COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL
Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador
1700o aniversário do Concílio Ecumênico de Niceia
325-2025
Índice
Nota preliminar
Introdução: Doxologia, teologia e anúncio
Capítulo 1: O símbolo para a salvação: doxologia e teologia do dogma de Niceia
1. Compreender a imensidão das três Pessoas divinas que nos salvam: “Deus é
Amor”, infinitamente
1.1 A grandeza da paternidade de Deus Pai, fundamento da grandeza do Filho e do
Espírito
1.2 Reflexão sobre o uso da expressão
homoousios
1.3 A unidade da história da salvação
2. Compreender a imensidão de Cristo Salvador e seu ato de salvação
2.1 Ver Cristo em toda a sua grandeza
2.2 A imensidão do ato de salvação: a sua consistência histórica
2.3 A grandeza do ato de salvação: o mistério pascal
3. Compreender a imensidão da salvação oferecida à humanidade e a imensidão da
nossa vocação humana
3.1 A grandeza da salvação: a entrada na vida de Deus
3.2 A imensidão da vocação humana ao Amor divino
3.3 A beleza dom da Igreja e do batismo
4. Celebrar juntos a imensidão da salvação: o significado Ecumênico de Niceia e
a esperança de uma data comum para a celebração da Páscoa
Capítulo 2: O símbolo de Nicéia na vida dos crentes “Acreditamos como batizamos;
e rezamos como acreditamos”.
Prelúdio: a fé confessada na fé vivida
1. Batismo e fé trinitária
2. O Símbolo Niceno como confissão de fé
3. Aprofundamento da pregação e da catequese
4. Oração ao Filho e doxologias
5. A teologia nos hinos
Capítulo 3: Nicéia como evento teológico e como evento eclesial
1. O evento Cristo: “A Deus, ninguém jamais viu. O Deus Unigênito [...] foi quem
o revelou” (Jo 1,18).
1.1 Cristo, Verbo encarnado, revela o Pai
1.2 “Temos o pensamento (νοῦς) de Cristo” (1Cor 2,16): analogia da criação e
analogia da caridade
1.3 Ingresso teológico no conhecimento do Pai através da oração de Cristo
2. O evento de Sabedoria: algo novo para o pensamento humano
2.1 A revelação enriquece e alarga o pensamento humano
2.2 Um evento cultural e intercultural
2.3 A fidelidade criativa da Igreja e o problema da heresia
3. O evento eclesial: o Concílio de Niceia, primeiro concílio Ecumênico
3.1 A Igreja se inscreve por sua natureza e suas estruturas no evento Jesus
Cristo
3.2 A colaboração estrutural dos carismas da Igreja e o caminho para Niceia
3.3 O Concílio Ecumênico de Niceia
Capítulo 4: Manter a fé acessível a todo o povo de Deus
Prelúdio: o Concílio de Niceia e as condições de credibilidade do mistério
cristão
1. A teologia a serviço da integralidade da verdade salvífica
1.1 Cristo, verdade escatologicamente eficaz
1.2 A salvação e o processo de filiação divina
2. A mediação da Igreja e a inversão da sequência dogmática: Trindade,
cristologia, pneumatologia, eclesiologia
2.1 As mediações da fé e o ministério da Igreja
2.2 Dissenso e sinodalidade
2.3 As línguas do Espírito Santo para formar e renovar o consenso
3. Salvaguarda do depósito da fé: a caridade a serviço dos mais pequeninos
3.1 A fé unânime do Povo de Deus oferecida a todos
3.2 A proteção da fé face ao poder político
Conclusão: Anunciar hoje Jesus, nossa Salvação, a todas as pessoas
Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador
1700o aniversário do Concílio Ecumênico de Niceia
325-2025
Nota preliminar
Durante o seu 10º quinquênio, a Comissão Teológica Internacional
decidiu realizar um estudo sobre o Primeiro Concílio Ecumênico de Niceia e a sua
relevância dogmática. O trabalho foi levado a cabo por uma Subcomissão especial,
presidida pelo P. Philippe Vallin e composta pelos seguintes membros Monsenhor
Antonio Luiz Catelan Ferreira, Monsenhor Etienne Vetö, I.C.N., Padre Mario Ángel
Flores Ramos, Padre Gaby Alfred Hachem, Padre Karl-Heinz Menke, Professora
Marianne Schlosser, Professora Robin Darling Young.
As discussões gerais sobre este assunto o correram em várias reuniões da
Subcomissão como também nas sessões plenárias da própria Comissão, realizadas
nos anos 2022 a 2024. Este texto foi submetido ao voto e aprovado por
unanimidade in forma specifica pelos membros da Comissão Teológica
Internacional na sessão plenária de 2024. O documento foi então submetido à
aprovação do seu Presidente, Sua Eminência o Cardeal Víctor Manuel Fernández,
Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, após receber o parecer
favorável do Santo Padre Francisco, autorizou a sua publicação dia 16 de
dezembro de 2024.
Introdução: Doxologia, teologia e anúncio
1. Com gratidão e alegria, no dia 20 de maio de 2025, a Igreja Católica e todo o
mundo cristão recordam a abertura do Concílio de Niceia em 325: “O Concílio de
Niceia é um marco miliário na história da Igreja. O aniversário da sua
realização convida os cristãos a unirem-se no louvor e agradecimento à
Santíssima Trindade e, em particular, a Jesus Cristo, o Filho de Deus,
‘consubstancial ao Pai’, que nos revelou este mistério de amor”[1]. Isto permaneceu na consciência cristã principalmente por meio do Símbolo, que
recolhe, define e proclama a fé na salvação em Jesus Cristo e no Deus único,
Pai, Filho e Espírito Santo. O Símbolo de Nicéia professa a boa nova da salvação
integral dos seres humanos pelo próprio Deus, em Jesus Cristo. 1700 anos depois,
celebramos este acontecimento sobretudo com uma doxologia, um louvor à
glória de Deus, porque ela se manifestou no tesouro inestimável da fé expressa
pelo Símbolo: a beleza infinita de Deus que nos salva, a imensa misericórdia de
Jesus Cristo nosso Salvador, a generosidade da redenção oferecida a cada ser
humano no Espírito Santo. Unimos as nossas vozes às dos Padres, como Efrém, o
Sírio, para cantar esta glória:
“Glória Àquele que veio
Até nós por seu primogênito!
Glória ao Silencioso
Que falou por a sua voz!
Glória ao Sublime
Que se tornou visível por da sua Epifania!
Glória ao Espiritual,
A Quem aprouve
Que seu Filho se tornasse corpo,
Para que, por meio desse corpo, seu poder fosse tangível
E que, por esse corpo, tivessem vida
Os corpos dos filhos do Seu povo!”[2]
2. A luz que a assembleia de Niceia lançou sobre a revelação cristã permite-nos
descobrir uma riqueza inesgotável que continua a aprofundar-se ao longo dos
séculos e através das culturas, e a manifestar-se de formas cada vez mais belas
e novas. Estas diferentes facetas são postas em evidência, em particular, pela
leitura orante e teológica que a maior parte das tradições cristãs faz do
Símbolo, cada uma com uma relação diferente com o próprio fato da existência de
um símbolo. É também uma oportunidade para todas elas redescobrirem ou mesmo
descobrirem a sua riqueza e o laço de comunhão entre todos os cristãos que ele
pode constituir. “Como não recordar a extraordinária atualidade deste
aniversário para o caminho rumo à plena unidade dos cristãos?”[3], sublinha o Papa Francisco.
3. O Concílio de Niceia foi o primeiro concílio dito “Ecumênico”, porque, pela
primeira vez, foram convidados os bispos de toda a Oikoumenē[4].
Suas decisões pretendiam, portanto, ser ecumênicas, ou seja, de âmbito
universal. E, como tal, foram recebidas pelos cristãos e pela tradição cristã,
no decurso de um longo e laborioso processo. As implicações eclesiológicas são
cruciais. O Símbolo insere-se no processo de adoção progressiva, pelo ensino
cristão, da língua e do pensamento gregos, por assim dizer transfigurados pelo
contato com a Revelação. O Concílio marca também a crescente importância dos
sínodos e das formas sinodais de governo na Igreja dos primeiros séculos,
constituindo ao mesmo tempo uma mudança importante: na linha da exousia
conferida aos Apóstolos por Jesus e pelo Espírito Santo (Lc 10,16; At
1,14-2,1-4), como evento, Niceia abre caminho a uma nova expressão institucional
da autoridade doutrinal e disciplinar na Igreja, de alcance universal, que passa
a ser reconhecida nos concílios ecumênicos. Esta mudança decisiva no modo de
pensar e de governar da comunidade dos discípulos do Senhor Jesus evidenciou
elementos essenciais da missão de ensinar da Igreja e, portanto, da sua
natureza.
4. Antes de prosseguir, é necessário fazer um esclarecimento. O presente
documento se baseia no Símbolo niceno-constantinopolitano (381) e não, a rigor,
no que foi composto em Niceia (325). De fato, foram necessários cerca de
cinquenta anos para a aceitação do vocabulário do Símbolo de Niceia e para se
chegar a um acordo sobre o alcance universal do primeiro Concílio. O processo de
aceitação do Símbolo niceno continuou durante o conflito com os Pneumatômacos
entre Nicéia e Constantinopla, introduzindo algumas mudanças textuais
significativas, particularmente no terceiro artigo. No entanto, na opinião dos
Padres, este processo, que culminou no Símbolo niceno-constantinopolitano, não
envolveu qualquer alteração da fé nicena, mas a sua autêntica preservação[5]. Neste sentido, o preâmbulo da definição dogmática de Calcedônia, que foi
precedido pela transcrição do Símbolo de Niceia e do Símbolo de
Niceia-Constantinopla, “confirma” o que foi dito no símbolo dos “150 Padres”
(Constantinopla), uma vez que o seu significado reside, em seus próprios termos,
na especificação do que diz respeito ao Espírito Santo contra os que negam o seu
senhorio[6]. A magnitude do que aconteceu em Niceia se evidencia na proibição, estabelecida
pelo Concílio de Éfeso (431), de se promulgar qualquer outra fórmula de fé. Isto
porque, após Niceia, os defensores da ortodoxia consideraram que o discernimento
expresso no Símbolo niceno era suficiente para garantir a fé da Igreja para
sempre[7]. Atanásio, por exemplo, disse de Niceia que ela é “a palavra de Deus que
permanece para sempre” (Is 40,8). Este processo de Tradição viva e normativa
continuou, entre os séculos IV e IX, com a sua adoção nas liturgias batismais,
sobretudo no Oriente, e depois nas liturgias eucarísticas[8]. Note-se que o Filioque, que se encontra nas atuais versões ocidentais
do Credo, não faz parte do texto original do Credo niceno-constantinopolitano.
Este ponto continua a ser objeto de mal-entendidos entre confissões cristãs, e,
a respeito dele, o diálogo entre o Oriente e o Ocidente continua ainda hoje.
5. Assim, no primeiro capítulo, é proposta uma leitura doxológica do
Símbolo, a fim de extrair seus recursos soteriológicos e, portanto,
cristológicos, trinitários e antropológicos. Isto oportuniza sublinhar seu
significado e receber dele um novo impulso para a unidade dos cristãos. Mas,
acolher a riqueza do Concílio de Niceia, 1700 anos depois, leva também a
perceber como o Concílio alimenta e orienta a vida cristã quotidiana: num
segundo capítulo, de conteúdo patrístico, explora-se como a vida litúrgica e a
vida de oração foram fecundadas na Igreja por esse Concílio. Nicéia foi um ponto
de viragem tão grande na história do cristianismo que, no terceiro capítulo, se
procura ver como o Símbolo e o Concílio testemunham o evento do próprio Jesus
Cristo, cuja irrupção na história oferece um acesso sem precedentes a Deus e
introduz uma transformação do pensamento humano, ou seja, é um evento de
Sabedoria. O Símbolo e o Concílio testemunham também uma novidade na maneira
como a Igreja de Cristo se estrutura e realiza a sua missão: constituem um
evento eclesial. Por fim, no quarto capítulo, são analisadas as condições de
credibilidade da fé professada em Niceia, num passo de teologia fundamental, a
fim de fazer emergir a natureza e a identidade da Igreja enquanto, pelo
Magistério, é autêntica intérprete da verdade normativa da fé, guardiã dos
crentes, sobretudo dos mais pequenos e vulneráveis.
6. “Não se acende uma lâmpada para coloca-la debaixo da caixa, e sim sobre o
candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão na casa” (Mt 5,15). Esta luz
é Cristo, “a luz da luz”. Maravilharmo-nos com ela é também encontrar no
Espírito Santo um novo impulso para apresentar esta boa nova com mais vigor e
criatividade. Esta luz ilumina vivamente nosso tempo, marcado pela violência e
pela injustiça, cheio de incertezas, que mantém uma relação complexa com a
verdade, no qual a fé e a pertença à Igreja parecem ameaçadas. A luz é tanto
mais viva e radiante quanto mais for partilhada por todos os cristãos, que podem
confessar a sua fé na mesma marty̆ria, no mesmo testemunho, para ajudar a
atrair os homens e as mulheres de hoje a Jesus Cristo, Filho de Deus e Salvador:
Para nós, o essencial, o mais belo, o mais atraente e, ao mesmo tempo, o mais
necessário é a fé em Cristo Jesus. Todos juntos, se Deus quiser, renová-la-emos
solenemente durante o próximo Jubileu e cada um de nós é chamado a anunciá-la a
todos os homens e mulheres da terra. Nisto consiste a tarefa fundamental da
Igreja[9].
Capítulo 1
O símbolo para a salvação:
doxologia e teologia do dogma de Niceia
7. Celebrar Niceia no seu 1700º aniversário é sobretudo
maravilharmo-nos com o Símbolo que o Concílio nos legou e com a beleza do dom
oferecido em Jesus Cristo, do qual ele é como um ícone em palavras. Começaremos,
pois, o nosso estudo sobre Niceia examinando seu Símbolo, para fazer sobressair
a extraordinária imensidão da fé trinitária, da cristologia e da soteriologia
que ele exprime, bem como suas implicações antropológicas e eclesiológicas,
antes de concluir com o seu significado Ecumênico. É, por assim dizer, um ato de
teologia doxológica. Não se pretende aprofundar cada um dos temas deste
concentrado de fé cristã que é o Credo - tarefa que teria sido pouco útil
e, de qualquer modo, impossível no âmbito do presente trabalho -, mas se
pretende extrair a riqueza das afirmações e das verdades oferecidas pelo Credo
Niceno do ponto de vista dogmático, particularmente aquelas que representam
maior desafio e fecundidade para este período da história da Igreja e do mundo,
precisamente quando celebramos o aniversário de Niceia.
1. Compreender a imensidão das três Pessoas divinas que nos salvam: “Deus é
Amor”, infinitamente
8. O símbolo niceno-constantinopolitano estrutura-se em torno da afirmação da fé
trinitária:
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, artífice do céu e da terra, de todas as
coisas vivíveis e invisíveis,
E em um só Senhor Jesus Cristo, filho unigênito de Deus,
gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, luz da luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não feito, consubstancial ao Pai;
por meio do qual tudo veio a ser; [...]
E no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do Pai,
que junto com o Pai e o Filho deve ser coadorado e conglorificado,
que falou através dos profetas[10] [...] .
1.1 A grandeza da paternidade de Deus Pai, fundamento da grandeza do Filho e do
Espírito
9. O ponto de partida da fé nicena é a afirmação da unidade de Deus. O
cristianismo é fundamentalmente um monoteísmo, em continuidade com a revelação
feita a Israel. No entanto, o Símbolo não coloca em primeiro lugar “Deus” como
tal, e menos ainda a única natureza divina, mas sim a Primeira hipóstase divina,
que é o Pai [11]. Como “criador do céu e da terra” (cf. Gn 1,1; Ne 9,6; Ap 10,6), ele é Pai de
todos. Além disso, Cristo revela a inaudita paternidade intra-divina de Deus,
fundamento da sua paternidade ad extra. Se Cristo é o Filho divino, de
modo único, isso implica que há uma geração em Deus: Deus Pai dá tudo o que tem
e tudo o que é[12]. Deus não é um princípio pobre e egoísta: ele é sine invidia. A sua
paternidade, tal como a sua onipotência, é a capacidade de se dar inteiramente[13]. Este dom paterno não é apenas um aspeto entre outros, mas define o Pai, que é
inteiramente paternidade[14]. Deus sempre foi Pai, e nunca foi um Deus “solitário”. Esta paternidade do Deus
único é o primeiro aspeto da fé cristã que provoca admiração e cuja imensidão
devemos celebrar redescobrindo Niceia 1700 anos depois. O objetivo é explorar as
implicações deste fato para a nossa compreensão do mistério trinitário.
