulos, com o apoio e sob a vigilância do magistério vivo do Colégio dos bispos. Estes, em comum acordo, têm autoridade para decidir de forma vinculante se uma interpretação teológica é ou não fiel a à fonte - Cristo e a Tradição Apostólica. O magistério nada acrescenta à Revelação realizada em Cristo e atestada pelas Escrituras, para além dos esclarecimentos do desenvolvimento dogmático, porque a Igreja exerce o seu papel de intérprete autêntica da Palavra de Deus em atos de fidelidade criativa à Revelação[175]: “Assim, o juízo sobre a autenticidade do sensus fidelium pertence, em última análise, não aos próprios fiéis nem à teologia, mas ao Magistério”[176]. O chamado magistério ordinário dos sucessores dos apóstolos consiste no ensino habitual, que desenvolve continuamente a tradição - já referida no Novo Testamento como “sã doutrina” (2Tm 4,3). Comparativamente, o magistério extraordinário é raramente exercido, mas o é sempre que seja necessário tomar uma decisão de importância doutrinal que diga respeito a toda a Igreja, nomeadamente face a contestação de parte da Igreja. Foi o que aconteceu de forma eminente e explícita no Concílio Ecumênico de Niceia.

2.3 As línguas do Espírito Santo para formar e renovar o consenso

114. No fundo, em Niceia, a tarefa eclesial era, antes de mais, uma tarefa pneumatológica de metáfora. Ela opera no registo da tradução, como a Septuaginta e os Targumim, que procuram a fidelidade ao texto hebraico situando-se resolutamente nos modos de pensamento e de gênio próprios do grego e do aramaico. Podemos supor que o mesmo processo esteve em ação na tradução das palavras de Jesus, pronunciadas em aramaico, para o grego dos Evangelhos. É também o trabalho de exegese do texto sagrado, iniciado com os midrashim e os escritos dos primeiros Padres da Igreja. É este duplo movimento que desabrochou nas trocas vivas de um concílio Ecumênico celebrado sob a ação do Espírito do Pentecostes, o qual os oradores podiam vir do mundo siríaco, grego, copta ou latino, e que conduziu a definições que eram, elas próprias, traduzíveis para outras línguas e formas de expressão. Assiste-se, assim, a uma dupla ousadia recebida do Espírito Santo. Em primeiro lugar, um reforço da compreensão da fé professada em Niceia por parte daqueles que a proclamam com parrēsia e eficácia em benefício do povo de Deus nos diferentes contextos do mundo; em segundo lugar, uma ousadia no Espírito Santo por parte daqueles que escutam (auditus fidei) e acolhem (obsequium fidei) este anúncio[177]. Este movimento manifesta tanto a natureza da Igreja como a identidade do Espírito da verdade, que “faz memória” das palavras de Cristo e orienta para a “verdade total” (Jo 16,13; cf. 14,26). Não há nada de surpreendente no fato de uma tal tarefa eclesiológica, que postula as operações da terceira pessoa divina, ter de remontar da história da salvação ao mistério original das relações trinitárias, da economia à ontologia divina.

115. Nesta tarefa de metáfrase pneumatológica, que introduz um conceito desconhecido da Sagrada Escritura, o famoso homoousios, é essencial notar que as narrativas bíblicas, bem como as metáforas dos textos escriturísticos, não são abolidas ou obscurecidas pelas transcrições especulativas que contraem e clarificam a sua substância. O esclarecimento dogmático só tem valor se conservar as raízes que lhe dão vida no húmus bíblico e na comunhão litúrgica da fé. É o caso claro do texto do Símbolo. Em circunstâncias como as da crise ariana, em que a Palavra de Deus parece dar um apoio ambivalente à conservação da verdade de fé (Lc 18,19: “Porque me chamas bom? Ninguém é bom, a não ser um: Deus”), tornou-se necessário que a expressão especulativa dirimisse a disputa exegética. No entanto, o desenvolvimento doutrinal, com o recurso específico dos neologismos, deve se contentar em expor e clarificar as verdades imanentes à linguagem da revelação, tal como o próprio Cristo explica a sua parábola do semeador em Mt 13,3-9 e depois 18-23. Neste sentido, vale notar que, na história da Igreja, os neologismos dogmáticos foram poucos e raros, e que corresponderam a pontos nodais verdadeiramente decisivos do mistério cristão: entre eles, “consubstancialidade” e “união hipostática”, na cristologia; e, no domínio trinitário, “relações subsistentes” e “perichoresis”; mas também “pessoa” (prosôpon e hypostasis), no seu sentido especificamente cristão, na teologia trinitária, na cristologia e na antropologia.

3. Salvaguarda do depósito da fé: a caridade a serviço dos mais pequeninos

3.1 A fé unânime do Povo de Deus oferecida a todos

116. O Símbolo da Fé e os cânones adotados pelo Concílio de Niceia não são apenas atos eclesiais de interpretação, tradução e metáfora, mas visam também “guardar” ou “vigiar” (phȳlaxein) o depósito da fé transmitido pelos Apóstolos (1Tm 6,20). Ora, esta proteção funciona sobretudo em benefício dos que estão em maior risco. Assim como, ao nível da fides quae, o homoousios é o princípio e o fundamento da koinonia em Cristo de todos os seres humanos entre si, até o menor de todos, assim também, ao nível da fides qua, a decisão do Concílio de definir uma profissão de fé comum protege todos os discípulos. A clareza doutrinal torna a fé capaz de resistir às forças do regionalismo cultural absolutista e da fratura geopolítica, bem como às da heresia, muitas vezes ligadas a uma forma de sutileza elitista.

117. Insistamos neste último aspeto. No século IV, no tempo da “paz da Igreja”, quando se corria o risco de que a convicção cristã se enfraquecesse à medida que se difundia pelo mundo, os partidários do antigo paganismo tentavam restaurar o seu vigor perdido, sublinhando que estavam acessíveis às pessoas mais simples: os deuses do seu panteão, as suas práticas e os costumes dos seus antepassados. A fé pregada por Jesus às pessoas simples não é uma fé simplista. As parábolas e outros ditos, ou certas declarações joaninas, como a magistral: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30), testemunham que o acesso ao mistério de Deus é, pelo menos, paradoxal. Nem o que o dogma viria a designar como Trindade, nem a união hipostática enunciada no Concílio de Calcedônia, nem o duotelismo dinâmico salvaguardado pela soteriologia de Máximo Confessor, poderiam passar por proposições simples. No entanto, o cristianismo nunca se considerou um esoterismo reservado a uma elite de iniciados. Cristo afirmou-o numa declaração fundamental: “Eu falei abertamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde os judeus se reúnem. Nada falei às escondidas. Por que me interrogas? Interroga aos que ouviram o que lhes falei; eles sabem o que eu disse” (Jo 18,20). Mesmo a disciplina mistagógica do arcano, durante um período do cristianismo primitivo, não indicava uma preocupação ciosa com o segredo, mas antes um reconhecimento da seriedade e das etapas da iniciação cristã. E, com o passar dos séculos, a fé cristã assumiu plenamente o seu estilo decididamente exotérico e popular. No fundo, cada cristão, ao traçar o sinal da cruz sobre si mesmo, exprime de forma adequada e plena o coração da fé trinitária e pascal[178]. Todo o povo de Deus deve dar razão da sua fé e da sua esperança (1Pd 3, 5): neste sentido, é teólogo[179].

118. No mesmo sentido, o exercício do Magistério, tal como se realizou no Concílio de Niceia, e que confere ao ensinamento da Igreja “católica” um estilo autenticamente público e institucional, estabelece assim uma igualdade de todos quanto ao conteúdo da fé. O símbolo da fé, praticado por todos os membros do Corpo Místico, numa liturgia pública e comum, constituirá a pedra de toque da contesseratio (o vínculo da hospitalidade) da comunhão eclesial, tão cara a Tertuliano[180]. O bem comum da Revelação é verdadeiramente posto “à disposição” de todos os fiéis, como confirma a doutrina católica da infalibilidade in credendo do povo batizado: “A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (1Jo 2,20.27) não pode enganar-se na fé”[181]. Os bispos têm um papel específico na definição da fé, mas só o exercem fazendo parte da comunhão eclesial de todo o Povo de Deus[182]. Neste sentido, a Nova Lei do Novo Testamento assume as caraterísticas da Lei Antiga, cuja dimensão pública não é geralmente suficientemente apreciada: uma vez que a lei é promulgada solenemente, é conhecida por todos como uma lei divina. Assim, até os chefes são obrigados, pela publicidade da Lei, a cumpri-la. A “acepção de pessoas”, que é frequentemente identificada e denunciada na Torá, é mais facilmente vista objetivamente como uma violação da igual dignidade dos filhos de Deus (Lv 19,5; Dt 10,17; At 10,34; Rm 2,11).