10. A fé no Pai testemunha a plenitude superabundante de Deus[15]. O primeiro artigo não é simplesmente uma definição de Deus, mas antes de mais
um louvor que faz parte da tradição doxológica da liturgia judaica e das
primeiras liturgias cristãs. O Deus “todo-poderoso (pantokratōr)” ecoa
várias expressões do Antigo Testamento, como, por exemplo, “Senhor Sabaoth”,
retomadas no Novo Testamento como parte das liturgias celestes (Ap 4,8; 11,17;
15,3; 16,14; 19,6).
11. A revelação em Cristo da paternidade de Deus manifesta também a imensidão do
Filho e do Espírito. Se Deus Pai dá tudo para além da sua paternidade, isso
significa que o Filho e o Espírito são plenamente iguais ao Pai na sua
divindade. No Símbolo, o Filho é “um”, é “Senhor” (Kyrios, que traduz o
Tetragrama na Septuaginta), “Filho de Deus”, “unigênito” (ho monogenēs)
na intimidade do Pai, “Deus de Deus”, “luz da luz”, “verdadeiro Deus de
verdadeiro Deus”, consubstancial (homoousios) com o Pai. Note-se, por
exemplo, que no Quarto Evangelho, o Filho é várias vezes chamado theos:
Jo 1,1; 5,18; 20,28. O Filho é gerado “antes de todos os tempos”, o que
significa no Símbolo que ele é coeterno com o Pai (Jo 1,1). Isto visa as
posições de Ário, segundo as quais “houve um tempo em que [o Filho] não
existia”, “antes de nascer ele não existia” e “tornou-se do que não existia”[16], ou “o Filho é a partir do nada”, por “vontade e conselho”[17] do Pai. É por isso que o Filho pode ser confessado como aquele “por quem
todas as coisas foram feitas” (cf. 1Cor 8,6; Jo 1,3). Deus é tão grande que o
Pai é capaz de gerar outro, que lhe é igual em divindade. Deus excede tudo o que
podemos conceber ou imaginar, porque a sua Unidade pressupõe uma pluralidade
real que não rompe a Unidade.
12. O Pai também dá tudo ao Espírito, que é definido com termos específicos e
reservados à divindade: “Espírito”, “Santo” e “Senhor”, o que também constitui
evocação do Tetragrama. Assim como o Pai é o criador e o Filho é o Verbo pelo
qual o Pai cria todas as coisas, o Espírito é professado como o “doador da
vida”. O Espírito “procede do Pai”, assim como o Filho é gerado pelo Pai[18]. As afirmações sobre o Espírito fazem eco intencional ao artigo referente ao
Filho. Consequentemente, o Espírito pode e deve ser adorado com o Pai e o Filho
- confirmando o carácter doxológico do Símbolo.
13. É essencial manter a divindade do Espírito como o “terceiro” em Deus e a sua
ligação ao Pai, bem como ao Filho. Com efeito, ainda hoje há dificuldades em
considerá-lo completamente como uma Pessoa divina e não como uma simples força
divina ou mesmo cósmica. Por vezes, se reza ao Pai e ao Filho, omitindo-se o
Espírito, contrariamente à oração da Igreja, que é sempre dirigida ao Pai, pelo
Filho, no Espírito Santo. Atribui-se à Eucaristia, à Virgem Maria e à Igreja a
importância que lhes é devida, sem se dar conta de que são realidades preciosas
propriamente porque animadas pelo Espírito[19]. Há ainda quem, pelo contrário, dê um lugar central, ou mesmo exclusivo, ao
Espírito Santo, a ponto de pôr em segundo plano o Pai e o Filho, o que,
paradoxalmente, equivale a uma forma de reducionismo pneumatológico, pois Ele é
Espírito do Pai e Espírito do Filho (Gl 4,6; Rm 8,9). A grandeza
superabundante do Espírito Santo, expressa na fé nicena, é uma proteção contra
esses reducionismos.
14. Assim, da plenitude fontal da paternidade de Deus brota a plenitude
superabundante de Deus Pai, Filho e Espírito, semper major. Ora, a
plenitude fontal do Pai implica uma taxis (uma ordem) na vida do Deus Uno
e Trino. O Pai é a fonte de toda a divindade[20]. A segunda pessoa é de fato Deus e luz, mas é Deus de Deus e luz da
luz. Embora o Espírito seja confessado como sendo igual em divindade ao
Filho e ao Pai, ele é apresentado de uma forma bastante diferente dos outros
dois. Acabamos de ver (cf. supra § 12) que ele é apresentado com caraterísticas
divinas e deve ser adorado com o Pai e o Filho. Dito isto, as diferenças de
expressão são notáveis: o que se diz do Pai e do Filho “um” ou do Filho
“consubstancial” não se repete em relação ao Espírito. Sem tirar nada da sua
co-divindade, o modo como o Espírito é mencionado no Símbolo sublinha a sua
distinção pessoal. Assim, o próprio do Espírito Santo põe em evidência a
unicidade de cada pessoa divina. De certo modo, em Deus, “hipóstase” ou
“pessoa” é termo analógico, no sentido em que cada um dos três “nomes” divinos é
plenamente uma pessoa, mas é-o de um modo único. Esta singularidade mostra
também que a igualdade, por um lado, e a diferença e a ordem, por outro, não se
contradizem. Também isto é fruto da paternidade superabundante do Pai. Receber
Niceia significa receber a riqueza da paternidade divina que estabelece a
igualdade, mas também a diferença e a unicidade.
1.2 Reflexão sobre o uso da expressão homoousios
15. Um dos contributos centrais de Niceia é a definição da divindade do Filho em
termos de consubstancialidade: o Filho é “consubstancial” (homoousios)
com o Pai, “gerado do Pai”, “isto é, da substância do Pai” [21]. A geração do Filho é algo diferente da criação, porque é uma comunicação da
substância única do Pai. O Filho não é apenas plenamente Deus como o Pai, mas de
uma substância numericamente idêntica à sua, pois não há divisão no Deus único[22]. Em outras palavras: o Pai dá tudo ao Filho, segundo a lógica de uma vida
divina, que é agapē e que ultrapassa sempre o que a mente humana pode
conceber.
16. Pela primeira vez, são utilizados termos não bíblicos num texto eclesial
oficial e normativo - voltaremos a este assunto nos capítulos III e
IV. A intenção dos Padres Conciliares não era introduzir algo novo na fé
apostólica, mas protegê-la, explicitando o que é realmente a geração em Deus. É
por isso que, no Símbolo de 325, homoousios é introduzido pela expressão
“isto é”: a terminologia grega ontológica está a serviço das expressões bíblicas
tradicionais[23]. O termo, de origem gnóstica e condenado pelo sínodo regional de Antioquia
(264-269), foi muito contestado nas décadas que se seguiram a Niceia. Mas, a
partir dos anos 360, o número de adeptos aumentou, até à sua ratificação plena e
pacífica em Constantinopla (381). Nessa altura, foi reconhecido o seu papel de
esclarecimento e proteção da fé, bem como a capacidade criativa da razão, da
filosofia e da cultura humanas no acolhimento da Revelação. Como nas Sagradas
Escrituras, isto sublinha o que a Revelação implica um diálogo entre Deus e os
humanos, diálogo que se dá, de ambos os lados, através de palavras humanas
situadas, limitadas e, portanto, sempre abertas à interpretação. Não só a vida
divina é revelada como superabundância, mas a própria forma da Revelação,
suscetível de ser expressa em palavras humanas, e traduzida em todas as línguas,
mostra-se aqui como semper major.
17. No entanto, esta expressão não é a única utilizada no Símbolo para exprimir
a divindade salvífica do Filho. Ela está inserida numa série de termos de origem
escriturística e litúrgica: “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, “Deus de Deus” [24] e “luz da luz”. Nenhum termo isolado pode esgotar a plenitude
superabundante da Revelação. A fé precisa da articulação de expressões
escriturísticas, filosóficas e litúrgicas, de conceitos, de imagens e de nomes
divinos (Pai, Filho, Espírito Santo) para se exprimir da forma mais exata e
completa. As formas de expressão das diferentes Igrejas e comunidades eclesiais
podem apoiar-se mutuamente nesta redescoberta, pois algumas dão maior ênfase a
uma ou a outra: por exemplo, a tradição oriental sublinha a compreensão de
Cristo como “luz da luz”[25]. A pluralidade do seu vocabulário contribui certamente para tornar a fé que
exprime acessível em diferentes culturas e de acordo com a forma mentis
de cada ser humano.
1.3 A unidade da história da salvação
18. Para se compreender plenamente o significado do Símbolo
niceno-constantinopolitano, é necessário entender a unidade do quadro da
história da salvação que informa a profissão de fé. De fato, a atribuição da
criação ou do “dom da vida” às três pessoas sublinha a unidade entre a ordem da
criação e a ordem da salvação. A divinização começa com o ato criador, e a
história da salvação começa com a criação. Contra o marcionismo e as várias
formas de gnosticismo, deve-se sustentar que é o mesmo Deus que cria e salva, e
a mesma realidade criada, boa porque querida por Deus, que é restaurada na
redenção. Assim, a graça não introduz uma ruptura, mas oferece uma realização,
porque já atua na criação, que a ela é ordenada.
19. A economia da salvação realizada em Cristo, também ela, só é apresentada em
seu verdadeiro e pleno significado se for sublinhada a sua fidelidade à
Revelação feita ao povo de Israel, sem a qual a fé expressa em Niceia perderia a
sua legitimidade e a plenitude da sua dimensão histórica. Obviamente, a dimensão
trinitária e cristológica do ensinamento niceno não é aceite pela tradição
rabínica, mas, do ponto de vista cristão, é entendida de maneira essencial como
uma novidade que, no entanto, está em continuidade com a Revelação
confiada povo eleito. A doutrina da Trindade não é certamente entendida como
relativização, mas como aprofundamento da fé no Deus único de Israel[26]. Já sublinhámos que as referências a Deus como “único” e “criador do céu e da
terra” ecoam o Antigo Testamento, onde Deus se revela como aquele que cria por
amor, entra em relação por amor e pede para ser amado em troca. Deus chama a
Abraão de seu “amigo”, “aquele a quem ama” (Is 41,8; 2Cr 20,7; Tg 2,23), e fala
com Moisés “face a face, como quem fala com seu próximo” (Ex 33,11). A escolha
do termo homoousios é feita precisamente para proteger o carácter
monoteísta da fé cristã: em Deus, não há outra realidade que não seja a
realidade divina. O Filho e o Espírito não são outra coisa senão o próprio Deus,
e não seres intermediários entre Deus e o mundo ou meras criaturas. Além disso,
a Revelação feita a Israel testemunha o Senhor como Uno e Único, que se
compromete, se devota e se comunica na história da humanidade. O cristianismo
entende a Encarnação como a plenitude sem precedentes do modo de atuar (a
economia) do Deus de Israel que desce e habita no meio do seu povo, realizada na
união de Deus com uma humanidade singular, Jesus[27].
20. Além disso, o desenvolvimento da fé trinitária, tal como foi expressa em
Niceia, não deixa de ter um fundo judaico. O Símbolo é estruturado por tríplice
repetição: “Cremos em um só Deus, Pai... em um só Senhor Jesus Cristo... e no
Espírito Santo”. De fato, a fé trinitária emergente dos primeiros séculos
desenvolveu a unidade dos nomes divinos, Pai, Filho e Espírito, a partir da fé
monoteísta de Israel expressa no início do Sh'ma Israel, “o Senhor é
nosso Deus, o Senhor é um” (Dt 6,4), repetindo esta oração central do judaísmo,
estendendo o atributo da unidade do Deus único ao Filho: “Creio em um só Deus...
e em um só Senhor...”. É o que acontece já nas primeiras expressões da fé
trinitária do Novo Testamento: “Para nós há um só Deus, o Pai, do qual
tudo provém, e para o qual nós existimos. Para nós também existe um só
Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe e nós igualmente existimos por ele”
(1Cor 8,6, sublinhado nosso). Estas fórmulas “binárias” coexistem com fórmulas
“ternárias”: “Há um só corpo e um só Espírito [...]; há um só
Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, acima de
todos, no meio de todos e em todos” (Ef 4,4-6, sublinhado nosso; cf. também 1Cor
12,4-6). Evidentemente, o conteúdo da liturgia evoluiu rapidamente para
concepções que não podiam ser aceites pelo rabinismo, mas a fé cristã
desenvolveu-se a partir das estruturas litúrgicas judaicas. Deve-se também
sublinhar a riqueza poliédrica do monoteísmo israelita, tal como revelada na
Bíblia hebraica e nos escritos do período do Segundo Templo[28]. Existe a ideia de uma riqueza superabundante em Deus que não contradiz sua
unicidade e unidade. Isso se manifesta na multiplicidade das figuras de Deus,
como a dimensão “binária”, em certo sentido, que alguns estudiosos percebem na
dualidade entre o “Ancião de Dias” e aquele que é “semelhante a um filho de
homem” (Dn 7,9-14)[29]. Esta riqueza manifesta-se ainda nas diferentes figuras de Deus durante sua
ação no mundo: o Anjo do Senhor, a Palavra (dābār), o Espírito (rûaḥ)
e a Sabedoria (ḥākmâ) [30]. Alguns exegetas contemporâneos, aliás, sustentam que houve uma primeira etapa
binária na confissão de fé cristã, que inscreveu naturalmente a confissão de fé
em Jesus de Nazaré como Kyrios exaltado após a morte, com um grau
propriamente divino, na continuidade do monoteísmo expresso na Bíblia[31]. Assim, mesmo que seja fundamental não retroprojetar a fé trinitária no Antigo
Testamento, é possível, no entanto, perceber entre o Antigo e o Novo Testamento
um processo de desenvolvimento, ainda que não linear, uma forma de
aproximação destas diferentes realidades em duas figuras: o Filho-Logos e o
Espírito. Quando se chegou ao que se considera a afirmação de outras duas
pessoas divinas como uma associação extrínseca ao Deus único, perdeu-se o
reconhecimento da ideia crista de uma fecundidade intrínseca do Pai no seio da
substância una e indivisível das três pessoas coeternas.
2. Compreender a imensidão de Cristo Salvador e seu ato de salvação
21. No centro do segundo artigo do Símbolo niceno-constantinopolitano está a
confissão da Encarnação e do ato redentor do Filho. Depois de professar a
divindade de Cristo, Filho de Deus, confessamos também que:
[Cremos em um só Senhor Jesus Cristo].
o qual, em prol de nós, homens, e de nossa salvação, desceu dos céus, e se
encarnou, do Espírito Santo e Maria, a Virgem, e se humanou; que também foi
crucificado por nós, sob Pôncio Pilatos, e padeceu e foi sepultado e ressuscitou
no terceiro dia, segundo as Escrituras, e subiu aos céus e está sentado à
direita do Pai; e virá novamente na glória para julgar os vivos e os mortos;
cujo reino não terá fim[32].
2.1 Ver Cristo em toda a sua grandeza
22. Niceia permite-nos “ver Cristo em toda a sua grandeza”[33]. As duas dimensões que o constituem mediador único entre Deus e a humanidade
são marcadas pela menção dos dois atores da encarnação: “Ele se encarnou do
Espírito Santo e Maria, a Virgem”. Ele é plenamente Deus, vindo de uma Virgem
pelo poder do Espírito de Deus; ele é plenamente homem, nascido de uma mulher. É
homoousios ao Pai, mas também a nós, segundo a dupla afirmação posterior
de Calcedônia[34] - tendo-se em conta que o termo homoousios não pode ter um
significado unívoco quando se trata de relacionar o Filho encarnado com o Pai ou
com os seres humanos. O Verbo feito carne é a própria Palavra de Deus, que
assume, de forma única e irreversível, uma humanidade singular e finita. É pelo
fato de ser pessoalmente (hipostaticamente) idêntico ao Filho eterno que Jesus
pôde, sofrendo de forma trágica a morte humana, permanecer numa relação viva com
o Pai e transformar a separação de Deus, o pecado e a morte (cf. Rm 6,23), em
acesso a Deus (cf. 1Cor 15,54-56; Jo 14,6b). Por ser Jesus verdadeiro homem -
“em tudo semelhante a nós, exceto no pecado” (Hb 4,15) - ele pôde assumir o
nosso pecado e passar pela morte. Esta dupla consubstancialidade significa que
só Cristo pode salvar. Só ele pode salvar. Só Ele é a comunhão do ser
humano com o Pai[35]. Só Ele é o Salvador de todos os seres humanos de todos os
tempos. Nenhum outro ser humano pode sê-lo, antes ou depois dele. A comunhão
perfeita e inaudita entre Deus e os seres humanos foi realizada em Cristo, para
além de qualquer forma de realização que o próprio ser humano possa imaginar.
23. Não se pode dissimular a dificuldade atual em crer na plena divindade e na
plena humanidade de Cristo. Ao longo da história do cristianismo, e ainda hoje,
existe uma verdadeira resistência ao reconhecimento da plena divindade de
Cristo. Jesus pode mais facilmente ser visto como um mestre espiritual
iniciático ou como um messias político que prega a justiça, enquanto na
sua humanidade ele vive a sua relação eterna com o Pai. Mas há também uma grande
dificuldade em admitir a plena humanidade de Cristo, que pode sentir cansaço (Jo
4,6), tristeza e abandono (Jo 11,35) e até ira (Jo 2,14-17) e que, misteriosa,
mas verdadeiramente, ignora certas coisas (“ninguém sabe, [...] nem mesmo o
Filho, mas somente o Pai”: Mt 24,36). O Filho eterno escolheu viver a perfeição
que é própria de sua natureza divina na finitude de sua natureza humana, e por
meio dela.
24. Note-se, no entanto, que mesmo que a parte do Credo dedicada à segunda
pessoa seja a mais desenvolvida, a perspectiva cristológica contida no Símbolo
niceno é necessariamente trinitária. Cristo é semper major precisamente
porque, onde Ele está, há sempre mais do que Ele: o Pai continua a ser o Pai, o
“Santo de Israel”. É certo que “quem viu [Cristo] viu o Pai” (Jo 14,9),
mas, como ele diz, “o Pai é maior do que eu” (Jo 14,28). O próprio Ário viu isso
claramente quando citou o Evangelho: “Um só é bom” (Mt 19,17)[36]. Além disso, Cristo não pode ser compreendido sem o Pai e o Espírito Santo:
antes de ser concebido como Homem-Deus e Esposo, é apresentado no Novo
Testamento como Filho do Pai e Ungido pelo Espírito. Do mesmo modo, ele salva os
seres humanos, mas não sem o Pai, que é a fonte e o fim de todas as coisas, pois
ele é união filial com o Pai. Salva os seres humanos, mas não sem o Espírito,
que os faz clamar “Abbá, Pai” (Rm 8,15) e cuja ação interior possibilita a
transformação e o ingresso ativo no movimento que o conduz ao Pai.
2.2 A imensidão do ato de salvação: a sua consistência histórica
25. A grandeza do Salvador revela-se também na plenitude superabundante da
economia da salvação. Niceia apresenta o realismo da obra da redenção. Em
Cristo, Deus salva-nos entrando na história. Não envia um anjo ou um herói
humano, mas entra Ele próprio na história humana, nascendo de uma mulher, Maria,
no seio do povo judeu (“nascido de uma mulher, nascido sob a lei”: Gal 4,4), e
morrendo num período histórico específico, “sob Pôncio Pilatos” (1Tm 6,13; At
3,13)[37]. Se o próprio Deus entrou na história, a economia da salvação é o lugar da sua
Revelação; na história, Cristo revela autenticamente o Pai e o Espírito e dá
pleno acesso ao Pai no Espírito. Além disso, porque Deus entra na história, não
se trata apenas de um ensinamento a ser posto em prática, como quer o
marcionismo ou a falsa gnose, mas de uma ação efetiva de Deus. A economia é o
lugar da ação salvífica de Deus. Confessamos que um acontecimento histórico
mudou radicalmente a situação de todos os seres humanos. Confessamos que a
Verdade transcendente está inscrita na história e atua nela. É por isso que a
mensagem de Jesus não pode ser dissociada da sua pessoa: ele é para todos
“o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6) e não apenas mais um mestre de
sabedoria.
26. Apesar da sua ênfase na história, o Símbolo não menciona ou refere
explicitamente grande parte do conteúdo do Antigo Testamento ou, em particular,
a eleição e a história de Israel. É evidente que um Símbolo não pretende ser
exaustivo. No entanto, vale a pena sublinhar que este silêncio não significa, de
modo algum, que a eleição do povo da Antiga Aliança tenha perdido seu valor[38]. O que a Bíblia hebraica revela não é apenas uma preparação, mas é já a
história da salvação, que continuará e se realizará em Cristo: “A Igreja de
Cristo reconhece que, segundo o mistério salvífico de Deus, seus inícios (initia)
da fé e da sua eleição já se encontram nos Patriarcas, em Moisés e nos Profetas”[39]. O Deus de Jesus Cristo é o “Deus de Abraão, Isaac e Jacó”, o “Deus de Israel”.
Além disso, o Símbolo sublinha discretamente a continuidade entre o povo judeu e
o povo da Nova Aliança, ao mencionar “a virgem Maria”, o que coloca o Messias no
contexto de uma família judaica e de uma genealogia judaica, e que igualmente
faz eco do texto do Antigo Testamento (Is 7,14, segundo a Septuaginta). Isto
cria uma ponte entre as promessas do Antigo Testamento e as do Novo, tal como a
expressão “ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” no resto do
artigo, onde “Escrituras” significa o Antigo Testamento (1Cor 15,4). A
continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento é ainda evidenciada quando, no
artigo sobre o Espírito, se afirma que ele “falou pelos profetas”, o que talvez
represente uma nota anti-marcionita[40]. Seja como for, para ser plenamente compreendido, este Símbolo nascido da
liturgia adquire todo o seu significado quando proclamado na liturgia e
articulado com a leitura do conjunto das Sagradas Escrituras, Antigo e Novo
Testamento. Isto insere a fé cristã no quadro da economia da salvação, que
inclui nativa e estruturalmente o povo eleito e a sua história.
2.3 A grandeza do ato de salvação: o mistério pascal
27. O realismo e a dimensão trinitária da salvação em Cristo encontram o seu
ponto culminante no mistério pascal. O Filho, luz de Deus e Deus verdadeiro,
encarna-se, sofre, morre, desce aos infernos e ressuscita. Trata-se de uma
novidade inaudita. A dificuldade de Ário dizia respeito não só à unidade de
Deus, para ele incompatível com a geração de um Filho, mas também à compreensão
da sua divindade, que considerava incompatível com a paixão de Cristo. Ora, é
precisamente em Cristo e só em Cristo que compreendemos o que Deus é capaz de
fazer por si mesmo, para além de todos os limites da nossa pré-compreensão.
Devemos levar a sério o grito de Jesus como grito do Filho de Deus, expresso no
suor de sangue e no medo: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice” (Mt
26,39b). A própria palavra homoousios ajuda-nos a perceber a inaudita
kenosis da Encarnação: só a afirmação de que o Filho é “consubstancial” ao
Pai permite perceber a radicalidade e a profundidade daquilo que este mesmo
Filho consentiu ao assumir a condição humana. Em certo sentido, poderíamos dizer
que o Filho, semper major, se torna verdadeiramente minor, e que o
Deus Altíssimo desce até ao mais profundo em Jesus Cristo (Fl 2, 5-11). Agora,
mesmo que só Cristo nasça, sofra a Paixão e morra, podemos dizer que “unus de
Trinitate passus est”[41].
Toda a Trindade está envolvida, cada pessoa singularmente, na paixão salvífica
de Cristo. Deste modo, a Paixão revela-nos o significado verdadeiramente divino
da “onipotência”. A onipotência de Deus Uno e Trino é idêntica à doação e ao
amor. O Redentor crucificado não é, portanto, uma dissimulação, mas uma
revelação da onipotência do Pai.
28. A plenitude do ato redentor de Cristo só se manifesta plenamente na sua
ressurreição, que é a realização da salvação, na qual se confirmam todos os
aspectos da nova criação. A ressurreição testemunha a plena divindade de Cristo,
a única capaz de atravessar e vencer a morte, mas também a sua humanidade, pois
é a mesma humanidade, numericamente idêntica à da sua vida terrena, que é
transfigurada e glorificada. Não se trata de um símbolo ou de uma metáfora:
Cristo ressuscita na sua humanidade e no seu corpo. A ressurreição transcende a
história, mas realiza-se no coração da história dos homens e deste homem Jesus.
Além disso, ela é profundamente trinitária: o Pai é a sua fonte, o Espírito é o
seu sopro vivificante, e Cristo glorificado vive - em sua humanidade - no seio
da glória divina e em comunhão inalterável com o Pai e o Espírito. Notemos que é
a ressurreição de Cristo, “primogênito de entre os mortos” (Cl 1,18; Rm 8,29),
que revela a geração eterna do Filho, “primogênito de todas as criaturas” (Cl
1,15). Assim, a paternidade e a filiação divinas não são, em primeiro lugar,
desenvolvimentos de modelos humanos; mesmo expressos com palavras humanas
culturalmente marcadas, são, no entanto, realidades sui generis da vida
divina.
29. O Símbolo sublinha que a ressurreição de Jesus Cristo se estende até ao fim
dos tempos, quando Cristo “virá novamente na glória para julgar os vivos e os
mortos; cujo reino não terá fim”. Com a ressurreição, a vitória é
definitivamente conquistada, mas deve ser plenamente realizada na Parusia. A
esperança cristã é plena: não se baseia apenas no ephapax da Paixão e da
Ressurreição, ou no dom atual da graça, mas também no futuro do
regresso glorioso de Cristo e do seu Reino. É de notar que este aspeto do
Símbolo de Niceia é mais bem compreendido e ganha maior força se lido também num
contexto em que a Igreja se põe à escuta o Antigo Testamento e da fé do povo
judeu de hoje. A atual expetativa messiânica do povo de Israel põe em evidência
a plenitude das promessas messiânicas de paz em toda a terra e de justiça para
todos, num mundo completamente renovado (Is 2,4; 61,1-2; Mq 4,1-3), que os
cristãos esperam com a Parusia. Isto pode e deve despertar a esperança cristã no
regresso do Ressuscitado, porque só então a sua obra redentora será plenamente
visível[42].
3. Compreender a imensidão da salvação oferecida à humanidade e a imensidão da
nossa vocação humana
30. Celebrar Niceia não é apenas maravilhar-se com a plenitude superabundante de
Deus e de Cristo Salvador, mas também com a grandeza superabundante do dom
oferecido ao ser humano e da vocação humana que ele revela. O mistério de Deus
na sua imensidão é a revelação da verdade sobre o ser humano, que é também
semper major. O objetivo aqui é desenvolver as implicações soteriológicas e
antropológicas das afirmações trinitárias e cristológicas do Símbolo niceno, mas
também ter em conta o ensinamento que se encontra no final do terceiro artigo,
sobre o Espírito Santo, que apresenta a fé na Igreja e na salvação:
[Cremos] a Igreja una, santa, católica e apostólica.
Confessamos um só batismo para a remissão dos pecados.
Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro. Amém.
3.1 A grandeza da salvação: a entrada na vida de Deus
31. Porque Cristo nos salva, o Símbolo niceno confessa a “remissão dos pecados”
e a “ressurreição dos mortos”. Menciona o pecado, porque precisamos conhecer de
que mal fomos libertados. O pecado, no sentido teológico estrito, não é apenas o
vício ou a falta que ofende as intenções do Criador na criatura (Rm 2,14-15), é
também uma ruptura deliberada com Deus no âmbito de uma relação teologal com
Ele. Neste sentido pleno, o pecador toma consciência do seu pecado à luz do amor
misericordioso de Deus: o pecado deve ser “descoberto” pela própria obra da
graça, para que possa converter os corações[43]. Assim, a revelação do pecado é o primeiro passo da redenção e deve ser
confessada como tal.
32. Com a exorbitante pretensão da ressurreição dos mortos, em Niceia, a Igreja
professa que a salvação é completa e plena. O ser humano é libertado de todo o
mal, incluindo o “último inimigo”, que deve ser destruído por Cristo para que
todas as coisas sejam submetidas a Deus (1Cor 15, 25-26). A fé na ressurreição
implica não apenas a sobrevivência da alma, mas a vitória sobre a morte[44]. Além disso, o ser humano é salvo não só na sua alma, mas no seu próprio corpo.
Nada do que constitui a identidade e a humanidade do ser humano fica fora da
nova criação oferecida por Cristo. Finalmente, este dom será adquirido para
sempre, porque se desdobra na “vida do século vindouro”, o eschăton
plenamente realizado. Desde a Páscoa, nenhum pecado tem o poder de separar os
pecadores de Deus - pelo menos se eles se aferrarem à mão do Crucificado
Ressuscitado, que se estende até às profundezas do abismo para se oferecer à
ovelha perdida: “Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o
futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem outra criatura
qualquer será capaz de nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus,
nosso Senhor” (Rm 8,38-39).
33. Porque Cristo nos salva como Deus verdadeiro, a ressurreição significa para
nós a entrada na vida divina, a humanização e a divinização ao mesmo tempo, como
testemunha o comentário de Jesus ao Salmo 81,6 em João 10,14: “Vós sois deuses” [45]. E porque ele nos salva como Filho, gerado pelo Pai, esta divinização é
filiação adotiva e conformação a Cristo; é a entrada do Espírito Santo no amor
do Pai. Somos amados e regenerados pelo mesmo amor com que o Pai ama e gera
eternamente o Filho. Esta é a implicação soteriológica da paternidade de Deus
professada por Niceia. Finalmente, porque Cristo nos salva como Filho,
juntamente com o Pai e o Espírito Santo, essa filiação é um verdadeiro mergulho
nas relações trinitárias. É por isso que o Símbolo nasce da profissão trinitária
de fé batismal, e que o batismo se realiza “em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo”. A imensidão do dom assim revelado se atualiza no mistério da
Ascensão de Cristo: “subiu ao céu”, mostrando que ele próprio, Cristo, é o
“nosso céu”[46]. O Filho exaltado enviará o dom de Deus prometido, o Espírito do Pentecostes.
Nenhuma visão mais restrita da salvação seria verdadeiramente cristã.
3.2 A imensidão da vocação humana ao Amor divino
34. Tudo isto não pode deixar de ter consequências para a visão cristã do ser
humano. O ser humano revela-se também na grandeza superabundante da sua vocação,
como homo semper major. O Símbolo niceno não inclui um artigo
antropológico em sentido estrito, mas o ser humano, na sua vocação à filiação
divina em Jesus, pode ser descrito como objeto de fé. De acordo com as
Sagradas Escrituras, a sua verdadeira identidade é revelada pelo mistério de
Cristo e pelo mistério da salvação como um mistério em sentido estrito,
análogo ao de Deus e de Cristo, ainda que estes o ultrapassem incomparavelmente.
35. Este grande mistério está ligado, antes de mais, ao mistério de Deus Uno e
Trino e ao mistério de Cristo. A revelação da paternidade de Deus é a revelação
do próprio mistério da paternidade: “dobro os joelhos diante do Pai, de quem
recebe o nome toda paternidade no céu e na terra” (Ef 3,14). A revelação do
Filho, particularmente em João, é a manifestação da filiação em sentido próprio,
que brota ontologicamente da geração do Unigênito e faz parte do próprio
mistério da Trindade. Numa espécie de inversão da relação de compreensão, a
paternidade e a filiação trinitárias iluminam e purificam a paternidade, a
maternidade, a filiação e a fraternidade humanas, culturalmente situadas e
marcadas pelo pecado. Em primeiro lugar, a paternidade divina mostra que a
filiação é a caraterística mais profunda do ser humano: ele é um dom dado a si
mesmo por Deus Pai, e é chamado a receber-se de Deus e, nele, dos outros e do
mundo criado que o rodeia, para se tornar cada vez mais ele mesmo. Por isso, a
sua identidade e a sua vocação revelam-se particularmente em Cristo, o Filho
encarnado, o “homem perfeito” que, “na própria revelação do mistério do Pai e do
seu amor, Cristo, o novo Adão, manifesta plenamente o homem ao próprio homem e
lhe revela a sua altíssima vocação”[47]. Por outro lado, o ser humano é também chamado a participar no mistério da
paternidade, sendo pai e mãe na carne e no espírito. À imagem da paternidade
divina, a paternidade e a maternidade humanas implicam o dom de si, a plena
igualdade entre pais e filhos, entre quem dá e quem recebe, mas também uma
diferença e uma taxis entre eles. Por fim, não há antropologia
verdadeiramente cristã que não seja pneumatológica. Só o Espírito “vivificador”
humaniza plenamente o ser humano, tornando-o filho e filha, pai e mãe.