3.2 A proteção da fé face ao poder político

119. Assim, o Concílio de Niceia, com tudo o que deve à iniciativa do imperador Constantino, representou, no entanto, um marco no longo caminho em direção à libertas Ecclesiae, que é, em toda a parte, uma garantia de proteção da fé dos simples e dos mais vulneráveis face ao poder político. Ao mesmo tempo, havia, sem dúvida, um movimento concorrente em direção ao que viria a ser conhecido como “cesaropapismo”, uma tentação persistente entre as Igrejas cristãs. Devemos, pois, ver neste Concílio o início de uma garantia eclesial da liberdade de consciência dos pequenos ou o início de uma instrumentalização política da religião de Cristo? É verdade que as preocupações políticas do imperador Constantino são hoje muitas vezes sublinhadas; salienta-se que o Concílio de Niceia se destinava, entre outras coisas, a celebrar o vigésimo aniversário do seu reinado, e insinua-se mesmo, nalguns casos, que a profissão de fé adoptada por Niceia se destinava sobretudo a restabelecer a concórdia no seio do Império. Do mesmo modo, a noção de heresia é criticada por estar associada ao poder repressivo do Estado confessional. Sem podermos aprofundar estas questões complexas nos limites deste documento, podemos, no entanto, distinguir aqui formas de unidade e objetivos, unidade de fé entre cristãos e unidade dos cidadãos. Por um lado, a verdade dogmática do monoteísmo trinitário de Niceia não permitiu que a pretensão do basileu de ser o símbolo estatal e religioso da unidade romana e de lançar as bases de uma ordem teológico-política stricto sensu fosse tão honrada como o era na perspectiva do arianismo[183]. Por outro lado, sem a vigilância magisterial da Igreja apostólica, assistida pelo Espírito Santo, perante a resistência ao carácter inaudito da Revelação - que é a heresia -, os mistérios da fé comunicados pela autorrevelação do Verbo Encarnado, crucificado e ressuscitado, não teriam resistido à explosão e à cacofonia.

120. A proteção da fé de todos, bem como a importância de escutar a voz dos últimos e dos menos ouvidos, pode ser vista no fato de Nicéia não ter seguido o caminho do arianismo. De fato, São Jerônimo sublinha a maioria numérica dos arianos e a igualmente grande maioria dos bispos arianos. Historicamente, a leitura de Jerônimo deve, sem dúvida, ser relativizada, porque a maioria dos bispos e dos cristãos não optou diretamente pelo arianismo, mas hesitou perante uma terminologia que não se encontrava no Novo Testamento[184]. Dito isto, o Concílio permitiu, graças à força exercida pelas autoridades políticas, salvaguardar o sensus fidelium do povo de Deus. Neste sentido, pode dizer-se que a profissão de fé nicena é um eco fiel, vivido na Igreja, da exultação de Cristo: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, assim foi do teu agrado” (Mt 11,25-26).


Conclusão: Anunciar hoje Jesus, nossa Salvação, a todas as pessoas

121. A comemoração dos 1700 anos do Concílio de Niceia é um convite à Igreja para redescobrir permanentemente o tesouro que lhe foi confiado e dele tirar proveito para o partilhar com alegria, num impulso novo, aliás, numa “nova etapa da evangelização” [185]. Anunciar Jesus, nossa Salvação, com base na fé expressa em Niceia, tal como professada no Símbolo niceno-constantinopolitano, é, antes de mais, deixarmo-nos maravilhar pela imensidão de Cristo, para que todos se maravilhem; é reacender o fogo do nosso amor pelo Senhor Jesus, para que todos ardam de amor por Ele. Nada e ninguém é mais belo, mais vivificante, mais necessário do que ele. Dostoievski declamou-o com força: “Forjei dentro de mim um Credo, no qual tudo me parece claro e sagrado. Este Credo é muito simples: acreditar que não há nada mais belo, mais profundo, mais solidário, mais razoável, mais viril e mais perfeito do que Cristo”[186]. Em Jesus, homoousios do Pai, o próprio Deus vem nos salvar; o próprio Deus ligou-se à humanidade para sempre, a fim de realizar a nossa vocação de seres humanos. Como Filho monogênico, ele conforma-nos a si próprio como filhos e filhas amados do Pai, através da força vivificante do Espírito Santo. Aqueles que viram a glória (doxă) de Cristo podem cantá-la e deixar que a doxologia se torne uma proclamação generosa e fraterna, em outras palavras, um querigma.

122. Anunciar Jesus como nossa salvação com base na fé expressa em Niceia não ignora a realidade da humanidade. Não se afasta dos sofrimentos e das convulsões que assolam o mundo e que hoje parecem minar a esperança. Pelo contrário, enfrenta estes problemas professando a única redenção possível, conquistada por Aquele que experimentou a violência do pecado e da rejeição, a solidão do abandono e da morte, e que, do próprio abismo do mal, ressuscitou para nos levar, também a nós, na sua vitória, à glória da ressurreição. Este anúncio renovado também não ignora a cultura e as culturas, mas, pelo contrário, também aqui com esperança e caridade, escuta-as e enriquece-se com elas, convidando-as à purificação e elevando-as. Entrar numa tal esperança exige, evidentemente, a conversão, mas primeiramente de quem anuncia Jesus com a sua vida e com a sua palavra, porque a conversão é uma renovação da mente segundo a mente de Cristo. Niceia é o fruto de uma transformação do pensamento, implicada e tornada possível pelo evento Jesus Cristo. Da mesma forma, uma nova etapa de evangelização só será possível por parte daqueles que se deixarem renovar por este evento, por aqueles que se deixarem tomar pela glória de Cristo, que é sempre novo.

123. Anunciar Jesus, nossa Salvação, com base na fé expressa em Niceia, é estar particularmente atento aos mais pequeninos e vulneráveis dos nossos irmãos e irmãs. A nova luz que Cristo, o Filho homoousios do Pai que partilha a natureza humana comum, lança sobre a fraternidade entre todos os membros da família humana ilumina de modo particular os que mais precisam da esperança da graça. Estamos ligados por um laço radical e indestrutível a todos os que sofrem e são excluídos; todos somos chamados a trabalhar para que a salvação chegue a eles em especial. Anunciar significa aqui “dar de comer”, “dar de beber”, “reunir”, “vestir” e “visitar” (Mt 25,34-40), irradiar a glória humilde da fé, da esperança e da caridade para aquele em quem não se acredita, em quem ninguém espera e que não é amado pelo mundo. Anunciar significa fazer resplandecer estas virtudes teologais através da humilhação e do sofrimento, o que só pode vir de Cristo Salvador, e, por conseguinte, dar testemunho dele e ajudar a encontrá-lo. Mas não nos enganemos: estes crucificados da história são Cristo entre nós, no sentido mais forte possível: “foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40). O Crucificado-Ressuscitado conhece intimamente os sofrimentos deles, e eles conhecem os seus. Por isso, eles são os apóstolos, os mestres e os evangelizadores dos ricos e dos sãos. Trata-se de ajudar os pobres, mas sobretudo de entrar em relação com eles e viver com eles a fim de se deixar ensinar por eles, que compreendem melhor do que ninguém a imensidão do dom do Filho homoousios, que vai até à cruz, como professado em Niceia. Eles podem introduzir-nos na esperança que é mais forte que a morte, seguindo o Verbo de Deus que desceu ao mais baixo entre nós para nos elevar ao mais alto com ele[187].

124 Anunciar Jesus como nossa salvação, com base na fé expressa em Niceia, é anunciá-lo na e a partir da Igreja. Trata-se de o anunciar através do testemunho da fraternidade sem precedentes fundada em Cristo. Significa dar a conhecer as maravilhas pelas quais a Igreja “una, santa, católica e apostólica” é o “sacramento universal da salvação” e dá acesso à vida nova: o tesouro das Escrituras que o Símbolo interpreta, a riqueza da oração, da liturgia e dos sacramentos que brotam do batismo professado em Niceia, a luz do magistério que está a serviço da fé partilhada. Mas este tesouro “trazemos esse tesouro em vasos de argila” (2Cor 4,7). Isto é correto, porque o anúncio só será frutuoso se houver harmonia entre a forma da mensagem e o seu conteúdo, entre a forma de Cristo e a forma da evangelização. No mundo atual, é particularmente importante ter presente que a glória que contemplamos é a de Cristo, “manso e humilde de coração” (Mt 11,29), que proclamou: “bem-aventurados os mansos, pois eles herdarão a terra” (Mt 5,5). O Crucificado-Ressuscitado é verdadeiramente vitorioso, mas é uma vitória sobre a morte e o pecado, não sobre os adversários - não há perdedores no Mistério Pascal, exceto o perdedor escatológico, Satanás, o divisor[188]. O anúncio de Jesus, nossa Salvação, não é uma batalha, mas antes uma conformação com Cristo, que olhava para aqueles que encontrava com amor e compaixão (Mc 10,21; Mt 9,36) e se deixava guiar por outro, pelo Espírito do Pai[189]. O anúncio será frutuoso se for Cristo a agir em nós: “é bom recordar que, quando enviou os seus discípulos em missão, “o Senhor cooperava com eles” (Mc 16, 20). Ele está lá trabalhando, lutando e fazendo o bem conosco. De uma forma misteriosa, é o seu amor que se manifesta através do nosso serviço, é Ele próprio que fala ao mundo naquela linguagem que por vezes não tem palavras”[190].

 

[1]Francisco, Bula de proclamação do Jubileu Ordinário de 2025, Spes non confundit, n° 17.

[2] Efrém de Nisibe, Hymns of Nativitate, III, 3, ed. e trans. E. Beck, o.s.b., Louvain, 1959 (CSCO 186, p. 21; CSCO 187, p. 18-19 tradução modificada); tradução a partir da ed. francesa de F. Cassingena-Trévedy, o.s.b., Paris, Cerf, 2001 (SC 459, p. 64-65).

[3] Francisco, Discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional, 30 de novembro de 2023.

[4] “Desde que foi inicialmente acordado que o sínodo dos bispos se realizaria em Ancira, na Galácia, pareceu-nos agora, por muitas [razões], que seria melhor que se reunisse na cidade de Niceia, na Bitínia: tanto por causa dos bispos que vieram de Itália e de outras partes da Europa, como por causa do bom clima, e porque eu serei de perto um observador e participante nas coisas que estão prestes a acontecer”, Constantino, Carta aos Bispos, (H.-G. Opitz, Athanasius Werke III/1, 3. Urkunde 20; Berlin/Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1934/1935, pp. 41-42).

[5] Concílio de Calcedônia, preâmbulo (DH, 300).

[6] Concílio de Éfeso, 6ª essão dos cirilianos (DH, 265).

[7] Citado em K. Schatz, Los concilios Ecumênicos, Encrucijada en la historia de la Iglesia, Ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 41.

[8] “A Igreja Católica reconhece o valor conciliar, ecumênico, normativo e irrevogável, como expressão da única fé comum da Igreja e de todos os cristãos, do Símbolo professado em grego em Constantinopla, em 381, pelo Segundo Concílio Ecumênico. Nenhuma profissão de fé própria de uma tradição litúrgica particular pode contradizer esta expressão de fé ensinada e professada pela Igreja indivisa”, Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, “Les traditions grecque et latine concernant la procissão du Saint-Esprit”, 13 de setembro de 1995, in Documentation Catholique, n° 19, p. 941-945.

[9] Francisco, Discurso ao Dicastério para a Doutrina da Fé, 26 de janeiro de 2024.

[10] Seguimos a versão grega do símbolo niceno-constantinopolitano, salvo indicação em contrário.

[11] O tema de Deus Pai como criador está muito presente nos primeiros Padres da Igreja. Clemente de Roma diz “Pai e criador de todo o mundo”, Aos Coríntios, 19.2 e 35.3 (SC 167, p. 133 e 157); Justino de Nablus fala do “Pai e Senhor do universo”, Apologia a Antonino, 12.9; 61.3, em B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, Paris, Gall. B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, Paris, Gallimard (“La Pléïade”), 2016, p. 333 e 376; Taciano, o Sírio, fala também do “Autor dos espíritos” e do “Pai do sensível e do visível”, Aos Gregos, IV,3, ibid, p. 591. Platão considera Deus como “o autor e pai de todo o universo” (Timeu, 28c; 41a; ver também Epicteto, Diss. I,9,7).

[12] Ao contrário de Ésquilo, que fala do “τῶν θεῶν φθόνοV“, “a inveja dos deuses” (Os Persas, v. 362), veja-se Tomás de Aquino, Contra Gentiles, l. 1 cap. 89 n. 12: “Invidiam igitur in Deo impossibile est esse, etiam secundum suae speciei rationem: non solum quia invidia species tristitiae est, sed etiam quia tristatur de bono alterius, et sic accipit bonum alterius tanquam malum sibi”.

[13] H ilaire de Poitiers, De Trinitate, IX, 61, CCSL 62A, p. 440-441.

[14]Hipólito, C. Noet. 10,1-2. Tertuliano: “Ante Omnia enim Deus erat solus, ipse sibi et mundus et locus et omnia. Solus autem quia nihil aliud extrinsecus praeter illum. Ceterum ne tunc quidem solus ; habebat enim secum quam habebat in semetipso, rationem suam” (Adversus Praxean, 5,2, CCL 2, p. 1163).

[15]Martírio de São Policarpo em B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, p. 254; Justino, Apologie à Antonin, 63, ibid, p. 379-380.

[16] Ver o anátema dirigido contra Ário no final do símbolo de Nicéia (DH, 126).

[17] Ário, Carta a Eusébio de Nicomédia, 5 (H.-G. Opitz, Athanasius Werke, III-1, p. 3; Urkunde 1).

[18] Em leitura posterior a Niceia, Cromácio de Aquileia afirma: “Tal como a nossa primeira criação foi obra da Trindade, assim também a nossa segunda criação é obra da Trindade: O Pai não faz nada sem o Filho ou sem o Espírito Santo, pois o que é obra do Pai é também obra do Filho, e o que é obra do Filho é também obra do Espírito Santo” (Cromácio de Aquileia, Sermões, 18, 4, tomo II, texto crítico, notas e índice de J. Lemarié, tradução de H. Tardif, Paris, Cerf, SC 164, 1971, p. 14).

[19] A respeito destas “omissões” do Espírito Santo, ver Y. Congar, Revelação e experiência do Espírito. Paulinas, São Paulo, 2005, t. 1, p. 207-216. As análises de Congar incidem sobretudo nos séculos XIX-XX, mas os fenômenos que descreve continuam a existir, de forma mais sutil.

[20] “Credimus […] Patrem […] fontem et originem totius divinitatis”, 6e Concílio de Toledo (DH, 490). Ver também Agostinho, para quem o Pai é “o princípio de toda a divindade”, Agostinho, De Trinitate, vol. IV, c. xxix, PL, vol. XLII, col. 908.

[21] Versão do símbolo de Nicéia (325).

[22] “Não há outra espécie de Deus, mas o Pai e o Filho são um só” (Hilaire de Poitiers, De Trinitate, VIII, 41, CCSL 62A, p. 354).

[23] Ver B. Sesboüé, História dos Dogmas, vol. 1, O Deus da salvação, Loyola, São Paulo, 2002, p. 216.

[24] Versão latina do símbolo niceno-constantinopolitano, baseada na versão traduzida por Rusticus no século VI (cf. I. Ortiz de Urbina, Storia dei Concili Ecumenici, vol. I, LEV, 1994, p. 172).

[25] Ver Efrém e Gregório Palamas, mas também Ambrósio: Splendor paternae gloriae como comentário a lumen de lumine, em Sant'Ambrogio, Opere poetiche e frammenti. Inni - Iscrizioni - Frammenti, a cura di G. Banterle, G. Biffi, I. Biffi, L. Migliavacca, Milano-Roma, 1994, Inno II, p. 34-37.

[26] “A doutrina da Trindade não é um acréscimo e um enfraquecimento, mas uma radicalização do monoteísmo cristão”, K. Rahner, “Unicité et Trinité de Dieu en dialogue avec l'islam” (1978), in Œuvres, 22/1b, Dogmatique après le Concile. Fondement de la théologie, doctrine de Dieu et christologie, traduzido do alemão, Cerf, Paris, 2022, p. 203-221 (aqui: p. 213).

[27] Ver M. Wyschogrod, Abraham's Promise, Judaism and Jewish-Christian Relations, SCM Press, Londres, 2006, p. 178.

[28]D. Boyarin, Le Christ Juif, Cerf, Paris, 2019, p. 42-66; P. Lenhardt, L'Unité de la Trinité. À l'écoute de la tradition d'Israël, Éd. Parole et Silence, Paris, 2011; P. Schäfer, Two Gods in Heaven: Jewish Concepts of God in Antiquity, Princeton University Press, Princeton (NJ), 2020.

[29]D. Boyarin, Le Christ Juif, p. 55-56, por exemplo. Esta posição é atualmente considerada no mundo judaico como uma interpretação possível de Daniel no texto aramaico e de vários textos do período do Segundo Templo, embora seja também muito debatida.

[30] Pr 1,9.14; 8,1-36; Sb 1,7; 7,22-27; Si 24,1-22. Alguns exegetas usam também a expressão “duoteísmo” a propósito da Sabedoria personificada, como J. Trublet [ed.], La Sagesse Biblique. De l'Ancien au Nouveau Testament, “Lectio Divina 160”, Cerf, 1995.