Analogamente, podemos falar de uma forma de co-inspiração do Espírito, ou
de inspiração conjunta, porque os nossos atos e palavras mais fecundos
são proporcionais à cooperação que oferecem ao Espírito, que através deles
consola, eleva e guia[48]. Deste modo, a verdade e o sentido da paternidade, da filiação e da fecundidade
humanas devem ser revelados, porque não são apenas realidades naturais ou
culturais, mas uma participação no modo de ser de Deus Uno e Trino. Não podem
ser compreendidas em profundidade sem a Revelação, nem podem ser exercidas sem a
graça. Esta é mais uma boa nova a ser redescoberta hoje a partir de Nicéia.
36. Em certo sentido, o próprio termo homoousios pode ter um significado
antropológico. O ser humano tem acesso a Deus. É claro que Cristo diz, de modo
singular: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9), por causa do mistério da união
hipostática. Mas esta união única nele é coerente com o mistério do ser humano
“criado à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27). Neste sentido, cada ser humano
reflete verdadeiramente Deus e torna-o conhecido e acessível. São Paulo VI
exprimiu este paradoxo ao sublinhar que “para conhecer o homem, o homem
verdadeiro, o homem integral, é preciso conhecer a Deus”, mas também que “para
conhecer Deus, é preciso conhecer o homem” [49]. Estas palavras devem ser tomadas no seu sentido mais completo: não só cada ser
humano nos mostra a imagem de Deus, como também não é possível conhecer Deus sem
passar pelo ser humano. Além disso, como vimos acima (§ 22), a Igreja utilizará
a expressão homoousios para exprimir a comunhão de natureza de Cristo com
todos os seres humanos, como verdadeiro homem que ele é “nascido de uma mulher”
(Gl 4,4), a Virgem Maria[50]. As duas faces desta dupla “consubstancialidade” do Filho encarnado reforçam-se
mutuamente para fundamentar profunda e eficazmente a fraternidade de todos os
seres humanos. Somos, de certo modo, irmãos e irmãs de Cristo na unidade da
mesma natureza humana: “Por isso, foi necessário que Ele se tornasse em tudo
semelhante aos seus irmãos” (Hb 2,17; 2,11-12). É este vínculo de humanidade que
permite a Cristo, consubstancial ao Pai, atrair-nos para a sua filiação com o
Pai e fazer de nós filhos de Deus, seus próprios irmãos e, consequentemente,
irmãos uns dos outros em sentido novo, radical e indestrutível.
37. O mistério do ser humano em sua grande dignidade é também iluminado pela
dimensão escatológica do Símbolo niceno. A fé na “ressurreição dos mortos”,
também designada como “ressurreição da carne” [51], afirma a beleza do corpo e a beleza do que se vive no mundo através do corpo,
apesar da fragilidade e dos limites humanos. Afirma o valor deste corpo pessoal
concreto, que será ressuscitado e transfigurado, mas que permanecerá
numericamente idêntico[52]. Põe, assim, uma exigência ética: se os verdadeiros atos de amor realizados no
e pelo corpo nesta vida são, de algum modo, os primeiros passos da vida
ressuscitada, o respeito pelo corpo implica viver com retidão e pureza tudo o
que está relacionado a ele. É de notar que as cristologias que não fazem justiça
à humanidade plena de Cristo correm o risco de induzir a uma concepção da
salvação como fuga ao corpo e ao mundo, e não como plena humanização. No
entanto, esta profunda conexão com o mundo e com o corpo, criados bons e
plenificados pela nova criação, é uma das marcas do cristianismo. Encontramos
aqui a ligação profunda entre criação e salvação: todos os traços humanos de
Jesus, recebidos de Maria, sua mãe, são boa nova e convidam cada ser humano a
considerar o que torna a sua própria humanidade concreta também uma boa nova.
38. Além disso, a esperança da ressurreição, como a da “vida eterna no mundo
futuro”, atesta o imenso valor de cada pessoa, que não é destinada a desaparecer
no nada ou no todo, mas a uma relação eterna com Deus que escolheu cada pessoa
antes da fundação do mundo (Ef 1,4). A eleição de Abraão, Isaac e Jacó e a
aliança irrevogável com o povo de Israel revelam já a aliança que Deus quer
fazer com todas as nações e com cada ser humano, numa fidelidade indestrutível.
Do mesmo modo, a encarnação do Filho eterno num ser humano singular confirma,
funda e realiza a dignidade imprescritível de cada pessoa como irmão e irmã de
Jesus Cristo.
39. O nosso mundo atual tem uma necessidade imensa de redescobrir os aspectos do
mistério do ser humano que o apresentam na sua grandeza, sem ignorar a sua
miséria: “O homem está infinitamente para além do homem”, afirma Blaise Pascal[53]. Esta convicção cristã desafia todas as formas de reducionismo antropológico. A
fé na paternidade, na filiação e na inspiração fecunda (“pneumática”) do ser
humano fundamenta e orienta toda a concepção autêntica da autonomia, da
liberdade e da criatividade humanas. Estas estão enraizadas em Deus, Pai, Filho
e Espírito Santo, para quem a onipotência, a sabedoria e o amor são um só no dom
de si. Inversamente, a perda da fé na ressurreição e na vida eterna conduzirá à
recusa de dar ao corpo o lugar que lhe compete, como também de reconhecer o
valor sagrado de cada indivíduo na sua singularidade e transcendência. No
entanto, o Criador revelou-nos as suas intenções: “Tu o fizeste pouco menor que
os anjos, de glória e de honra o coroaste” (Sl 8,6).
3.3 A beleza dom da Igreja e do
batismo
40. Os vários fios tecidos até agora são atados nas afirmações eclesiológicas e
sacramentais do Símbolo. A profissão de fé de Niceia significa também acreditar
na Igreja “una, santa, católica e apostólica” e no batismo “para a remissão dos
pecados”. A Igreja e o batismo devem ser celebrados como dons que são também
semper majora. Eles são objetos paradoxais da fé, confirmam e manifestam a
plenitude superabundante de tudo o que está exposto no conjunto do Símbolo:
trata-se de reconhecer neles muito mais do que aquilo que se vê. A Igreja é
una para além de divisões visíveis, é santa para além dos pecados dos
seus membros e dos erros cometidos pelas suas estruturas institucionais, é
católica e apostólica para além das divisões identitárias ou culturais e das
tribulações doutrinais e éticas que a agitam constantemente. Neste sentido,
devem ser evitados tanto o “monofisismo” eclesiológico como o “arianismo”: o
primeiro subestima, ou mesmo obscurece, a dimensão humana da Igreja, enquanto o
segundo negligencia a dimensão divina da Igreja em favor de uma visão puramente
sociológica e funcional. Do mesmo modo, na fé, o batismo é entendido como fonte
de vida nova e de purificação do pecado para além do que é visível na vida
imperfeita dos batizados, e do que, por vezes, é distanciado de Deus. Revela e
eleva a dignidade inviolável de cada ser humano, conformando-o a Cristo,
sacerdote, profeta e rei.
41. “Crer” na Igreja e “confessar” um só batismo é receber um dom de fé que
permite discernir, no âmago da sua dimensão humana e frágil, a presença ativa e
santificadora do Espírito Santo. O Espírito torna a Igreja una, santa, católica
e apostólica, e dá ao batismo a sua eficácia. “Crer” a Igreja e o batismo é
também perceber na Igreja e através dela a ação salvífica de Cristo. Assim como
Cristo é o sacramento fundamental de Deus, a sua presença real e ativa no
símbolo real da sua humanidade, assim a Igreja é o “sacramento universal da
salvação” [54]. Finalmente, “crer” a Igreja e o batismo é discernir neles a presença do Deus
Uno e Trino. A Igreja é semper major, pois encontra sua fonte e seus
fundamentos no Deus Uno e Trino, e nela vivem o Pai, o Filho encarnado e o
Espírito. Nela, a fé professada em Niceia continua sendo proclamada e celebrada
- através do batismo e dos outros sacramentos: “Glória a ti, Pai e Filho com o
Espírito Santo na santa Igreja” [55].
42. No encontro entre soteriologia e antropologia, crer a Igreja e confessar um
único batismo confirma e desdobra a imensidão salvação e o mistério do ser
humano. A salvação não é simplesmente um processo individual, é comunitário e
sobrenatural. Recebida pela cooperação de outras pessoas, produz frutos
espirituais para outras, que nos são próximas[56]. Isto ilumina a natureza do ser humano, que não é uma mônada isolada, mas um
ser social, inserido numa família, numa nação, numa comunidade de fé e em toda a
humanidade[57]. Por conseguinte, a fé na Igreja e no batismo implica que a redenção se
inscreve em atos e estruturas visíveis, ligados à dimensão corpórea do indivíduo
e do corpo social, que se desenvolvem na história. Estes são lugares do Espírito
vivificante e inspirador, que atua em seu interior e para além deles, de modo a
chegar a cada ser humano. No fundo, ao testemunhar a ligação entre o indivíduo e
o todo, entre a corporeidade e a pertença à história, a Igreja insere-se na obra
de Cristo que “revela plenamente o homem a si mesmo” [58]. De modo particular, como sacramento da unidade [59], a Igreja professada no Símbolo de Niceia é o sinal e o instrumento da unidade
de todos estes aspectos da pessoa humana e do conjunto da humanidade: a visão
cristã do ser humano faz explodir a estreiteza de todos os reducionismos que não
tendem para a unidade, seja por afirmar o indivíduo em desfavor da coletividade,
seja pela afirmação da coletividade em detrimento do indivíduo.
4. Celebrar juntos a imensidão da salvação: o significado Ecumênico de Niceia e
a esperança de uma data comum para a celebração da Páscoa
43. A profissão de fé de Niceia, em toda a sua beleza e grandeza, exprime a fé
comum de todos os cristãos. Todos estão unidos na profissão do Símbolo
niceno-constantinopolitano, mesmo que nem todos reconheçam ao Concílio e às suas
decisões o mesmo estatuto. O ano de 2025 é, pois, uma oportunidade inestimável
para sublinhar o que temos em comum, que é muito mais forte, quantitativa e
qualitativamente, do que aquilo que nos divide: juntos, cremos no Deus Uno e
Trino, em Cristo como verdadeiro homem e verdadeiro Deus, na salvação por Jesus
Cristo, segundo as Escrituras lidas na Igreja e sob a direção do Espírito Santo.
Juntos, cremos a Igreja, o batismo, a ressurreição dos mortos a vida eterna. O
Concílio de Niceia é particularmente venerado pelas Igrejas Orientais, não
apenas como um Concílio entre muitos ou o primeiro de uma série, mas como o
Concílio por excelência, que promulgou a confissão de fé dos “318 Padres
Ortodoxos”.
44. Por conseguinte, 2025 é uma oportunidade para todos os cristãos celebrarmos
juntos esta fé e o Concílio que lhe deu expressão. O ecumenismo teológico
concentra, com razão, a sua atenção e os seus esforços nos nós não resolvidos
das nossas diferenças, mas é, sem dúvida, igualmente frutuoso, se não ainda
mais, celebrar juntos, para caminhar em direção ao restabelecimento da
plena comunhão entre todos os cristãos, para que o mundo creia. Já sublinhamos
como a insistência das diferentes tradições cristãs permite pôr em evidência a
riqueza do texto do Símbolo (cf. supra § 17). A comemoração conjunta de Niceia
poderá ser um caminho Ecumênico de enriquecimento recíproco, que oferecerá, ao
longo do percurso, uma melhor compreensão do mistério, uma maior comunhão entre
as tradições eclesiais e uma adesão mais forte à profissão comum da fé cristã.
45. Um dos objetivos de Niceia era estabelecer uma data comum para a Páscoa,
para exprimir a unidade da Igreja em todo o Oikoumenē. Infelizmente,
ainda não existe um acordo unânime neste poto. A divergência dos cristãos a
respeito da mais importante festa de seu calendário cria danos pastorais nas
comunidades, até ao ponto de dividir famílias, e causar escândalo entre os não
cristãos, afetando o testemunho do Evangelho. É por isso que o Papa Francisco, o
Patriarca Ecumênico Bartolomeu e outros líderes da Igreja têm apelado
repetidamente pelo estabelecimento de uma data comum para a celebração da
Páscoa. Em 2025, a Páscoa será celebrada na mesma data, tanto no Oriente como no
Ocidente. Não seria esta uma oportunidade providencial para todas as comunidades
cristãs continuarem a celebrar a Paixão e a Ressurreição de Cristo, a “festa das
festas” (Matinas Pascais bizantinas), em comunhão também cronológica? Há uma
série de propostas bastante realistas neste sentido. Sobre esta questão, a
Igreja Católica permanece aberta ao diálogo e a uma solução ecumênica. Já no
apêndice da Constituição Sacrosanctum Concilium, o Concílio Vaticano II
não se opôs à introdução de um novo calendário, mas sublinhou que isso deveria
ser feito “desde que haja um entendimento com todos os interessados,
especialmente com os irmãos separados da comunhão com a Sé Apostólica”[60]. Note-se a importância que o mundo oriental atribui aos elementos estabelecidos
na posteridade de Niceia para determinar a data da Páscoa: ela deve ser
celebrada “no primeiro domingo após a lua cheia que se segue ou coincide com o
equinócio da primavera”[61]. O domingo evoca a ressurreição de Cristo no primeiro dia da semana, enquanto a
lua cheia a seguir ao equinócio da primavera recorda a origem judaica da festa,
o 14 de Nissan, mas também a dimensão cósmica da ressurreição, uma vez que o
equinócio da primavera evoca o momento em que a duração do dia prevalece sobre a
da noite e a natureza revive depois do inverno.
46. É de notar que foi no Concílio de Niceia que a Igreja optou decisivamente
por se separar da data da Páscoa judaica. O argumento de que o Concílio
pretendia distanciar-se do judaísmo foi apresentado com base nas cartas do
imperador Constantino, relatadas por Eusébio, que incluem justificações
antijudaicas para a escolha de uma data de Páscoa não ligada ao 14 de Nissan[62]. No entanto, há que distinguir entre as motivações atribuídas ao Imperador e as
dos Padres Conciliares. Em todo o caso, nada nos cânones do Concílio exprime
esta rejeição do modo de proceder judaico. Não podemos ignorar a importância que
tem para a Igreja a unidade do calendário e a escolha do domingo para exprimir a
fé na ressurreição. Hoje, quando a Igreja celebra o 1700º aniversário de Niceia,
estes são mais uma vez os objetivos de uma reflexão sobre a data da Páscoa. Para
além da questão do calendário, seria desejável sublinhar sempre melhor a relação
entre a Páscoa e o Pesaḥ na teologia, nas homilias como também na
catequese, a fim de alcançar uma compreensão mais ampla e profunda do
significado da Páscoa.
47. Na Vigília Pascal e em cada liturgia batismal, o Símbolo
niceno-constantinopolitano é proclamado na sua forma mais solene, que é o
diálogo. Esta profissão de fé, que é o fundamento da vida cristã individual e da
vida da Igreja, encontrará toda a sua força se estiver enraizada na revelação
feita aos nossos “irmãos mais velhos” e aos nossos “pais na fé” e vivida em
comunhão visível por todos os discípulos de Cristo[63].
Capítulo 2
O símbolo de Nicéia na vida dos crentes
“Acreditamos como batizamos;
e rezamos como acreditamos”.
Prelúdio: a fé confessada na fé vivida
48. A fé professada em Niceia tem um rico conteúdo dogmático que foi decisivo
para estabelecer a doutrina cristã. No entanto, o desafio desta doutrina era e
continua a ser o de alimentar e orientar a vida dos fiéis. Neste sentido, é
possível destacar um verdadeiro tesouro espiritual do Concílio de Niceia e do
seu Símbolo, uma “fonte de água viva” da qual a Igreja é chamada a beber hoje e
sempre. Foi para proteger o acesso a esta água viva que Santo Antão aceitou
deixar o seu eremitério para testemunhar contra os arianos em Alexandria[64]. Este tesouro revela-se diretamente no modo como a profissão de fé nicena
nasceu da lex orandi e foi por ela alimentada[65]. Além disso, os sínodos nunca pretenderam limitar os seus debates ao domínio
especulativo das declarações de fé. Pelo contrário, seus participantes
pretendiam discutir o conjunto da vida eclesial, a melhor maneira de acolher e
praticar quotidianamente as verdades da fé e, inversamente, de regular o seu
ensino sobre a ortopraxia litúrgica, sacramental e mesmo ética[66]. Em suma, os bispos levavam espiritualmente consigo para os concílios os
membros do corpo da Igreja, com quem partilhavam a vida de fé e de oração e com
quem cantavam o louvor e a glória do Pai, do Filho e do Espírito Santo, um só
Deus. Para compreender o significado espiritual e teológico do dogma de Nicéia,
precisamos explorar como ele foi recebido na prática litúrgica e sacramental, na
catequese e na pregação, na oração e nos hinos do século IV.
1. Batismo e fé trinitária
49. Já antes de se ter desenvolvido teologicamente a doutrina da Trindade,
a fé na Trindade estava na base da vida cristã celebrada no batismo. A
profissão de fé batismal pronunciada na fórmula sacramental do batismo não
exprimia simplesmente um mistério teórico, mas a fé viva que se referia à
realidade da salvação dada por Deus e, portanto, ao próprio Deus. A fé batismal
proporciona um “conhecimento” de Deus que é, ao mesmo tempo, um acesso ao Deus
vivo. Assim, o apologista Atenágoras afirma: “Há [...] homens [...] que se
deixam guiar unicamente pelo desejo de conhecer o verdadeiro Deus e seu
Verbo, de saber o que é a unidade do Filho com o Pai, o que é a comunhão do Pai
com o Filho, o que é o Espírito, o que é a união e a distinção das três pessoas
assim confundidas, o Espírito, o Filho e o Pai” [67].
50. É por isso que a fórmula batismal, na qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo
são colocados em pé de igualdade, constitui o argumento central contra Ário e os
seus seguidores, muito mais do que o recurso à argumentação teológica. Isto é
tão verdade para Ambrósio[68] e Hilário[69] como para Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Efrém, o Sírio[70]. Do mesmo modo, Atanásio insiste em que o Filho é nomeado na fórmula batismal
não porque o Pai não seja suficiente, nem por mero acaso, mas porque :
Ele é o Verbo de Deus e a sua própria Sabedoria e, sendo a sua irradiação (apaugasma),
está sempre com o Pai. Por isso, quando o Pai distribui a graça, só a pode
dar no seu Filho, porque o Filho está no Pai como o resplendor da luz [...]
Aquele que o Pai batiza, o Filho também batiza, e aquele que o Filho batiza é
santificado no Espírito Santo[71].
51. Dito isto, para Atanásio e os Padres Capadócios, não se trata apenas de
pronunciar a fórmula trinitária, mas o batismo pressupõe a fé na divindade de
Jesus Cristo. Assim, o ensino da fé correta é necessário e faz parte da prática
correta do batismo. Atanásio cita como base a formulação do preceito de Mt
28,19: “Ide... ensinai... e batizai” [72]. É por isso que Atanásio - tal como Basílio e Gregório de Nissa[73] - nega qualquer eficácia ao batismo ariano, porque aqueles que consideram
o Filho uma criatura não têm uma concepção correta de Deus Pai: quem não
reconhece o Filho também não compreende o Pai e não “possui” o Pai, porque o Pai
nunca começou a ser Pai[74].
2. O Símbolo Niceno como confissão de fé
52. A confissão de fé nicena não só é a expressão da fé batismal, como pode ter
vindo diretamente de um símbolo batismal da Igreja de Cesareia na Palestina (se
damos crédito ao que relata Eusébio) [75]. Três adições teriam sido feitas: “...isto é, da substância do Pai”, “gerado,
não criado”, e “consubstancial ao Pai (homoousios)”. Desta forma, fica
estabelecido com completa clareza que aquele que “tomou carne por nós, homens...
e sofreu” é Deus, homoousion tō Patri. No entanto, embora ele seja “da
substância do Pai” (ek tēs ousias tou Patros), é distinto do Pai na
medida em que é seu Filho. Por Ele, que “se fez homem para nossa salvação”,
sabemos o que significa que o Deus Uno e Trino “é amor” (1Jo 4,16). Estes
acréscimos são essenciais e marcam a originalidade e o contributo decisivo de
Niceia, mas, ao mesmo tempo, deve ser constantemente sublinhado que o Símbolo,
como símbolo de fé, está originalmente enraizado no contexto litúrgico, que é o
seu ambiente vital e, portanto, é esse o contexto em que assume todo o seu
significado. Não se trata certamente de uma exposição teórica, mas de um ato da
celebração batismal, que se enriquece com o conjunto todo da liturgia e, por sua
vez, a ilumina. Os nossos contemporâneos - por desconhecerem essas raízes
litúrgicas e batismais - podem, por vezes, ter a impressão de que o Símbolo é
uma afirmação muito teórica.
53. Neste sentido, a fé de Niceia permanece um “symbolon” (“ekthesis”,
“pistis”), ou seja, uma confissão de fé. Distingue-se de uma
interpretação ou de uma definição teológica técnica mais precisa, destinada a
proteger a fé (“oros”, “definitio”), como a proposta, por
exemplo, pelo Concílio de Calcedônia. Como símbolo, a confissão de Nicéia é uma
formulação positiva e uma clarificação da fé bíblica[76]. Não pretende ser uma nova definição, mas antes uma evocação da fé dos
apóstolos: “Cristo deu esta fé, os apóstolos proclamaram-na, os
Padres de toda nossa Oikoumenē reunidos em Niceia transmitiram-na (paradosis)”[77].
54. Da mesma forma, é devido ao seu estatuto de confissão de fé e precisamente
da fé apostólica, e não como definição ou ensinamento, que o Símbolo niceno é
considerado como a prova decisiva da ortodoxia (pelo menos até ao final
do século V). Por isso foi utilizado como texto de base nos concílios seguintes[78]. Assim, Éfeso e Calcedônia pretendiam ser interpretações do Símbolo de Nicéia:
sublinhavam o seu acordo com Nicéia e opunham-se às posições assumidas pelos que
discordavam de Nicéia. Quando a Confissão de Fé niceno-constantinopolitana foi
lida no Concílio de Calcedônia, os bispos reunidos exclamaram: “Esta é a nossa
fé. É nela que fomos batizados, é nela que batizamos! O Papa Leão acreditou
assim, Cirilo acreditou assim”[79]. Note-se que a Profissão de fé pode ser expressa no singular - “eu creio” - mas
também frequentemente no plural: “nós cremos”; do mesmo modo, a Oração do Senhor
está no plural: “Pai Nosso...”. Minha fé é radicalmente pessoal e singular, mas,
de igual modo, se inscreve radicalmente na fé da Igreja, enquanto comunidade de
fé. O Símbolo niceno e o original grego do Símbolo niceno-constantinopolitano se
abrem com o plural “cremos”, “testemunhando que naquele ‘Nós’, todas as Igrejas
se encontravam em comunhão e todos os cristãos professavam a mesma fé”[80].
55. Como referimos no capítulo anterior, até hoje “Niceia” - “a confissão de fé
dos 318 Padres Ortodoxos” - é considerada nas Igrejas Orientais como o Concílio
por excelência, ou seja, não como “um Concílio entre outros”, nem mesmo como “o
primeiro de uma série”, mas como a norma da fé cristã correta[81]. Os “318 Padres” são explicitamente mencionados na liturgia de Jerusalém. Além
disso, nas Igrejas Orientais, ao contrário das Igrejas Ocidentais, Nicéia recebe
uma comemoração própria no calendário litúrgico. É de notar que a confissão de
fé teve, desde o iício, um peso diferente do atribuído às questões
disciplinares. Enquanto as decisões por maioria são possíveis para as questões
disciplinares, é a Tradição Apostólica que é decisiva para as questões de fé:
“No que diz respeito à data da Páscoa, os Padres escreveram: ‘Está decidido’. No
que diz respeito à fé, eles não escreveram: ‘Foi decidido’, mas: ‘Assim acredita
a Igreja Católica!’ˮ[82].
3. Aprofundamento da pregação e da catequese
56. Os Padres do Oriente e do Ocidente não se contentaram em argumentar com a
ajuda de tratados teológicos, mas também esclareceram a fé nicena em sermões
dirigidos ao povo, a fim de proteger os fiéis contra interpretações errôneas,
geralmente designadas pelo termo “ariano” - ainda que os “homoianos” do Ocidente
no tempo de Agostinho diferissem muito dos “neo-arianos” do Oriente na sua
argumentação. A visão teológica de que o Filho não é “Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro”, mas apenas a criatura mais eminente do Pai, e que não é coeterno
com Ele, foi reconhecida pelos Padres como uma ameaça persistente e combatida,
mesmo independentemente de oponentes concretos. O prólogo do evangelho de João
oferecia exatamente essa oportunidade para explicar a relação entre o Pai e o
Filho, ou entre “Deus” e a sua “Palavra”, de acordo com a confissão de Nicéia[83]. Cromácio de Aquileia (ordenado bispo em 387/388, falecido em 407), por
exemplo, transmitiu a fé nicena aos seus seguidores sem utilizar terminologia
técnica[84]. Mesmo os Padres da Igreja que nutriam ceticismo de princípio em relação aos
“debates teológicos”, tomaram uma posição muito clara contra a “impiedade
ariana” (“asebeia”, “impietas”): os Arianos não compreendiam a
“geração eterna do Filho”, nem a “igualdade-eternidade original” do Pai e do
Filho[85]. Cometem mesmo um erro no seu monoteísmo ao aceitarem uma segunda divindade
subordinada. A sua adoração é, portanto, pervertida e errônea.
57. Assim, nas suas catequeses, João Crisóstomo explica a fé batismal
validamente formulada em Niceia e distingue a fé correta não só da doutrina
homeusiana, mas também da doutrina sabeliana: os cristãos acreditam em Deus como
“uma essência, três hipóstases” [86]. Agostinho apresenta um argumento semelhante nas suas instruções aos candidatos
ao batismo[87]. A Oratio catechetica magna
de Gregório de Nissa, cujas passagens mais extensas são dedicadas ao Verbo de
Deus eterno e incarnado, pode ser considerada a obra-prima de uma catequese
claramente destinada àqueles que a deviam transmitir, ou seja, bispos e
catequistas. O tema não é apenas a relação entre o Filho-Palavra e o Pai
(capítulos 1, 3, 4), mas também o significado da Encarnação como ação
redentora (capítulo 5). Gregório quer deixar claro que o nascimento e a
morte não são algo indigno de Deus ou incompatível com a sua perfeição (cap. 9 e
10) e explica a Encarnação em termos do amor de Deus pelos homens. Mas insiste
sobretudo no fato de que o batismo cristão se realiza na “Trindade incriada”,
isto é, nas três Pessoas coeternas. É só assim que o batismo confere a vida
eterna e imortal: “Com efeito, quem se submete a um ser criado coloca, sem o
saber, a sua esperança de salvação nesse ser e não na divindade” [88].
58. O cerne do debate é, de fato, mais uma questão existencial do que um
problema teórico: o batismo está ligado ao “estabelecimento na filiação”
(Basílio), ao “início da vida eterna” (Gregório de Nissa), à “salvação do pecado
e da morte” (Ambrósio)[89]? Isso só é possível se o Filho (e o Espírito Santo) é Deus. Só quando o
próprio Deus se torna “um de nós” é que existe uma possibilidade real de
participarmos na vida da Trindade, ou seja, de sermos “divinizados”.
4. Oração ao Filho e doxologias
59. A profissão fé de Niceia serve de regra para a oração pessoal e litúrgica[90], que são marcadas por Niceia. Embora a “invocação do nome do Senhor (Jesus)” já
esteja atestada nos escritos do Novo Testamento[91] e que, sobretudo, os hinos a Cristo[92] testemunhem a oferenda de louvor e adoração, a oração ao Filho tornou-se
uma fonte de controvérsia na crise ariana.
60. Inspirando-se em alguns textos de Orígenes[93], os arianos do século IV, bem como os seguidores de Orígenes nos séculos V e
VII, opuseram-se particularmente à oração litúrgica ao Filho. Os arianos
tinham interesse em destacar as passagens da Escritura que mostram o próprio
Jesus em oração, para sublinhar a sua inferioridade em relação ao Pai.
Juntamente com a concepção (apolinarista), também muito difundida entre os
arianos, segundo a qual o Logos toma o lugar da alma de Jesus, a subordinação
do Logos ao Pai parecia assim provada. Para eles, portanto, a oração ao
Filho era inadequada. A favor do seu ponto de vista, os Arianos argumentavam
utilizando a redação tradicional da doxologia, que é de grande
importância, particularmente nas liturgias orientais: “Glória e adoração ao
Pai pelo (dia / per) Filho no (en / in)
Espírito Santo”[94]. A diferença de preposições foi invocada como prova de uma diferença
essencial entre as pessoas. Os arianos procuraram utilizar a liturgia -
reconhecida como testemunha da fé da Igreja - para provar o que consideravam ser
teologicamente justificado.
61. Por outro lado, os defensores de Niceia argumentavam que a prática da
oração devia corresponder à fé, mas que esta, por sua vez,
correspondia ao batismo. A fórmula batismal manifesta a igual dignidade
do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Daí resulta que a oração - pessoal ou
litúrgica - pode e deve ser dirigida também ao Filho. Embora não rejeitassem a
antiga fórmula da doxologia, mas defendessem o seu significado ortodoxo[95], preferiam outras formulações e preposições: “tō Patri, kai...kai” (“ao
Pai, e... e”), “tō Patri, dia...syn” (“ao Pai, pelo... com”), que também
são atestadas na tradição bíblica e litúrgica[96]. Basílio refere-se assim, entre outros, ao antiquíssimo hino “Phōs hilăron”
(talvez do século II), em que o Pai, o Filho e o Espírito são objeto de
um cântico de adoração[97].
62. O princípio: “Devemos crer como somos batizados e, portanto, adorar como o
batismo nos permite!”[98] aplica-se também à oração pessoal. A invocação de Jesus - tal como
é praticada nas formas de oração a Jesus, especialmente nos círculos monásticos
- é explicitamente justificada pela invocação de “homoousios tôi Patri”.
“Quando dizemos 'Jesus'“, explica Chenouté, um Padre copta do século V, “a
Santíssima Trindade também é nomeada”. Quando se invoca o Filho encarnado, ele
não é invocado separadamente do Pai e do Espírito Santo. Quem não quiser rezar a
Jesus está seguindo a “nova impiedade”; não entende nada da Trindade, nem
entende nada de “Jesus” [99]. A maneira como se reza mostra aquilo em que se acredita.
63. A correção na oração tem uma dimensão soteriológica. É Gregório de Nissa
quem faz a advertência mais forte a esse respeito: a esperança do crente é mais
do que a moral, no sentido atual do termo, mas exprime-se também na oração. A
esperança dirige-se para a divinização operada por Deus: se “a primeira grande
esperança já não está presente naqueles que se deixam levar pelo erro
doutrinal”, isto tem por consequência que “não haveria vantagem em comportar-se
corretamente com a ajuda dos mandamentos”. E Gregório continua
Assim, nós somos batizados como o recebemos, em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo; acreditamos como somos batizados, pois convém que a fé esteja de acordo com a confissão; glorificamos como
acreditamos, pois não é natural que a glória combata a fé. Mas aquilo em que
cremos também glorificamos. Além disso, como a fé está no Pai, no Filho e no
Espírito Santo, e como a fé, a glória e o batismo são mutuamente dependentes,
não se distingue entre a glória do Pai, do Filho e do Espírito Santo[100].
64. A adição da doxologia trinitária no final de cada salmo, cuja ordem é
atribuída ao Papa Dâmaso (384 d.C.), pode ser entendida neste sentido.