[31]L. W. Hurtado, One God, one Lord. Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism, T&T Clark, Edimburgo 21998 (1988); R. Bauckham, “God Crucified” (1996), em R. Bauckham, Jesus and the God of Israel, Paternoster, Crownhill (UK) 2008, p. 1-59. Por exemplo, parte do Símbolo niceno foi formulado na primeira literatura judaico-cristã primitiva, as Odes de Salomão, que datam de cerca de 70-125 d.C. (Ode 14,12-17, em A. Rahlfs, R. Hanhart [ed.], Septuaginta: Edição SESB, Stutgart 2006).

[32] A versão latina do Credo distingue entre o fato de Cristo se ter encarnado “pelo (de)” Espírito Santo e “da (ex)” Virgem Maria.

[33]J. Ratzinger, Einführung in das Christentum, Vorlesungen über das Apostolische Glaubensbekenntnis, Vorwort zur Neuausgabe (2000), in: JRGS 4, p. 52 (trad. brasileira: Introdução ao Cristianismo. Preleções sobre o Símbolo Apostólico. Loyola, São Paulo, 8ª ed., 2015).

[34] “Seguindo, pois, os santos Padres, com unanimidade ensinamos que se confesse que um só e o mesmo Filho, o Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na sua divindade e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem <composto> de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade, semelhante em tudo a nós, menos no pecado [cf. Hb 4,15], gerado do Pai antes dos séculos segundo a divindade e, nestes últimos dias, em prol de nós e de nossa salvação, <gerado> de Maria, a virgem, a Deípara, segundo a humanidade”, Concílio Ecumênico de Calcedônia (DH, 301).

[35] “O homem, constituído como criatura, não teria sido divinizado se o Filho não fosse verdadeiro Deus; e o homem não teria podido estar na presença do Pai se aquele que se revestiu do corpo não fosse, por natureza, o seu verdadeiro Verbo. Do mesmo modo, não teríamos sido libertados do pecado e da maldição, se a carne vestida pelo Verbo não fosse carne humana (porque não teríamos nada em comum com tudo o que nos é estranho)” (Atanásio de Alexandria, Traité contre les Ariens, II, 70, texto da edição K. Metzler - K. Savvidis, notas de Lucian Dinca, tradução de Ch. Kannengiesser, Paris, Cerf, SC 599, 2019, p. 237-239).

[36] Ibid, III, 7.3, p. 297.

[37] Esta expressão encontra-se nos Padres, onde outros atores da história são por vezes mencionados juntamente com Pilatos, como “Herodes, o Tetrarca” (Inácio de Antioquia, Carta aos Esmirnenses, I, 2, in B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, p. 213). Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, p. 213) ou “Tibério César” (Justino, Apologia a Antonino, 13,3, ibid., p. 334).

[38] “[...] a Antiga Aliança, jamais revogada por Deus”, João Paulo II, Encontro com representantes da comunidade judaica de Mainz, 17 de novembro de 1980, n. 3; “A Antiga Aliança nunca foi revogada”, Catecismo da Igreja Católica, 1992, n. 121; cf. Francisco, Evangelii Gaudium, 2013, n. 247.

[39] Concílio Ecumênico Vaticano II, Declaração Nostra aetate, n.º 4.

[40] Já em Irenée de Lyon, Contre les hérésies, IV, 34,3, ed. A. Rousseau, tome II, SC 100, Paris, Cerf, 1965, p. 850-853: “Como é que os profetas poderiam ter predito a vinda do Rei, ter anunciado antecipadamente a boa nova da liberdade que lhe seria dada, ter pregado antecipadamente tudo o que Cristo fez por palavras e atos, bem como a sua Paixão, e ter anunciado antecipadamente a nova aliança, se tivessem recebido a inspiração profética de outro deus que, segundo vós, desconhecia o Pai inexprimível e o seu reino, e as suas economias, que o Filho de Deus realizou nestes últimos dias ao vir à terra? Ver A. De Halleux, “La profession de l'Esprit-Saint dans le Symbole de Constantinople”, Revue théologique de Louvain, 10e année, fasc. 1, 1979, p. 5-39. Um símbolo de Epifânio de Salamina, datado de 374, desenvolve ainda mais este tema: “Cremos no Espírito Santo, que falou na Lei e pregou pelos Profetas, que desceu sobre o Jordão, fala nos Apóstolos, habita nos santos” (DH, 44).

[41] João II, Carta Olim quidem, março de 534 (DH, 401). “Se alguém não confessa que nosso Senhor Jesus Cristo, crucificado em sua carne, é verdadeiro Deus, Senhor da glória e um da santa Trindade, seja anátema”, II Concílio de Constantinopla, anátema 10 (DH, 432).

[42] “O que já se realizou em Cristo deve ainda realizar-se em nós e no mundo. A realização definitiva virá no fim, com a ressurreição dos mortos, os novos céus e a nova terra. A expetativa messiânica judaica não é vã. Pode tornar-se um poderoso estímulo para nós, cristãos, mantermos viva a dimensão escatológica da nossa fé. Tal como eles, nós vivemos na expetativa. A diferença é que, para nós, Aquele que virá terá as caraterísticas do Jesus que já veio e que já está presente e ativo entre nós” (Pontifícia Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas Escrituras Sagradas na Bíblia cristã, 2001, II, n. 21).

[43] Catecismo da Igreja Católica, 1992, III, n.º 1848.

[44] Concílio de Orange (529), cânone 1 (DH, 371) e cânone 2 (DH, 372).

[45] Segundo Irineu, Jesus refere-se aqui “àqueles que receberam a filiação adotiva” nele. Cf. Ireneu de Lyon, Contre les hérésies, Dénonciation et réfutation de la gnose au nom menteur, ed. A. Rousseau, Paris, Cerf, 19913, livro III, 6,1, p. 288-289.

[46] “Cristo, o homem que está em Deus, eternamente uno com Deus, é ao mesmo tempo a abertura perpétua de Deus ao homem. Ele é, portanto, o que chamamos de “céu”, pois o céu não é um espaço, mas uma pessoa, a pessoa daquele em quem Deus e o homem estão para sempre unidos sem separação. E nós vamos ao céu, sim, entramos no céu, na medida em que vamos a Jesus Cristo e nele ingressamos”, J. Ratzinger, JRGS 6/2, p. 861. Ver também H. U. von Balthasar, “Eschatologie”, em J. Feiner, J. Trütsch e F. Böckle (eds.), Fragen der Theologie heute, Einsiedeln, Zurique, Colônia, 1957, p. 403-421 (aqui p. 407-408).

[47] Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Pastoral, Gaudium et spes, 22.

[48] João da Cruz, Le Cantique Spirituel A 38, 3-7; Le Cantique Spirituel B 39, 2-7, em João da Cruz Obras Completas, trans. M. du Saint-Sacrement, Cerf, Paris, 1997, p. 519-522; 1425-1428.

[49] Paulo VI, “Discurso do Beato Paulo VI na última sessão pública do Concílio Vaticano II”, in Concílio Ecumênico Vaticano II. Documentos. Ed. CNBB, Brasília, 2018, p. 895.

[50] Concílio de Calcedônia, DH, 301.

[51] Cf. o Símbolo dos Apóstolos.

[52] Ver Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles, IV, 81.

[53] B. Pascal, Les Pensées, ed. Jacques Chevalier, Paris, Gallimard (“La Pléïade”), 1954, p. 1207, fgt 258; cf. Francisco, Carta Apostólica Sublimitas et Miseria hominis, 19 de junho de 2023, para o IV centenário do nascimento de Blaise Pascal.

[54] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, 48; Congregação para a Doutrina da Fé, Dominus Iesus, 2000, 20.

[55] Hipólito de Roma, Traditio Apostolica, 6, Aschendorff, Münster, 1963, p. 19.

[56] “Como a indivisa bondade de Deus realmente se difunde de diversos modos nas criaturas, da mesma forma também a única mediação do Redentor não exclui, mas desperta nas criaturas uma variada cooperação, participada de uma única fonte”, Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática Lumen gentium, 62.

[57] Concílio Ecumênico Vaticano II, Passado. Gaudium et spes, 24-25.

[58] Ibid, II, 22.

[59] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, 1.

[60] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Sacrosanctum Concilium, Apêndice.

[61] Teodoreto de Círio, História Eclesiástica, “Carta Sinodal à Igreja de Alexandria”, I,9, tomo I, livro I-II, texto grego (GCS, NF 5, 19983) de L. Parmentier e G.C. Hansen, com anotações de J. Bouffartigue, introdução de A. Martin, tradução de P. Canivet, revista e anotada por J. Bouffartigue, A. Martin, L. Pietri e F. Thelamon. Bouffartigue, introdução de A. Martin, tradução de P. Canivet, revista e anotada por J. Bouffartigue, A. Martin, L. Pietri e F. Thelamon, Paris, Cerf, SC 501, p. 220-221 e 227.