Cassiodoro observa que todas as heresias são assim reduzidas a nada:
A Mãe Igreja acrescenta o louvor da Trindade a todos os salmos e cânticos. Ela
presta homenagem Àquele de quem estas palavras provêm, e assim corta a grama sob
os pés das heresias de Sabélio, Ário, Mani e outros[101].
É o caso, nomeadamente, do aditamento “sicut erat in principio...”, entendido como uma profissão inequívoca de fé anti-ariana[102].
5. A teologia nos hinos
65. Finalmente, os hinos são uma expressão da profissão de fé nicena que
encontrou um lugar na vida do crente, informada por Niceia. Assim, muitos hinos
terminam com a doxologia trinitária. Além disso, o confronto com a heresia
ariana desempenhou um papel importante no desenvolvimento da poesia cristã. Foi
primeiramente no Oriente que se compuseram hinos e cânticos em resposta aos
poemas de propaganda dos grupos heterodoxos[103]. Quanto ao Ocidente, pode-se mesmo dizer que o seu contributo teológico mais
importante no século IV foi a composição de hinos.
66. Além de João Crisóstomo, foi sobretudo Efrém, o Sírio (306-373), que, na sua
poesia teológica (que mais tarde marcou toda a literatura siríaca clássica) e
sobretudo nos hinos De fide e De nativitate, cantou o mistério de
Cristo: Cristo é Deus, apesar da fraqueza da sua natureza humana; a kenosis
de Cristo é um milagre tão grande só porque ele é Deus e permanece Deus
neste esvaziamento[104]. É com profunda piedade que Efrém descreve as relações intra-trinitárias: o
Filho está no Pai “antes de todos os tempos”, é “igual ao Pai e, no
entanto, distinto dele” [105]. Utiliza prontamente a imagem do sol, da sua luz e do seu calor, que estão
ligados na unidade[106]. Refere-se constantemente aos três “nomes” a que corresponde a realidade divina
e nos quais “consistem o nosso batismo e a nossa justificação” [107]. Faz tudo isto deixando claro o contexto da fé nicena, pois cita “o glorioso
sínodo”, referindo-se claramente a Niceia[108]. Outros teólogos-poetas siríacos do século V, como Isaac de Antioquia e Mar
Balai, compuseram sermões e cânticos métricos dirigidos ao próprio Cristo,
glorificando-o explicitamente com atributos divinos: “Louvado seja Ele [Jesus
Cristo] e seu Pai, e glória ao Espírito Santo” - “Louvado seja Ele, o
Altíssimo, que veio para nos redimir, louvado seja Ele, o Todo-Poderoso, cujo
simples movimento de cabeça decide o mundo” [109].
67. Hilário aprendeu a cantar hinos durante o seu exílio e introduziu-os na
Gália; Ambrósio também confessa ter adotado o “costume do Oriente” durante os
ferozes conflitos com os arianos em Milão, em 386-87. O Filho é “sempre Filho,
tal como o Pai é sempre Pai. De que outra forma poderia o Pai ter este
nome se não tivesse um Filho?”, sublinha Hilário no hino Ante saecula
qui manens, no qual descreve o “duplo nascimento do Filho, que nasceu do
Pai, para o Pai que não conhece nascimento, e nasceu da Virgem Maria, para o
mundo”.
68. Ao contrário dos hinos altamente teológicos de Hilário, que dificilmente
encontravam lugar na liturgia, os hinos de Ambrósio rapidamente se tornaram
famosos em toda parte e deram um poderoso encorajamento à fé, como era o
objetivo de Ambrósio. O seu hino matutino Splendor paternae gloriae pode
ser visto como um comentário à Confissão de Nicéia. Particularmente notáveis são
as estrofes finais de alguns hinos, que sublinham a igualdade do Filho com o
Pai: “Aequalis aeterno Patri...”, ou que se dirigem ao Filho: “Iesu,
tibi sit gloria ... cum Patre et almo Spiritu”. Em um hino muito curto,
talvez da autoria de Ambrósio, a confissão de Deus uno em três pessoas é quase
estabelecida em verso como uma frase-chave para os fiéis: “O lux beata
trinitas, et principalis unitas...”.
69. Além dos de Ambrósio, são importantes para a cristologia sobretudo os hinos
de Prudêncio (Aurelius Prudentius Clemens, 348-415/25). O poeta espanhol ficou
particularmente impressionado com a verdadeira divindade e humanidade do
Redentor, no qual se funda a nossa nova criação
Christus forma Patris, nos Christi forma et imago;
Condimur in faciem Domini bonitate paterna
Venturo in nostram faciem post saecula Christo[110].
Capítulo 3
Nicéia como evento teológico
e como evento eclesial
70. Comemorar Niceia é compreender como, após 1700 anos, o Concílio permanece
novo, dessa novidade escatológica inaugurada na manhã de Páscoa, que continua a
renovar a Igreja. É um evento no sentido mais forte, um ponto de viragem
que se inscreve no tecido da história com as suas concatenações, mas é também um
ponto de concentração, introduzindo uma verdadeira novidade e exercendo uma
influência decisiva sobre o que se segue. Consoante à língua, o termo “evento”
refere-se ao que acontece, ad-ventus (avènement, Avent, avvenimento),
ou ao que vem de (évènement, event), à produção de um fato (acontecimiento)
ou ao aparecimento do novo (Ereignis). Assim, Niceia é a expressão de uma
viragem no pensamento humano, provocada pela Revelação do Deus Uno e Trino em
Jesus, que fecunda o espírito humano dando-lhe novos conteúdos e novas
capacidades. É um “evento de Sabedoria”. Do mesmo modo, Niceia, que mais tarde
foi qualificado como o primeiro concílio Ecumênico, foi também a
expressão de uma viragem no modo como a Igreja se estrutura e assegura sua
unidade e a verdade da sua doutrina através da confissão de fé: foi um “evento
eclesial”. Obviamente que, em ambos os casos, a novidade se funda em um processo
prévio, uma realidade dada, a mesma que é transformada pela novidade. O Evento
de Sabedoria pressupõe a cultura humana, assume-a, por assim dizer, para a
purificar e transfigurar. O Evento eclesial baseia-se na evolução anterior das
estruturas da Igreja dos primeiros séculos, ela própria enraizada na herança
judaica e greco-romana.
71. Ora, a fonte deste duplo evento é outra, de iniciativa divina, o evento da
Revelação de Deus, o “evento Jesus Cristo”. Esta é a Novidade por excelência: o
Novus é o Novum[111].
Trata-se da própria Revelação, uma vez que o evento de Sabedoria e o
evento eclesial fazem parte da transmissão deste dom primordial[112]. Nele, Deus faz aliança com um povo para fazer aliança com todos os povos;
assume uma humanidade para assumir toda a humanidade. Niceia é expressão e fruto
da novidade da Revelação, e é por isso que o Concílio de 325 oferece um
paradigma para todas as etapas da renovação do pensamento cristão, bem como das
estruturas da Igreja. Além disso, pelo fato de Nicéia nascer do Novum que
é Cristo, pode ser compreendida de forma sempre renovada e enriquecer
continuamente a vida da Igreja. Trata-se, portanto, de explorar primeiro o
acontecimento fonte, o evento Jesus Cristo, e depois examinar as suas
consequências para o pensamento humano e para as estruturas eclesiais.
1. O evento Cristo: “A Deus, ninguém jamais viu. O Deus Unigênito [...] foi quem
o revelou” (Jo 1,18).
1.1 Cristo, Verbo encarnado, revela o Pai
72. O Símbolo niceno é a expressão, a colocação em palavras, de um acesso
inaudito, seguro e plenamente salvífico a Deus, oferecido pelo evento Jesus
Cristo. Na Encarnação, na vida, na Paixão, na Ressurreição e na Ascensão ao Céu
do Verbo consubstancial ao Pai, testemunhadas na Sagrada Escritura e na fé da
Igreja Apostólica, Deus semper major oferece, por sua própria iniciativa,
um conhecimento e um acesso a si mesmo que só Ele pode dar, e que estão, eles
próprios, para além do que os seres humanos podem imaginar e até esperar[113]. De fato, o Novo Testamento transmite à Igreja de todos os tempos o testemunho
que Jesus deu de si mesmo e que o Pai, na luz e na força do Espírito Santo,
confirmou definitivamente na Páscoa da morte, ressurreição e ascensão ao céu do
Filho feito carne, da efusão do Espírito, na plenitude dos tempos, “propter
nos et propter nostram salutem”[114]. Assim, a fé da Igreja testemunha que Jesus, o Unigênito, revelou Deus, o Pai,
a quem “ninguém jamais o viu” (Jo 1,18; cf. Jo 3,16.18 e 1Jo 4,9). Este
testemunho está resumido na resposta que Jesus deu ao apóstolo Filipe, que lhe
pedira: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso basta”. Jesus respondeu-lhe
Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me conheces? Quem me viu, viu o
Pai. Como tu dizes: “mostra-nos o Pai?” Não crês que eu estou no Pai e que o Pai
está em mim? As palavras que eu vos falo, não as falo por mim mesmo, mas é o Pai
que, permanecendo em mim, realiza as suas obras (Jo 14,8-11).
73. Se Jesus nos faz ver o Pai, tudo nele é acesso ao Pai. Cristo, na sua humanidade frágil e vulnerável, é a verdadeira expressão de Deus
Pai: “vê-lo é ver o Pai” (Jo 14,9) [115]. Por conseguinte, Deus não se escondeu primeiro no Gólgota sob a impotência do
Crucificado, para depois se manifestar na manhã de Páscoa, finalmente Ele
próprio, finalmente todo-poderoso. Pelo contrário, o amor de Jesus Cristo, que
se deixa crucificar e que, sofrendo a morte física, desce ao lugar onde o
pecador é prisioneiro do pecado (o šəʾôl ou inferno), é a revelação do Amor do Deus Trino, que não opera pela força, mas
é precisamente mais forte do que a morte e o pecado. Foi precisamente diante da
cruz que Marcos fez com que um centurião pagão dissesse: “Verdadeiramente, este
homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). Como disse o Papa Bento XVI em seu livro
sobre Jesus
Na cruz, faz-se perceptível sua condição de Filho, ser um com o Pai. A cruz é a
verdadeira “altura”, a altura do amor “até o fim” ( Jo 13,1); na cruz, Jesus se
encontra à “altura” de Deus, que é Amor. Ali, pode ser “reconhecido”, pode-se
compreender o “Eu sou”. A sarça ardente é a cruz. A suprema instância de
revelação, o “Eu sou” e a cruz de Jesus são inseparáveis[116].
74. O conhecimento de Deus por Cristo não oferece meros conteúdos doutrinais,
mas leva-nos à comunhão salvífica com Deus, porque nos mergulha, por assim
dizer, no próprio coração da realidade, ou melhor, da pessoa a ser conhecida e
amada. O prólogo do Evangelho de João é expressão da mais alta contemplação do
mistério de Deus, manifestado a nós em Jesus, para que possamos entrar, na graça
do Espírito Santo derramado “sem medida” (Jo 3,34), na própria vida de Deus Uno
e Trino, revelada pelo Logos. A figura deste Logos faz eco não só do Logos
divino discernido pelo pensamento grego, mas também, de forma ainda mais
profunda, da herança veterotestamentária da Palavra de Deus, o Dābār
testemunhado pelo Antigo Testamento. Com efeito, a revelação feita a Israel e
transmitida nas Escrituras introduz-nos já num conhecimento radicalmente novo de
Deus que inaugura este acontecimento da Revelação. Este Logos, o Filho, “Deus de
Deus”, que está com Deus desde o princípio, como sua Palavra que o exprime em
toda a verdade, é também Deus como o Pai. Na plenitude dos tempos, o Logos “se
fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14), para que aqueles que o acolhem
recebam “o poder (exousia) de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,14). Ao
admitir os seres humanos à plena comunhão consigo, o Logos feito carne tornou-os
“participantes da natureza divina”[117], conforme a afirmação textual da Escritura (2Pd 1,4).
75. Este conhecimento e esta comunhão com Deus, autênticos e inauditos, levam
também a uma comunhão salvífica com os irmãos e irmãs na humanidade amada por
Deus, pois o evento Jesus Cristo é inseparavelmente comunhão com Deus e com cada
ser humano. A fé da Igreja Apostólica testemunha esta comunhão em Cristo e por
Cristo, na comunhão trinitária:
O que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos
apalparam da Palavra da Vida [...], nós vos anunciamos, para que estejais em
comunhão conosco. A nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo.
Nós vos escrevemos estas coisas, para que a nossa alegria seja completa (1Jo
1,1.3-4).
A tradição teológica sublinha que a caridade nos faz amar a Deus e ao próximo,
na medida em que ele é amigo de Deus[118].
Podemos pensar que as três virtudes teologais nos introduzem num
conhecimento pleno e radicalmente novo de Deus e na comunhão com
ele. Mas, além disso, de acordo com o acesso renovado a Deus que
elas oferecem, abrem-nos um caminho de fé para a fraternidade,
uma esperança inaudita no próximo, e uma caridade que perdoa
tudo e impele a nos doar.
1.2 “Temos o pensamento (νοῦς) de Cristo” (1Cor 2,16): analogia da criação e
analogia da caridade
76. O evento Jesus Cristo, ao dar-nos acesso a Deus de um modo incomparável,
suscita e implica uma “via” de acesso também ela nova e única: acolher o Símbolo
na fé e com compreensão, ou melhor, acolher o Deus que nele se manifesta,
conduz-nos ao olhar de Cristo consubstancial ao Pai, ao “pensamento” ou à
própria mens de Cristo e à sua relação com o Pai e com os outros. “Nós
temos o pensamento de Cristo (noun Christou)” [119], exclama São Paulo (1Cor 2,16). É um grito de admiração. Também aqui, Niceia
mostra a imensidão do dom de Deus. Mas indica também que esta é a única maneira
de aceder ao que o Símbolo exprime, tanto na letra como no espírito. Não
podemos contemplar o Deus de Jesus Cristo, a redenção que nos é oferecida, a
beleza da Igreja e da vocação humana, e participar nelas, sem “ter o pensamento
de Cristo”. Não se trata simplesmente de conhecer Cristo, mas de entrar na
própria inteligência de Cristo, no sentido de um genitivo subjetivo. Não se pode
aderir plenamente ao Símbolo, nem confessá-lo com todo o ser, sem “a sabedoria
que não é deste mundo”, “revelada pelo Espírito Santo”, o único que “perscruta
as profundezas de Deus” (1Cor 2,6.10):
Na fé, Cristo não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do
amor de Deus, mas é também Aquele a quem nos unimos para poder acreditar. A fé
não só olha para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com
os seus olhos: é uma participação no seu modo de ver. [...] A vida de Cristo, a
sua maneira de conhecer o Pai, de viver totalmente em relação com Ele abre um
espaço novo à experiência humana, e nós podemos entrar nele[120].
77. Isto é possível porque Cristo vê o Pai com os seus olhos humanos e
convida-nos a entrar no seu olhar. Por outro lado, este caminho exige uma
profunda transformação do nosso pensamento, da nossa mente, que deve
implicar conversão e elevação: “Não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação da mente” (Rm 12,2). E é precisamente isso que o
evento Jesus Cristo traz: a mente, a vontade e a capacidade de amar são
literalmente salvas pela Revelação, que Niceia professa. São purificadas,
orientadas e transfiguradas. Ganham novas forças, formas e conteúdos. As nossas
faculdades só podem entrar em comunhão com Cristo conformando-se com Ele, num
processo que torna os crentes “semelhantes (symmorphizomenos)” (Fl 3,10)
ao Crucificado Ressuscitado até nas suas mens. Este novo modo de pensar
caracteriza-se pelo fato de ser inseparavelmente conhecimento e amor. Como
salienta o Papa Francisco: “São Gregório Magno escreveu que 'amor ipse
notitia estˮ, o próprio amor é conhecimento, traz em si uma nova lógica”[121]. É um conhecimento misericordioso e compassivo, uma vez que a misericórdia é a
substância do Evangelho e reflete o próprio caráter do Deus de Jesus Cristo,
professado no Símbolo niceno[122]. A mens renovada implica uma compreensão da analogia revisitada à luz do
mistério de Cristo. Ela reúne o que poderíamos chamar a “analogia da criação”,
em virtude da qual percebemos a presença divina na paz da ordem cósmica[123], e o que poderíamos chamar a “analogia da caridade”[124]. Esta analogia, invertida, por assim dizer, perante o mistério da iniquidade e
da destruição, mas iluminada pelo mistério mais forte da Paixão e da
Ressurreição de Cristo, discerne a presença do Deus de amor no coração da
vulnerabilidade e do sofrimento. Esta sabedoria de Cristo é descrita na primeira
Epístola aos Coríntios como aquela que “Deus converteu em loucura a sabedoria
deste mundo”:
Cristo não me enviou para batizar, mas para evangelizar; não com a sabedoria da
palavra, para que não seja aniquilada a cruz de Cristo. De fato, a palavra da
cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que são salvos, para nós, ela
é poder de Deus. Está escrito: “destruirei a sabedoria dos sábios e a
inteligência dos inteligentes confundirei”. Onde está o sábio? Onde está o
escriba? Onde está o argumentador deste mundo? Aliás, Deus não converteu em
loucura a sabedoria deste mundo? De fato, pela sabedoria de Deus, o mundo não
foi capaz de reconhecer a Deus por meio da sabedoria, mas por meio da loucura da
pregação, Deus quis salvar os que creem (1Cor 1,17-21).
Esta conversão e transfiguração não podem ocorrer sem a graça. A inteligência
humana revela-se como constitutivamente ordenada à graça e depende da graça para
ser plenamente ela mesma, tal como a própria pessoa humana[125]. É isto que nos permite compreender como as faculdades humanas, restituídas a
si mesmas e transfiguradas pelo evento Jesus Cristo, são levadas à sua
plenitude, desdobrando-se nas formas da fé, da esperança e da caridade,
primícias, neste mundo, da vida da glória: “tende em vós os mesmos sentimentos
que havia em Cristo Jesus” (Fl 2,5).
1.3 Ingresso teológico no conhecimento do Pai através da oração de Cristo
78. Como é que podemos entrar na “mente de Cristo” oferecida pelo evento Jesus
Cristo? Isto é possível porque Jesus Cristo não é apenas um mestre ou um guia,
mas a própria Revelação e Verdade de Deus; quem o recebe é mais do que um
simples destinatário de instrução. Como a pessoa do Ressuscitado não é um objeto
do passado, quem quiser compreender o mistério íntimo de Jesus, a revelação de
Deus na sua humanidade, deve deixar-se incluir na sua relação de comunhão com o
divino Pai. Isto se dá através da vida teologal, da leitura das Escrituras na
Igreja, da oração pessoal e litúrgica, especialmente da Eucaristia.
79. A participação por graça na oração de Cristo é a via régia para o
reconhecimento de Cristo, que revela o conhecimento do Pai (“Meu Pai e vosso
Pai”, em Jo 20,17). Joseph Ratzinger / Papa Bento XVI declara: “Como a oração é o centro da pessoa de Jesus, é participando de sua oração que
podemos conhecê-lo e compreendê-lo” [126]. Em outras palavras, o conhecimento de Cristo começa com a entrada da pessoa
que o reconhece no ato de oração de Jesus: “Onde não há relacionamento com Deus,
fica incompreensível mesmo Aquele, que no seu mais íntimo não é outra coisa que
relação com Deus, com o Pai”[127]. E o que se aplica a cada crente aplica-se também à Igreja no seu conjunto. Só
enquanto comunidade de oração inserida na relação de Jesus com o Pai, a Igreja é
o “nós” que reconhece Cristo tal como é evocado em Jo 5,18-20 e em 1Jo 3,11[128]. Mais uma vez, é isto que está em jogo nas afirmações cristológicas do Símbolo:
“A expressão dogmática fundamental ‘Filho consubstancial’, na qual podemos
resumir todo o testemunho dos antigos concílios, não faz senão traduzir o fato
da oração de Jesus em linguagem filosófico-teológica, nada mais”[129]. A fé expressa por Niceia nasce da relação de Jesus com o Pai e leva-nos a ela,
para oferecer aos seres humanos e à Igreja a participação no conhecimento e na
comunhão de Jesus com o Pai e o Espírito Santo.
2. O evento de Sabedoria: algo novo para o pensamento humano
2.1 A revelação enriquece e alarga o pensamento humano
80. Ao estabelecer a fé cristológica e trinitária, o Símbolo niceno inscreve-se
num movimento de fecundação do pensamento humano, de “alargamento da razão”,
através da Revelação no seu processo de transmissão[130]. De fato, o acesso incomparável a Deus proporcionado pelo evento Jesus Cristo,
bem como a participação no pensamento (phronēsis) e na oração de Cristo,
não podem deixar de ter um impacto decisivo no pensamento e na linguagem humana.
Trata-se de um “Evento de Sabedoria”, através do qual estes devem ser e são
alargados pela Revelação para que esta se possa exprimir neles. E, neste mesmo
movimento, testemunham o fato de serem capazes de se deixar conduzir para além
de si mesmos. Na história deste evento de Sabedoria, Niceia constitui um ponto
de viragem importante, “um caminho novo e vivo” (Hb 10,20), cuja importância
decisiva Pavel Florensky compreendeu e exprimiu com palavras vigorosas:
É impossível não estremecer ao recordar aquele momento único, para sempre
significativo pela sua importância filosófica e dogmática, em que o trovão do “Homoousios”
soou pela primeira vez na Cidade da Vitória [Nicéia]. Não se tratava de uma
questão particular de teologia, mas de uma definição radical da Igreja de
Cristo. Este termo, por si só, não só exprime o dogma cristológico, mas também
fornece uma avaliação espiritual das regras da razão. O racionalismo foi
condenado à morte. Pela primeira vez, o novo princípio da atividade racional foi
proclamado urbi et orbi[131].
O Logos que é Cristo encarnado, Filho do Pai na comunhão do Espírito Santo,
mostra que ele próprio é a medida de todo o logos humano, que ele pode animar e
expandir, mas do qual ele pode também ser o juiz, pondo-o em crise (krisis)
no sentido estrito do termo. De fato, é impressionante observar como Atanásio,
em um juízo lapidar, considera que a rejeição da plenitude da figura de Cristo
por parte de Ário constitui uma negação da razão, do logos tout court:
“Negando o Logos de Deus, vêem-se privados de todo o logos” [132]. No fundo, o evento de Sabedoria produzido pelo evento Jesus Cristo introduz a
razão e o pensamento humanos na sua vocação mais alta e mais verdadeira.
Devolve-o, por assim dizer, a si mesmo. De tal modo que, como veremos, o
homoousios não é um simples exemplar de interculturalidade, mas pertence a
um evento prototípico de sabedoria, inaugural e fundacional da Igreja na sua
apostolicidade.
81. O evento Jesus Cristo torna possível uma nova ontologia, com as dimensões do
Deus uno e trino e do Logos encarnado. A razão humana já se tinha deixado abrir
e penetrar pelo mistério, tornado acessível pela revelação da criação ex
nihilo (2Mc 7,28; Rm 4,17), da transcendência ontológica de um Deus que é
mais íntimo de cada criatura do que ela própria[133]. Ela se renova de alto a baixo quando é informada pelo sentido profundo dado a
todas as coisas pelo mistério do Deus Uno e Trino que é amor (1Jo 4,8.16) - a
alteridade, a relação, a reciprocidade, a interioridade mútua manifestam-se
doravante como a verdade última e as categorias estruturantes da ontologia. Com
isso, o ser ilumina-se e mostra-se ainda mais rico do que parecia nas suas
primeiras versões filosóficas, por mais profundas e complexas que fossem. Além
disso, Niceia, que parte da questão cristológica e soteriológica para enunciar o
Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, é um bom reflexo do modo como a
fenomênico cristológico motiva a inventio da doutrina trinitária, através
da dinâmica entre a ordem da descoberta, cristológica e pneumatológica, colocada
no seu centro, e a ordem da realidade trinitária, que a estrutura. Niceia
acelerou a reflexão cristã sobre a teo-logia, ou seja, a exploração da
“Trindade imanente”. Uma vez que o mistério de Cristo, realizado na história e
numa humanidade singular, dá acesso a Deus, a matéria e a carne, o tempo e a
história, a novidade, a finitude e a fragilidade ganham, elas próprias, as suas
cartas de nobreza e a sua consistência na expressão do ser. De fato, através da
Revelação, o ser revela-se também semper major.
82. O evento de Sabedoria implica evidentemente uma renovação da antropologia,
uma vez que o evento Jesus Cristo lança uma nova luz sobre o ser humano.
Mencionemos brevemente estes aspectos, desenvolvidos no primeiro capítulo deste
documento[134]. A antropologia da Bíblia obriga-nos a rever o conceito de ser humano, a partir
da nobreza da matéria e do singular. O Criador, no Gênesis, quis cada indivíduo
e o “gravou” nas palmas das suas mãos (Is 49,16). Além disso, Jesus tem cada ser
humano como seu irmão e sua irmã, porque o acontecimento da Encarnação enobreceu
cada ser humano, individualmente, de um modo insuperável e imprescritível.
Quando o Símbolo niceno-constantinopolitano declara que Jesus Cristo, como
verdadeiro homem, é Filho de Deus e, como tal, “igual” a Deus Pai, cada ser
humano - qualquer que seja a sua origem, nação, talentos ou formação - é dotado
de uma dignidade que obriga a inteligência humana a pensar de forma nova, a
ultrapassar os limites de uma visão meramente natural. Há uma dignidade
propriamente cristológica dos seres singulares.
83. De forma semelhante ao que acontece quando se trata de entrar no “pensamento
de Cristo”, o alargamento da ontologia e da antropologia implica uma conversão e
pode deparar-se com a resistência do pensamento, habituado aos seus limites. O
evento de Sabedoria obriga-nos a ter em conta não só a “analogia da criação”,
mas também a “analogia da caridade”. Perante a kenosis da Encarnação e da
Paixão de Cristo, perante o sofrimento e o mal que afetam a humanidade, o
espírito humano tropeça nos seus limites. Coloca-se a questão: porque é que o
Pai onipotente parece ter observado primeiro, do alto, a via-sacra do Filho
sofredor e só atuado depois da sua morte? Porque é que não respondeu
imediatamente à oração no Jardim das Oliveiras, apresentada com o suor do sangue
do medo: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice...” (Mt 26,39b)? De
fato, a igualdade de essência do Filho encarnado e crucificado com o Pai,
professada no Símbolo niceno, convida o pensamento humano a converter-se a si
mesmo e ao significado do termo “onipotência”. O Deus Uno e Trino não é primeiro
onipotente e somente depois amoroso; pelo contrário, a sua onipotência é
idêntica ao amor que se manifestou em Jesus Cristo. De fato, o que Jesus viveu,
como atesta o NT, é - através da ação do Espírito - a revelação na história, ao
nível da economia trinitária, da relação e da realidade intratrinitária imanente
em Deus[135]. Deus é verdadeiramente Deus quando a sua onipotência amorosa nada impõe, mas
antes dá ao seu parceiro de aliança, o homem, a capacidade de se ligar a ele
livre e gratuitamente. Deus está em sintonia com o seu próprio ser quando não
converte à força a humanidade pervertida pelo pecado, mas a reconcilia consigo
através dos acontecimentos de Belém e do Gólgota. Em tudo isto, os nossos modos
de ver humanos são chamados a deixar-se transfigurar profundamente por Cristo:
“Os teus pensamentos não são os meus pensamentos” (Is 55,8; ver também Mt
16,23).
2.2 Um evento cultural e intercultural
84. Se o evento Jesus Cristo renova o pensamento recriado segundo um evento de
Sabedoria, também renova, purifica, fecunda e alarga a cultura humana. De fato,
o Concílio de Niceia, que, para a Igreja espalhada por todas as nações, exprimiu
a fé cristã em língua grega e adotou um termo derivado da filosofia grega,
constitui, sem dúvida, um acontecimento cultural. É necessário que a fé assuma a
cultura humana, tal como assume a natureza humana, uma vez que natureza e
cultura são constitutivas do ser humano e, portanto, inseparáveis. O Papa Francisco lembra-nos que “o ser humano está sempre culturalmente situado” [136]. Porque o homem é um ser relacional e social que faz parte da história, é
através da cultura que ele atinge a plenitude da sua humanidade[137]. Além disso, a Revelação, que estabelece a comunhão entre Deus e o ser humano,
precisa de destinatários que tenham a sua própria consistência para a acolherem
em plena liberdade e responsabilidade. Daí a eleição do povo das doze tribos de Israel, que teve de se distinguir de
todos os outros povos e de aprender penosamente a separar a verdade do erro,
antes de mais para seu próprio bem. Daí Jesus Cristo, em quem o Filho de Deus se tornou verdadeiramente humano, um
hebreu, um galileu, cuja humanidade traz as marcas culturais do percurso
histórico do seu povo. Daí a Igreja, constituída por todas as nações. Assim, partindo do princípio tomista, “a graça supõe a natureza”, e ampliando-o,
o Papa Francisco acrescenta: “a graça supõe a cultura, e o dom de Deus
encarna-se na cultura daqueles que o recebem” [138].
85. Esta assunção da cultura pela Revelação implica uma certa reciprocidade de
influência entre ambas, apesar da sua assimetria. Assim como o espírito humano é capaz de se transfigurar, também a cultura tem a
vocação de se deixar iluminar pela Revelação, a ponto de poder acolher, ao preço
da conversão, a sabedoria do Crucificado: “que sejam impregnados pela virtude do
Evangelho os modos de pensar, os critérios de julgar e as normas de agir; numa
palavra, é necessário que toda a cultura do homem seja penetrada pelo Evangelho” [139]. No entanto, a fé não é alheia às culturas em que é vivida, pois desde o
Pentecostes a fé cristã inclui a certeza de que não há uma única cultura humana
que não aguarde e espere a sua realização a partir da visita do Verbo de Deus,
que difundiu ele mesmo as semina Verbi em todas as culturas à espera da
sua visitação[140]. É assim que elas se tornam plenamente elas mesmas. É, portanto, a partir do
interior, da sua abertura ao verdadeiro, ao bom e ao belo, que a Revelação os purifica e
eleva. Mas depois, as culturas e as línguas assumidas e transfiguradas pela
novidade da Revelação permitem enriquecer e clarificar a expressão da fé. Esta
reciprocidade verificou-se ao longo dos séculos na fecundação da língua, da
poesia e da arte pela Bíblia, cuja compreensão é ela própria iluminada pela sua
difração noutras palavras e visões do mundo. É também o que acontece em Niceia
no uso de homoousios, que clarifica a compreensão da Igreja sobre a
filiação de Jesus Cristo, ao mesmo tempo que transfigura o termo que assume.
86. Nesta assunção da cultura, um lugar único e providencial deve ser reservado
à relação entre a cultura hebraica e a cultura grega. O homoousios será
visto aqui como fruto de uma síntese particularmente forte entre a cultura
semita, já tocada e transfigurada pela Revelação, mas também moldada pelos encontros e desencontros com povos de outras culturas - egípcios, cananeus,
mesopotâmicos, romanos - e o mundo grego. Durante mais de três séculos antes do
nascimento de Jesus e até ao século III d.C., o ensino e a vida intelectual do
judaísmo helenístico tinham sido expressos não só em aramaico, mas também em
grego, tendo a Septuaginta como centro de gravidade. O ensinamento de Jesus foi
registado e transmitido em grego, para comunicar o Evangelho a todos na língua
universal da bacia mediterrânica, mas também porque o Novo Testamento faz parte
da história da relação do povo judeu com a cultura e a língua gregas. Tal como
na Septuaginta, há influências em ambas as direções. Por exemplo, o panta ta ethnē
de Mt 28,19 traduz a antiga ideia judaica de todas as nações afluindo a
Jerusalém, e măthētēs (discípulos-estudantes) traduz o aramaico talmudim. Por outro lado, os
evangelistas utilizam o grego em uso nos tribunais para interpretar o julgamento
e a paixão de Jesus, o autor dos Atos baseia-se na poesia épica da Odisseia para
narrar as viagens de Paulo, e Paulo faz frequentemente eco de elementos da
filosofia estoica, tal como certas passagens do NT apresentam vestígios de um
vocabulário ontológico grego[141].