[62] Ver Lettera alle Chiese, publicada em H. Pietras, Concilio di Nicea (325) nel suo contesto, GBPress, Roma, 2021, p. 204-208 (Eusébio, Vita Constantini, 3.17-20); “Infelizmente, com esta decisão, foi abandonada a data comum da Páscoa entre cristãos e judeus”, Card. K. Koch, “Verso una celebrazione ecumenica del 1700° anniversario del Concilio di Nicea (325-2025)”, L'Osservatore Romano, 30 aprile 2021.

[63] João Paulo II, Encontro com a comunidade judaica de Roma, 13 de abril de 1986, 4, e Benoît XVI, Lumière du monde. Le pape, l’Église et les signes des temps. Un entretien avec P. Seewald, trad. N. Casanova et O. Mannoni, Paris, Bayard, 2011, p. 114 (trad. Port. Luz do mundo. O Papa, a Igreja e os sinais dos tempos. Entrevista a P. Seewald, tradutores: Sofia Favila Vieira, Maria Inês Barão Reis e Maria Teresa Martins Silva. Cascais, Lucerna, 2010).

[64] Atanásio de Alexandria, Vida e conduta do nosso pai Santo António, Spiritualité orientale, n.º 28, trans. B. Lavaud, o.p., Bégrolles en Mauges, 1979, p. 75.

[65] “Se a nós também não fosse dada a possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele, seria como se declarássemos esgotada a novidade do Verbo feito carne. Pelo contrário, a Encarnação, para além de ser o único acontecimento novo conhecido na história, é também o método que a Santíssima Trindade escolheu para nos abrir o caminho da comunhão. A fé cristã ou é um encontro com Ele vivo, ou não existe. A liturgia garante-nos a possibilidade de tal encontro”, Francisco, Carta Apostólica Desiderio desideravi, 2022, 10-11.

[66] Ver À Diognète, V,10-11, em B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Primeiros escritos cristãos, p. 814.

[67] Atenágoras, Legatio (Supplicatio) pro Christianis (176-180 d.C.) 12,3; cf. 24,2, SC 379, p. 108 e p. 160.

[68] Ambrósio, De fide ad Gratianum I, 1,8, (CSEL 78, p. 7).

[69] Hilaire de Poitiers, De Trinitate II,1 (CCSL 62, p. 38).

[70] Efrém de Nisibe, De fide (Contra os Disputadores) trad. J. B. Morris, Select Works of St. Ephrem the Syrian, 1847, ritmo 52, n.º 1 (Morris, p. 273); 59, n.º 2 (ibid., p. 300); 76, n.º 1 (ibid., p. 347).

[71] Atanásio, Tratado contra os Arianos, SC 599, II, 41,4, p. 144-145, e 41,5, p. 146-147.

[72] Ver também Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito Santo, 26, SC 17bis, p. 337: “Como é que somos cristãos? Pela fé, dirão todos. Mas como é que somos salvos? Porque renascemos do alto, evidentemente, pela graça do batismo. De que outra forma poderíamos ser salvos? Depois de termos adquirido o conhecimento desta salvação operada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, abandonaríamos “a forma de ensino” (typon didachès, Rm 6,17) recebida? [...] Pois se o batismo é para mim o princípio da vida e se o primeiro dos dias é o da regeneração, é claro que a palavra mais preciosa será também a que foi dita quando recebi a graça da adoção filial”. Do mesmo modo, no que respeita ao Espírito Santo: Atanásio, 1a carta a Serapião, nº 30 (Atanásio, Werke I/1 p. 523-526).

[73] Atanásio, Tratado contra os Arianos, SC 599, II, 42,3, p. 149; Basílio de Cesareia, De Spiritu sancto, 26, SC 17bis, p. 336-339; Gregório de Nissa, Discurso Catequético, I,2,e, texto grego de E. Mühlenberg, introdução, tradução e notas de R. Winling, Paris, Cerf, SC 453, 2000, p. 153.

[74] Cf. Ambrósio, De fide ad Gratianum I, 9,58 (CSEL 78, p. 25); também Zeno de Verona, Sermones, liber II, serm. II,5,9 (CCSL 22, p. 167).

[75] Ver Atanásio, De decretis Nicaenae synodi, 33-1 a 33-7, tradução em L. Dîncă, Le Christ et la Trinité chez Athanase d'Alexandrie, Paris, Cerf, Patrimoines, p. 376-377, 2012 e notas 2 e 3, p. 376.

[76] Hilaire de Poitiers, Contre Constance, 16, introdução, texto crítico, tradução, notas e índice de A. Rocher, Paris, Cerf, SC 334, 1987, p. 200-201. Nele, Hilário defende Nicéia contra a acusação de não estar em conformidade com a Escritura: segundo ele, novas doenças exigem uma nova composição de remédios. Por exemplo, a expressão “inassimilável”, que era um cavalo de batalha de Ário, Aécio e Eunômio, também não é uma palavra bíblica para o Pai: “Decretais que ‘o Filho é semelhante ao Pai [similem Patri Filium]’ˮ, a expressão não é proclamada nos Evangelhos: porque não a repudiais?”.

[77] Atanásio, Epistula ad Afros episcopos, 1,1.3 (Atanásio, Werke II/1, p. 322s.); o Credo Niceno é “suficiente”. Cf. Atanásio, Epistula ad Epictetum, 1 (ibid., I/1, p. 705s.).

[78] O termo “niceno” poderia também ser aplicado a formulações de confissões de fé que alargassem o símbolo niceno, pelo menos enquanto mantivessem o seu conteúdo e não adotassem doutrinas opostas. Ver DH, 300 (e supra, § 4).

[79] Concílio de Calcedônia, Actio 3, 10.12; 2,1,2, 79 [gr.]; 2,3,2, 5f [lat.]) (DH, 300); a “definição” (horos) de Calcedônia baseia-se em Niceia, com o Símbolo dos 150 Padres reunidos em Constantinopla (ACO 2,1,2 , 126-129 [gr]): “Ora, para o perfeito conhecimento e fortalecimento da reta fé, este sábio e salutar Símbolo da graça divina teria bastado por si mesmo, pois ensina sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo o que é definitivo, e coloca a encarnação do Senhor diante dos olhos daqueles que estão prontos para aceitá-la com fé’. Nas palavras do autor: “Sufficeret quidem ad plenam cognitionem pietatis et confirmationem sapiens hoc et salutare divinae gratiae Symbolum; de Patre enim et de Filio et de Spiritu sancto perfectionem docet et inhumanationem fideliter accipientibus repraesentat” (COeD, 1962, p. 60).

[80] Francisco, Bula de proclamação do Jubileu Ordinário do ano 2025, Spes non confundit, 17.

[81] Trata-se de uma referência simbólica a Gn 14,14.

[82] Atanásio, De synodis 5, 1-3 (Atanásio, Werke II/1 p. 234).

[83] Basílio de Cesareia, Homilia 16 in illud “In principio erat Verbum”, PG 31, col. 471-482. Note-se, no entanto, que o Símbolo, ao contrário do prólogo de João, evita o termo “Logos”. Sendo um conceito central da filosofia grega, foi quase inevitavelmente entendido de forma subordinacionista (ariana) pelos Padres familiarizados com a filosofia grega.

[84] “Quem, como Fotino ou Ário, ‘não acredita que Cristo é Deus, ou que o Filho vem do Pai’, insulta o evangelista João” (Cromácio de Aquileia, Sermo 21,3, SC 164, p. 44). “Para aquele que segue Cristo há sempre luz do dia, pois ele caminha na luz eterna” (Sermo 18,1, SC 164, p. 8). “O trono de Deus é um só, o trono da majestade do Pai e da majestade do Filho”, “não há diferença de dignidade” (Sermo 8,4, SC 164, p. 192-195).

[85] Zeno de Verona, Sermones, liber II, sermo II, 5, nos. 9 e 10, CCSL 22, p. 167; sermo II, 8, p. 176-178.

[86] João Crisóstomo, Três Catequeses Batismais, III,1, introdução, texto crítico, tradução e notas de A. Piédagnel, com a colaboração de L. Doutreleau, s.j., Paris, Cerf, SC 366, 1990, p. 214-215.

[87] Agostinho de Hipona, De agone christiano, 18, CSEL 41; De fide et symbolo, 5 e 18, CSEL 41. O debate teológico propriamente dito com os homoianos é conduzido por Agostinho em De Trinitate I - VII, bem como em Contra sermonem Arianorum e Contra Maximinum haereticum Arianorum episcopum (Augustinus, Opera - Werke, latein-deutsch: Antiarianische Schriften, 2008).

[88] Gregório de Nissa, Discurso Catequético, 39, 2, texto grego de Mühlenberg, introdução, tradução e notas de Raymond Winling, SC 453, Paris, Cerf, 2000, p. 329-331: “Uma mente astuta deve, portanto, necessariamente, em todo caso, escolher entre as duas partes seguintes: ou acreditar que a santa Tríade é da ordem da natureza incriada, e assim tomá-la, no nascimento espiritual, como fonte de sua própria vida; ou então se considera que o Filho e o Espírito Santo são estranhos à natureza de Deus que é primeiro, verdadeiro e bom, isto é, à natureza do Pai, não incluir esta crença na fé que adota no momento da regeneração, para evitar entrar involuntariamente na natureza imperfeita que precisa de alguém que a emende e voltar assim, de algum modo, ao que lhe é conatural, devido ao fato de a sua fé se ter afastado da natureza supereminente”.

[89] Ambrósio, In Lucam IV,67, CSEL 32, p. 173.

[90] A. Grillmeier, “Das “Gebet zu Jesusˮ und das “Jesusgebetˮ”“, in Fragmente zur Christologie. Studien zum altkirchlichen Christusbild, Freiburg 1997, p. 357-371.

[91] 2Cor 12,8.9; Rm 10,12; 2Pd 3,18; invocações inseridas na liturgia: 1Cor 16,22; Ap 22,20; Didaquê 10,6.

[92] Em particular, Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 1,3-10; 1Tm 3,16; Ap 5,6-14.

[93] Ver De oratione em Orígenes, De la prière ; Exhortation au martyre, introdução, tradução e notas de G. Bardy, Paris, Librarie Lecoffre-Gabalda, 1932, X,2, p. 55 ; XV,1, p. 77 : “Se nós entendemos o que é a oração, talvez entendamos que não devemos orar a nenhum ser produzido e nem mesmo a Cristo”; XVI,1: p. 81-82; Contra Celsum, VIII, 13, éd. et trad. M. Borret, s.j., Paris, Cerf, SC 150, 1969, p. 200-203.

[94] Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito Santo, 25-29.68, SC 17bis, p. 334-350; p. 488-490.

[95] Por exemplo, Atanásio, que utiliza a doxologia tradicional de forma anti-sabeliana, e Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito Santo, 3.4.16, SC 17bis, p. 256-260 e p. 298-300, que sublinha a diferença entre oikonomia (mediação salvífica de Cristo) e theologia (filhos de igual importância).

[96]Traditio apostolica: durante a consagração dos bispos e presbíteros, bem como durante a oração eucarística, a doxologia final é a seguinte: “pelo teu servo Jesus Cristo, por quem seja dada glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”; Orígenes, Homélies sur S. Luc: texte latin et fragments grecs, XXXVII, 5, introduction, traduction et notes par H. Crouzel, F. Fournier, P. Périchon, Paris, Cerf, SC 87, 1962, p. 440-441; Gregório Nazianzeno, Oratio 19, n° 17, PG 35, col. Périchon, Paris, Cerf, SC 87, 1962, p. 440-441; Grégoire de Nazianze, Oratio 19, n° 17, PG 35, col. 1064 : “uma só e mesma glória divina ao Pai, ao Filho, ao Santo Espírito”; Oratio 17, n° 13, PG 35, col. 981 : “em Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem seja dada glória, poder, honra e domínio, com o Pai e o Espírito Santo, como Ele era e como há de ser pelos séculos dos séculos”.

[97] Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito Santo, XXIX,73, SC 17bis, p. 511. O exemplo do bispo Leôncio de Antioquia mostra como a questão da forma da doxologia podia tornar-se explosiva na vida das Igrejas locais: para não se desentender com os arianos ou com os seus adversários, já não pronunciava as palavras da doxologia em voz alta, mas “só se ouvia a conclusão: ‘por toda a eternidade’”: Teodoreto de Ciro, Hist. eccl. 2,24,3, SC 501, p. 446.

[98] Basílio de Cesareia, Epistula 159, 2; ep. 125, 3, Courtonne II, p. 86 f., depois p. 33 f. Ver também Sobre o Espírito Santo, VII,16, SC 17bis, p. 298-301; X,24, p. 332-335; X,26, p. 336-339.

[99] Texto em A. Grillmeier, Fragmente zur Christologie, Friburgo 1997, p. 365.

[100] Grégoire de Nysse, Lettres, introdução, tradução e notas de P. Maraval, Paris, Cerf, SC 363, p. 283-285.

[101] Cassiodoro, Expositio psalmorum, prooema nº 17, CCSL 97, p. 22-23.

[102]II Sínodo de Vaison (524 d.C.), cânone 5, Mansi 8, col. 725: “Porque não só na sede apostólica, mas também por todo o Oriente e toda a África ou Itália, por causa da astúcia dos hereges, que blasfemam não ter sido o Filho de Deus sempre com o Pai, mas ter começado no tempo, após o Glória ao Pai, etc. é permitido acrescentar a cláusula: Como era no princípio, etc., também nós decidimos que isso deveria ser dito em todas as nossas igrejas” (“Quia non solum in sede apostolica, sed etiam per totum Orientem et totam Africam vel Italiam propter Haereticorum astutiam, qui Dei filium non semper cum Patre fuisse, sed a tempore coepisse blasphemant, in omnibus clausulis post Gloriam patri etc. Sicut erat in principio licitur; etiam et nos in universis ecclesiis nostris hoc ita dicendum esse decernimus”).

[103] Sozómeno, Hist. eccl. 8, 8, 1-3, GCS NF 4, p. 360s.; Ambrósio, Contra Auxentium sermo de basilicis tradendis n° 34, CSEL, 82/3, p. 105.

[104] De Nativitate IV, 143-214 e XI. O texto De Nativ. IV, 154-156 é muito claro: “Enquanto estava deitado no seio de sua Mãe / no seu seio todas as criaturas estavam deitadas / Ele estava silencioso como um bebê / e, no entanto, fez com que as suas criaturas cumprissem / todas as suas ordens / pois sem o Primogênito, / nenhum homem pode / aproximar-se da Essência / só Ele é capaz de o fazer” (ed. Beck, Lovaina 1959, CSCO 186, p. 39; 187, p. 34; trans. F. Cassingena-Trévedy, o.s.b., Paris, Cerf, 2001, SC 459, p. 103).

[105]Hino De fide LXXVI, 1-3. 7, (ed. Beck, Louvain, 1955, CSCO 154, p. 232-233; 155, p. 198-199; tradução inglesa, J. T. Wikes, St. The Hymns on Faith, Washington D.C., CUA Press, 2015, p. 361-362); ibid, VI, 1-8 (CSCO 154, p. 24-27; 155, p. 18-20; Wikes, p. 90-93).

[106] De fide, XL e LXXIII.

[107] De fide, LII, 1-3 (CSCO 154, p. 161-162; CSCO 155, p. 138; Wikes, p. 269).

[108] Efrem de Nisibe, Hinos contra as heresias. Hinos contra Juliano, volume I. Hymns against Heresies I-XXIX, XXII, 20, CSCO Critical Text por E. Beck, o.s.b.; introdução, tradução, notas e índice de D. Cerbelaud, o.p., Paris, Cerf, SC 587, 2017, p. 399. Note-se que, mesmo que o ensinamento de Santo Efrém esteja perfeitamente de acordo com a ortodoxia nicena, o vocabulário e a expressão não são os de Niceia, o que se deve certamente à forma poética e não discursiva conscientemente escolhida para ele ensinamento. Cf. Wikes, p. 36-39.

[109] Balaï (Balaeus), Gebete, BKV 26, p. 92 e segs.; Isaac de Antioquia, 1º poema sobre a Encarnação (S. Isaaci Antiochi Opera omnia I, ed. G. Bickell, 1873, p. 23).

[110] “Cristo é figura do Pai, nós, figura e imagem de Cristo; / Nós, criados à semelhança do Senhor pela bondade do Pai, / Cristo, à nossa semelhança, depois dos tempos devia vir”, Prudêncio, Apotheosis, linea 309-311, CCSL 126, p. 87.

[111] “Omnem novitatem attulit, semetipsum afferens”: Ireneu de Lyon, Contra as heresias, IV,34,1, ed. A. Rousseau, tomo II, SC 100, Paris, Cerf, 1965, p. 846-847 (diversas vezes citado por Henri de Lubac); Francisco, Evangelii gaudium, 11. Em tradução livre: “Em sua vinda, [Cristo] trouxe toda novidade”.

[112] Sobre esta distinção: Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm. Dei Verbum, 2-5 e 7-8.

[113] Ireneu de Lyon, Contra as Heresias, IV,5,1, volume II, SC 100, p. 426-427.

[114] “Se aceitamos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior. E o testemunho de Deus é este: ele testemunha a respeito do seu Filho. Aquele que crê no Filho de Deus tem este testemunho dentro de si” (1Jo 5,9-10a).

[115] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm. Dei Verbum, 2.

[116] J. Ratzinger, Gesammelte Schriften, Band VI/1, 408f, Herausgeber: Gerhard Ludwig Müller, Freiburg im Breisgau, Herder Verlag, 2014; J. Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré, vol. VI/1, Contribuições para a Cristologia, Brasília, Ed. CNBB, 2017, p. 399.

[117] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm. Dei Verbum, 2.

[118] Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q.25, a.1, Resp.

[119] Paulo sublinha que Cristo nos introduz na própria mente de Deus, pois cita Isaías 40,13: “Quem conheceu o pensamento do Senhor (LXX: noun Kuriou; Heb: ruah Adonai), quem o aconselhará? Nós, todavia, temos o pensamento de Cristo” (cf. também Rm 11,34). Ver M. Quesnel, La première épître aux Corinthiens, Commentaire Biblique: Nouveau Testament, Cerf, 2018, p. 88-92.

[120] Francisco, Carta Encíclica Lumen Fidei, 2013, 18.

[121] Ibid., 27, com citação de Gregório Magno, Homiliae in Evangelia, II, 27, 4: PL 76, 1207.

[122] Ver Francisco, Discurso em Nápoles por ocasião do simpósio “A teologia depois Veritatis Gaudium no contexto mediterrâneo”, 21 de junho de 2019.

[123] “Pela grandeza e beleza das criaturas, podemos contemplar, por analogia, o seu Autor” (Sb 13, 5); Tomás de Aquino, Scriptum super Sententiis liber I, q. 1, a. 2, ad 2, que se refere à “analogia creaturae ad creatorem”.

[124] M. Lochbrunner, Analogia Caritatis. Darstellung und Deutung der Theologie Hans Urs von Balthasars, Freiburg im Brisgau - Basel - Wien, Herder, “Freiburger Theologische Studien”, nº 120, 1981, p. 62 e p. 292-293; Comissão Teológica Internacional (CTI), Teologia, cristologia, antropologia, 1981, D, 1: “O anúncio de Jesus Cristo, Filho de Deus, é apresentado sob o signo bíblico do ‘por vós’. É por isso que toda a cristologia deve ser tratada do ponto de vista soteriológico. É, portanto, correto, em certo sentido, que os autores modernos tenham tentado elaborar uma ‘cristologia funcional’. Mas, em contrapartida, também deve ser sustentado que a ‘existência para os outros’ de Jesus Cristo não pode ser separada nem de sua relação com o Pai nem de sua comunhão íntima com ele e que, consequentemente, deve ser fundada obrigatoriamente em sua filiação eterna. A pró-existência de Jesus Cristo, através da qual Deus se comunica aos homens, pressupõe a sua pré-existência”.

[125] É por isso que São Tomás de Aquino insiste no fato de Adão ter sido dotado de graça na sua criação, sem a qual não teria podido realizar a sua vocação humana. Tomás de Aquino, Scriptum super Sententiis liber II, d.29, q.1, a.2; d.30, q.1, a.1; Summa Theologica, I, q.95, a.1; I-II, q.109, a.5.

[126] J. Ratzinger/Bento XVI, Pontos de orientação cristológica, traduzido do alemão por Cornelius Pfeifer, Brasília, Ed. CNBB, 2025 (OCJR VI/2; JRGS VI/2, p. 701). “Os presentes argumentos foram apresentados pela primeira vez no Rio de Janeiro durante um congresso cristológico organizado em setembro de 1982 pelo CELAM”.

[127] Ibid. (OCJR VI/2; JRGS VI/2, p. 702).

[128] “Em verdade, em verdade vos digo: o Filho não pode fazer nada por si mesmo; ele faz apenas o que vê o Pai fazer. O que o Pai faz, o Filho faz de modo semelhante. O Pai ama o Filho e lhe mostra tudo o que ele mesmo faz. E lhe mostrará obras maiores ainda, de modo que ficareis maravilhados” (Jo 5,19-20); “Esta é a mensagem que ouvistes desde o início: que nos amemos uns aos outros” (1Jo 3,11).

[129] J. Ratzinger/Benedito XVI, Pontos de orientação cristológica (OCJR VI/2; JRGS VI/2, p. 707).

[130]Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate, 33.

[131] P. Florensky, La colonne et le fondement de la vérité, L'Âge d'Homme, Lausanne, 1975, p. 42 (tradução modificada). Quando Florensky fala da “definição da Igreja”, mais do que da instituição eclesial, ele se refere ao mistério da Igreja em toda a sua profundidade mística e teológica.

[132] “Τοῦ Θεοῦ Λόγον ἀρνούμενοι, εἰκότως καὶ λόγον παντός εἶσιν ἕρημοι”, Atanásio, Il credo di Nicea, I, 2,1, trans. E. Cattaneo, Roma, Città Nuova, 2001; (cf. PG 25, 425 D-428 A); tr. cit. p. 57; Atanásio, De decretis Nicaenae synodi, em L. Dîncă, Le Christ et la Trinité chez Athanase d'Alexandrie, p. 334-380.

[133] Agostinho, Confissões, III, VI, 11, CCL 27, p. 33; Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, q.104, a.1, Resp.

[134] Supra, § 32 a 37.

[135] CTI, Teologia, cristologia e antropologia, 1982, C.

[136] Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 115.

[137] Gaudium et Spes, 53: “É próprio da pessoa humana alcançar a verdadeira e plena humanidade somente através da cultura, isto é, cultivando os bens e valores da natureza”.

[138] Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 115; Id., Carta sobre o papel da literatura na formação, 17 de julho de 2024; Id., Carta sobre a renovação do estudo da história da Igreja, 21 de novembro de 2024.

[139] Francisco, Constituição Apostólica Veritatis Gaudium, 2, que se baseia em Paulo VI, Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, 19.

[140] Concílio Ecumênico Vaticano II, Decreto Ad gentes,11.

[141] Por exemplo, o Egô eimi do quarto Evangelho, ou a terminologia de Hb 1,3 ou 2Pd 1,4.

[142] “Quando a Igreja entra em contato com grandes culturas que não tinha encontrado antes, não pode por de parte o que adquiriu através da sua inculturação no pensamento greco-latino. Rejeitar uma tal herança seria ir contra o desígnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos caminhos do tempo e da história”, João Paulo II, Encíclica Fé e Razão, 72.

[143] Ibid, 71.

[144] Ver o tema da “teologia da escuta” como antídoto para a “síndrome de Babel”, Francisco, Discurso em Nápoles por ocasião do simpósio “A teologia depois Veritatis Gaudium no contexto mediterrâneo”, 21 de junho de 2019.

[145] Esta purificação e transfiguração das culturas é o que permite evitar o risco do relativismo, sublinhado pela Congregação para a Doutrina da Fé, Dominus Iesus, 4.

[146] João Paulo II, Encíclica Fé e Razão, 70. Sobre a manutenção da identidade cultural: ibid, 71.

[147] A Diogneto, V,1-4, em B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, p. 813. Tradução do Ofício de Leituras, Liturgia das Horas, quarta-feira da 5ª semana da Páscoa.

[148] “Acontecerá, nos dias que hão de vir, que o monte da Casa do Senhor será estabelecido acima dos montes, e se elevará sobre as colinas, e para ele afluirão todas as nações. Povos numerosos irão dizendo: ‘Vinde! Subamos ao monte do Senhor, à Casa do Deus de Jacó. [...] Pois de Sião sairá a Lei; e a palavra do Senhor, de Jerusalém. [...] Nação contra nação não levantará espada, e não se adestrarão mais para a guerra” (Is 2,2-4; cf. Mq 4,1-4); “A minha casa será chamada: ‘Casa de oração para todos os povos’” (Is 56,7; Zc 14,16).

[149] É impressionante como Paulo, ao anunciar o Evangelho na direção estabelecida por Pentecostes, celebra a unidade da família humana no Areópago: “De um só homem ele fez toda a espécie humana, para habitar sobre toda a face da terra, tendo estabelecido o ritmo dos tempos e os limites da sua habitação” (At 17,26).

[150] João Paulo II, Encíclica Fé e Razão, 95-96.

[151] Alexandre de Alexandria, Carta a Alexandre de Bizâncio, 5 (FNS 8,5; Urkunde 14; Dokumente, 17, p. 46-55).

[152] CTI, A sinodalidade na vida e na missão da Igreja, 2018, I, n.º 19.

[153] Cipriano, Epistula 14, 4 (CSEL III, 2, p. 512); CTI, A sinodalidade, nº 25, que deve ser consultado para mais pormenores, segue de perto este desenvolvimento sobre Inácio de Antioquia e Cipriano de Cartago.

[154] CTI, A Sinodalidade, 28.

[155] Ver J. A. Brundage, Medieval Canon Law, Londres-Nova Iorque, Longman, 1995, p. 5.

[156] Um sínodo é “governado de acordo com o princípio do consenso e da concórdia (harmonia) expresso na concelebração eucarística, como está implícito na doxologia final do Cânone Apostólico, n.º 34”, Comissão Internacional Conjunta para o Diálogo Teológico entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa, Documento de Ravenna: Ecclesiological and Canonical Consequences of the Sacramental Nature of the Church, Ecclesial Communion, Conciliarity and Authority, 26; “A Igreja [revela-se] católica na synaxis da Igreja local” (ibid., 22).

[157] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Sacrosanctum Concilium, 10; CTI, A Sinodalidade, 47.

[158] CTI, A Sinodalidade, 29.

[159] Rousselot considerava que certos procedimentos heurísticos de S. Tomás correspondiam a uma “prioridade e anterioridade recíprocas” de dois princípios inseparáveis ordenados em relação um ao outro (P. Rousselot s.j., “Les Yeux de la foi”, RSR, 1910, p. 448).

[160] Agostinho de Hipona: “Crede ut intelligas”, Sermo 43, 7 e 9 (CCSL 41, Pars XI,1, Sermones de Vetere Testamento, p. 511 e 512); Anselmo: “Credo ut intelligam”, Proslogion, 1.100, em Anselmo de Cantuária, Monologion; Proslogion, introduções, tradução e notas de M. Corbin; [texto latino compilado por Dom F. Schmitt] Paris, Cerf, 1986, p. 242-243.

[161] Paulo VI, Carta Encíclica Ecclesiam suam, 71: “Não se quis, e com razão, atribuir ao próprio Concílio [Vaticano II] um objetivo pastoral que equivale a inserir a mensagem cristã na circulação do pensamento, da expressão, da cultura, dos costumes e das tendências da humanidade que hoje vive e se move sobre a face da terra?"

[162] Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, 7-8.

[163] Catecismo da Igreja Católica, 1992, n.º 156, com referência à constituição dogmática Dei Filius do Vaticano I, capítulo 3 (DS, 3008).

[164] “Mas este testemunho ou é apenas de um homem - e isso não constitui a virtude da fé, porque um homem pode enganar e ser enganado - ou provém do julgamento divino - e este é veríssimo e firmíssimo, porque provém da própria verdade, que não pode enganar nem ser enganada. E, portanto, ele diz a Deus, para que possa concordar com o que Deus diz” (“Hoc autem testimonium vel est hominis tantum : et istud non facit virtutem fidei, quia homo et fallere et falli potest. Vel istud testimonium est ex iudicio divino : et istud verissimum et firmissimum est, quia est ab ipsa veritate, quae nec fallere, nec falli potest. Et ideo dicit, ad Deum, ut scilicet assentiat his quae Deus dicit”) (Tomás de Aquino, Super Epistolam B. Pauli ad Hebraeos lectura [rep. vulgata], cap. 6,l.1).

[165] O termo que habitualmente usamos é “filiação”, mas o objetivo aqui é insistir no início da filiação, o próprio movimento pelo qual nos tornamos filhos e filhas de Deus.

[166] “Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, deve-se levar em conta, entre outras coisas, os gêneros literários. Pis a verdade é apresentada e expressa de distintas maneiras nos textos de históricos, proféticos, poéticos ou ainda pertencentes a outros gêneros. [..] porém, a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada no mesmo Espírito com a qual foi escrita”, Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática Dei Verbum, 12.

[167] “Esta economia da Revelação se realiza através de atos e palavras (gestis verbisque) intimamente relacionados entre si, de forma que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; enquanto que as palavras proclamam as obras e elucidam o mistério nelas contido”, Dei Verbum, 2.

[168] Bento XVI, Exortação Apostólica Verbum Domini, 55.

[169]“Mistério da Igreja, ainda mais profundo – se isso é possível -, mais “difícil de acreditar” que o Mistério de Cristo, assim como este já era mais difícil de acreditar que o Mistério de Deus” in H. de Lubac, Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme (1938), in Œuvres complètes VII, ed. M. Sales, s.j. - M.-B. Mesnet, 2003, p. 48-49.

[170] Concílio Ecumênico Vaticano II, Decreto Unitatis redintegratio, 11.

[171] Concílio Ecumênico Vaticano I, Const. Dogm. Dei Filius, IV (DH, 3016); Commissione Teologica Internazionale, L'interpretazione dei dogmi (1990), II, 3, § 3, em Id., Documenti 1969-2004, seconda edizione riveduta e corretta, prefazione Card. W. J. Levada; introduzione L. Ladaria, SJ, Bolonha, Edizioni Studio Domenicano, 2010, p. 403.

[172] Como no “colóquio no Espírito Santo”, Francisco, “Discurso na abertura da XVI sessão do Sínodo dos Bispos”, 4 de outubro de 2023: “A Igreja, uma harmonia única de vozes, com muitas vozes, realizada pelo Espírito Santo: assim devemos conceber a Igreja”.

[173] CTI, A Sinodalidade, 19-21.

[174] CTI, O “sensus fidei” na vida da Igreja, 67-86.

[175] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm. Dei Verbum, 10.

[176] CTI, O “sensus fidei” na vida da Igreja, 77.

[177] Concílio Ecumênico Vaticano II, Decreto Ad gentes, 15.

[178] “Toda a minha fé está no mais banal dos meus sinais da cruz, e, quando pronuncio ‘Pai Nosso’, já incluí todo aquele conhecimento que só me será dado na Revelação da glória”: Y. Congar, La Tradition et les traditions. Essai théologique, Paris, Fayard, 1th ed. 1963, vol. 2, p. 185.

[179] CTI, A teologia hoje: perspectivas, princípios e critérios, 33: “O sujeito da fé é o povo de Deus em seu conjunto, que no poder do Espírito afirma a Palavra de Deus. É por isso que o Concílio declara que a totalidade do povo de Deus participa do ministério profético de Jesus, e que, ungido pelo Espírito Santo (1Jo 2,20.27), ‘não pode enganar-se no ato de fé’”.

[180] Tertuliano, Liber de praescriptionibus adversus haereticos, XX,8-9, introdução, texto crítico e notas de R. F. Refoulé, o.p., tradução de P. de Labriolle, Paris, Cerf, SC 46, p. 113-114.

[181] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, 12.

[182] Ibid, 24 in fine, e 25.

[183] “Esta concepção de propaganda político-religiosa foi retomada pela Igreja à medida que esta se expandia pelo Império Romano. Ela se deparou com uma concepção de teologia pagã em que reina o monarca divino, mas onde governam os deuses nacionais. Em resposta a esta teologia pagã, adaptada ao Império Romano, os cristãos afirmaram que os deuses nacionais não podiam reinar, porque as pluralidades nacionais tinham sido abolidas. A proclamação cristã de um Deus em três pessoas ultrapassa o judaísmo ou o paganismo, pois o mistério da Trindade está na própria divindade e não na sua criatura. O mesmo se aplica à paz que o cristão procura, que não é garantida por nenhum imperador, mas só pode ser um dom daquele que está acima de toda a razão”, in E. Peterson, Der Monotheismus als politisches Problem. Ein Beitrag zur Geschichte der politischen Theologie im Imperium Romanum, Leipzig, 1935, p. 104-105.

[184] A CTI, em O “sensus fidei” na vida da Igreja, trata de vários aspectos desse tema: no nº 26, sobre Newman e o critério do sensus fidei fidelium contra as divergências dos bispos do século IV; no nº 34, sobre a concepção renovada no século XIX do caráter ativo e não apenas passivo do sensus fidei fidelium; nos n. 113 e 118, sobre a relação entre o sensus fidei e a opinião pública maioritária, dentro e fora da Igreja.

[185] Francisco, Constituição Apostólica Veritatis Gaudium, 3.

[186] Carta 90 “To Natalia Dmitrievna Fonvizina, late January-February 1854, Omsk”, in F. Dostoiévski, Correspondência. Edição completa, apresentada e anotada por J. Catteau. Traduzido do russo por Anne Coldefy-Faucard. Vol. 1, 1998, p. 341.

[187] “[Os pobres] têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles”, Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 198.

[188] Catecismo da Igreja Católica, 540: “Cristo venceu o Tentador por nossa causa”; também 394, 677.

[189] “Instruídos pela palavra e pelo exemplo de Cristo (Christi verbo et exemplo edocti), os apóstolos seguiram o mesmo caminho. Desde os inícios da Igreja, os discípulos de Cristo esforçaram-se por converter as pessoas ao Cristo Senhor não através de coação ou de artifícios indignos do Evangelho, mas antes de tudo através da força da Palavra de Deus (1Cor 2,3-5; 1Ts 2,3-5). Com coragem, anunciavam a todos o propósito de Deus salvador, ‘que quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2,4). Mas, ao mesmo tempo, respeitavam os fracos, mesmo que vivessem em erro, mostrando como “cada um de nós dará contas a Deus por si mesmo” (Rm 14,12; 1Cor 8,9-13; 10,23-33) e, portanto, como cada um se obriga a obedecer à própria consciência. Assim como Cristo, os apóstolos sempre se esforçaram para dar em testemunho da verdade de Deus, cheios de audácia em anunciar ‘corajosamente a Palavra de Deus’ (At 4, 31) perante o povo e os seus chefes”, Concílio Ecumênico Vaticano II, Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 11.

[190] Francisco, Carta Encíclica Dilexit nos, 2024, 214.