Era natural que o cristianismo nascente desse continuidade a esta síntese do
pensamento semita e grego, em diálogo com autores judaico-helénicos e
greco-romanos, para interpretar as Escrituras e desenvolver o seu próprio
pensamento. A riqueza da expressão grega do judaísmo e do cristianismo pode
fazer pensar que houve uma dimensão fundadora neste enxerto da cultura grega na
cultura hebraica, que permitiu explicar em grego a unicidade e a universalidade
da salvação em Jesus Cristo face à razão filosófica[142]. Evidentemente, toda uma parte dos cristãos, sobretudo fora das fronteiras do
Império Romano, não pertencia a esta área cultural e utilizou o seu próprio
gênio a serviço da expressão da fé no mundo siríaco da Armênia e do Egito, mas
também ela se situou frente ao pensamento grego, deixando-se inspirar por ele e
tomando distância com relação a ele.
87. O Concílio de Niceia não é apenas um acontecimento de assunção e fecundação
da cultura pela Revelação, mas é também a ocasião de encontros interculturais.
Este encontro de culturas é um aspeto importante do evento de Sabedoria
realizado pelo evento Jesus Cristo, de tal modo que a Revelação conecta e põe em
comunhão as culturas entre si, tornando possível o mais alto grau de
interculturalidade. O intercâmbio e a fecundação mútua são parte constitutiva de
todas as culturas, que só existem no processo em que estão em contato umas com
as outras e, assim, evoluem, enriquecem-se e, por vezes, opõem-se e põem-se em
perigo. No entanto, o poder renovador da Revelação confere à intensidade destas
relações um salto qualitativo. Por um lado, ao dar acesso à fonte transcendente
da verdade e do bem, à raiz da universalidade do espírito humano que torna
possível a sua comunicação, ela abre plenamente o espaço comum dos seus
encontros e trocas[143]. Por outro lado, o evento Jesus Cristo é um poder de conversão e de libertação
face às forças de confinamento e de oposição ao outro contidas na vida dos povos
e das culturas. Só uma cultura “salva”, por assim dizer, é capaz de se
ultrapassar a si mesma sem se perder, e de se abrir aos outros para se
enriquecer com eles e para os enriquecer. A escuta da Palavra de Deus e da
Tradição, e, portanto, da palavra do Outro, habitua a mente e as culturas, por
assim dizer, à escuta dos outros[144]. Isto não conduz a uma justaposição externa e empobrecida de culturas, nem a
uma fusão num todo indistinto, mas a uma interculturalidade resgatada e elevada,
em que cada cultura se supera a si mesma, ao mesmo tempo que se reforça na sua
própria consistência, em virtude de uma forma de pericorese das culturas[145]. É por isso que é preciso ter em conta tanto a novidade real como a “elevação”
das culturas, como o fato de que aqueles que aceitam o Evangelho de Cristo conservam a sua identidade cultural e
são reforçados por ela[146]: “Os cristãos não se diferenciam dos outros homens nem pela pátria nem pela língua
nem por um gênero de vida especial. […] seguem os costumes da terra, quer no
modo de vestir, quer nos alimentos que tomam, quer em outros usos; mas o seu
modo de viver é admirável e passa aos olhos de todos por um prodígio” [147].
88. A interculturalidade é, de fato, a manifestação de uma questão mais
profunda, que constitui o seu fundamento: o desígnio divino da unidade dos povos
e o árduo caminho desta unidade na diversidade. Este é um dos grandes fios
condutores da história bíblica da salvação. A história da Torre de Babel, em Gn
11,1-9, sublinha a tensão entre a riqueza da multiplicidade das línguas e das
culturas, por um lado, e a capacidade dos seres humanos de romperem a unidade da
casa comum, de perturbarem o logos do oikos. O chamamento de
Abraão, a sua promessa de que nele “se abençoarão todas as tribos da terra” (Gn
12,3), é a primeira resposta salvífica de Deus. Os profetas estenderam esta
promessa aos povos do mundo, anunciando a unidade de todas as nações em torno do
povo eleito e da Lei[148]. O Novo Testamento apresenta esta unidade realizada no Messias, que, pelo seu
sangue e pela sua carne, “derrubando o muro de inimizade” entre Israel e as
nações, para “formar em si mesmo um só homem novo” (Ef 2,14.15b). Deste modo, os
gentios são associados ao povo da Aliança, sendo “admitidos à mesma herança, são
membros do mesmo corpo e beneficiários da mesma promessa” (Ef 3,6). Isto é
possível em Cristo, o universal singular, que mantém unidas a alteridade e a
identidade, e que assume toda a humanidade ao assumir uma humanidade genealógica
e culturalmente situada. O antítipo de Babel, o Pentecostes das línguas de fogo
em Atos 2,1-18, é a manifestação e a realização deste poder de comunhão do logos
humano, que em última análise procede do Logos de Deus[149]. Não é na unidade fusional de uma única língua que o Espírito Santo realiza a
comunhão destes judeus de línguas e culturas diferentes, mas inspirando uma
compreensão do outro, imagem do que será a Igreja que reúne todas as nações,
todos empenhados na sua realização, quando os “144.000 marcados com selo” das
doze tribos de Israel e a “multidão imensa, que ninguém podia contar, gente de
todas as nações, tribos, povos e línguas” realizarão a plena comunhão
escatológica da humanidade na nova Jerusalém (Ap 7,4.9).
89. A dimensão intercultural de que Niceia é a expressão fundadora pode ser
vista também como um modelo para o período contemporâneo, em que a Igreja está
presente em diversos âmbitos culturais: culturas asiáticas, africanas,
latino-americanas e oceânicas, novas culturas populares europeias, para não
falar da nova forma cultural trazida pela revolução digital e pela tecnociência.
Todos estes universos culturais contemporâneos parecem muito distantes da antiga
cultura grega, que foi a primeira a acolher a forma de inculturação dogmática
alcançada no evento de Niceia. Por um lado, há que sublinhar que foi nessas
categorias gregas que a Igreja se exprimiu de forma normativa e que, por isso,
elas estão para sempre ligadas ao depósito da fé[150]. Por outro lado, porém, a Igreja pode inspirar-se nos Padres Nicenos para
procurar expressões significativas da fé em diferentes línguas e contextos
atuais, mantendo-se fiel aos termos daquela época e encontrando neles as suas
raízes vivas. Com a graça do Espírito Santo, as comunidades cristãs, os seus
teólogos e pastores, em comunhão efetiva com o Magistério, devem eles próprios,
nas suas próprias situações culturais e linguísticas, levar a cabo uma tarefa
semelhante à do passado na afirmação da unidade radical do Filho e do Pai.
Niceia continua a ser um paradigma para todos os encontros interculturais e para
a possibilidade de receber ou forjar novas formas autênticas de exprimir a fé
apostólica.
2.3 A fidelidade criativa da Igreja e o problema da heresia
90. A percepção de Niceia como evento de Sabedoria, provocado pelo evento Jesus
Cristo, permite-nos reler com maior fineza a história das heresias a que o
Concílio responde. A heresia, que se afasta intencionalmente do testemunho
apostólico e mutila a sua integridade, é vista pelos Padres como a novidade que
sai do caminho da regula fidei e da traditio e, por isso mesmo, se
afasta da realidade histórica de Cristo. Ário é criticado precisamente por ter
introduzido algo novo[151]. No entanto, tendo em conta o novum inaugurado pelo evento Jesus Cristo,
pode ser esclarecedor entender a heresia também como uma resistência
fundamental, tanto passiva como ativa, à novidade sobrenatural que abre o
pensamento e as culturas humanas para além de si mesmas - uma novidade da graça
de que dá testemunho a nova linguagem da fé expressa pelo homoousios. É
quase inevitável que o ser humano, com todas as suas faculdades e em todo o seu
ser, resista a esta novidade inaudita que o converte e transfigura. Trata-se de
uma resistência, e, portanto, de um pecado do “homem velho” (Rm 6,6; ver também
Ef 2,15), da dificuldade de conceber e aceitar plenamente a imensidão de Deus e
do seu amor, e a imensa dignidade do ser humano. O caminho lento, tateante, mas
prudente, percorrido pelas primeiras tentativas de compreender o sentido do
mistério do Crucificado e da sua ressurreição gloriosa, a passagem do querigma
apostólico aos primeiros passos daquilo a que hoje chamamos teologia, é,
portanto, acompanhado de tensões constantes e de uma pluralidade de opiniões que
se afastam da plenitude do testemunho apostólico e são designadas pelo termo
heterodoxia, bem como pelo de heresia.
91. Em vez de fazer uma lista exaustiva das heresias dos primeiros séculos,
destacamos esta resistência ao novum da Revelação através de alguns
exemplos. Muitas vezes considerada como a primeira heresia, a doutrina
racionalista dos gnósticos banalizava o realismo do mistério da Encarnação
através do docetismo e, reduzindo a História Sagrada a narrativas mitológicas,
negava a plenitude da salvação humana, que era relegada para o plano de uma
espiritualidade etérea. Na sua luta contra o gnosticismo, Irineu sublinha que se
trata de uma resistência à ideia de que Deus é capaz e está disposto a entrar
ele próprio na história, a unir-se à humanidade até o fim, até o ponto de se
tornar verdadeiramente humano e morrer. Trata-se de uma resistência a acreditar
na beleza do singular, da matéria e da história, revelada também no evento Jesus
Cristo e de que dão testemunho o Antigo e o Novo Testamento. Posteriormente, os
Padres não hesitaram em recorrer a conceitos e quadros de pensamento
provenientes da filosofia grega para aperfeiçoar o pensamento cristão. Ao
fazê-lo, foram obrigados a extrapolar quadros de pensamento que, por si só, eram
incapazes de tornar possível conceber que o Logos se pudesse tornar carne, que o
Logos ou o Nous (νοῦς) que exprimem a divindade fossem iguais à
fonte de onde provêm, ou que fosse possível uma multiplicidade que não
contradissesse a unidade divina e fosse mesmo boa dentro dessa unidade. Os
defensores das heresias cristológicas e trinitárias são os que não conseguiram
deixar que estes quadros de pensamento, seja qual for a sua riqueza e o seu
contributo real para o pensamento da doutrina cristã, fossem alargados pela
imensidão inaudita do nous (νοῦς) Christou. A mesma dificuldade
pode ser encontrada na interação das correntes cristológicas no Oriente ao longo
do século III, que, de certa forma, prepararam o caminho para a heresia ariana.
É preciso evitar caricaturar as diferentes posições dos protagonistas destas
correntes, pois eles eram sobretudo pensadores individuais, mas todos eles
lutaram com as mesmas dificuldades para manter unidas a riqueza trinitária do
Deus único e a radicalidade da assunção plena de uma humanidade singular pelo
Filho igual ao Pai: uns enfrentaram uma teologia trinitária de tendência
subordinacionista e uma cristologia que corria o risco de ser docetista,
enquanto outros resistiram a formas de modalismo trinitário e de adocionismo.
São estas mesmas resistências às velhas formas de pensamento que se exprimem,
algumas décadas antes de Niceia, na doutrina de Ário: para ele, é inconcebível
que o Filho, diferente do Pai, que nasce e morre, possa ser coeterno e igual a
Deus, sem pôr em causa a unidade e a transcendência divinas e, portanto, a
redenção dos seres humanos.
92. Esta resistência é perfeitamente compreensível, dado o seu carácter humano.
Elas testemunham, como que em negativo, a incrível luz que o evento Jesus Cristo
lança sobre a percepção de Deus e sobre a vocação divina do ser humano, e a não
menos incrível transfiguração do pensamento e da cultura humana, que se desdobra
no evento de Sabedoria que daí decorre. Nada do que é humano é abolido, mas o
acesso à imensidão da verdade de Deus exige a própria Revelação de Deus e a
graça que converte e eleva as faculdades e as realizações humanas. De certo
modo, a resistência das heresias permite-nos ver Niceia em toda a sua força de
incomensurável novidade.
3. O evento eclesial: o Concílio de Niceia, primeiro concílio Ecumênico
3.1 A Igreja se inscreve por sua natureza e suas estruturas no evento Jesus
Cristo
93. O Concílio de Niceia não é apenas um acontecimento na história da doutrina,
ele é também um evento eclesial, que corresponde a uma etapa fundamental no
processo de estruturação da Igreja. No decurso de um longo processo que se
seguiu a Niceia, o “Concílio Ecumênico” tornou-se farol de orientação e decisão
doutrinal e jurídica de toda a Igreja, seu lugar de comunhão e de autoridade
última. Do ponto de vista da sua estrutura, pode ser visto como um ponto de
viragem que orienta a vida futura da Igreja, semelhante ao que o Símbolo niceno
representa do ponto de vista do acesso a Deus (evento Jesus Cristo) e ao
pensamento humano (evento de Sabedoria)? Seria esse o caso se o Concílio
Ecumênico enquanto tal pudesse ser considerado como um fruto e uma expressão
especificamente eclesial do evento Jesus Cristo.
94. Desde seus inícios, a Igreja tem consciência de fazer parte da continuidade
do povo eleito, assembleia convocada (qāhāl/ekklēsia - cf. Dt 5,22) para
viver segundo a Torá revelada e adorar o Senhor seu Deus. Também ela se vê como
“a geração escolhida, o sacerdócio régio, a nação santa, povo que ele adquiriu,
a fim de proclamar os grandes feitos daquele que vos chamou das trevas par a sua
luz maravilhosa” (1Pd 2,9). Nos Atos dos Apóstolos, ela é apresentada como uma
comunidade de discernimento da vontade de Deus, cujo ator principal é o Espírito
Santo, guiada por homens que continuam o papel dos doze apóstolos, “testemunhas
da Ressurreição” (At 1,22)[152]. De certo modo, é na comunidade eclesial, como corpo de Cristo, que podemos
discernir “os sentimentos de Cristo” (Fl 2,5; ver § 77 acima).
95. Esta consciência foi expressa pelos primeiros Padres, que ligaram a
estrutura e o funcionamento da Igreja à sua natureza profunda e à sua vocação.
Assim, no início do século II, Inácio de Antioquia sublinhava que as várias
Igrejas particulares se consideram solidárias como expressão da única Igreja. Os
seus membros são synodoi, companheiros de viagem, onde cada um é chamado
a desempenhar o seu papel segundo a ordem divina que estabelece a harmonia
expressa pela synaxis eucarística. Assim, através da sua unidade e da sua
ordem, a Igreja canta o louvor de Deus Pai em Cristo, caminhando para a sua
unidade plena, que se realizará no Reino de Deus. Cipriano de Cartago aprofundou
este ensinamento em meados do século III, especificando o fundamento sinodal e
episcopal sobre o qual deve assentar a vida da Igreja: nada se faz sem o bispo (nihil
sine episcopo), mas também nada se faz sem o “vosso conselho” (o dos
presbíteros e dos diáconos) ou sem o consentimento do povo (nihil sine
consilio vestro et sine consensu plebis)[153]. Unidade ligada à unidade da Trindade, inspiração do Espírito Santo, caminho
conjunto (synodos) para o Reino, fidelidade à doutrina dos Apóstolos e à
celebração da Eucaristia, ordem e harmonia dos ministros e dos batizados, com um
papel especial conferido aos bispos: estes elementos mostram que a Igreja, suas
estruturas e seu funcionamento, está profundamente inscrita no evento Jesus
Cristo, como seu momento e sua expressão privilegiada. Comemorar Niceia,
significa recolher e comemorar todo o processo sinodal que precedeu e culminou
no Concílio Ecumênico.
3.2 A colaboração estrutural dos carismas da Igreja e o caminho para Niceia
96. Estes elementos próprios da natureza teológica da Igreja, que só podem ser
fruto do evento da Revelação, manifestaram-se no percurso histórico que conduziu
ao Concílio Ecumênico de Niceia através da interação de três carismas, aplicados
ao governo, ao ensino e à tomada de decisões comunitárias na Igreja: primeiro a
hierarquia tripartite, depois os mestres e o sínodo. Uma ordem de precedência,
na qual os apóstolos vêm em primeiro lugar, parece estar bem estabelecida no
corpus paulino: “na Igreja, Deus estabeleceu em primeiro lugar, alguns como
apóstolos; em segundo lugar, alguns como profetas; e em terceiro, os que
ensinam” (1Cor 12,28; cf. Ef 4,11). A primeira caraterística é o desenvolvimento
progressivo da hierarquia tripartite de bispos, presbíteros e diáconos. Esta
hierarquia, que supervisionava os profetas e os mestres itinerantes dos
primeiros 150 anos do cristianismo (muitas vezes chamados “apóstolos”, em
sentido geral), veio a suplantá-los em certa medida, tornando-se a estrutura de
governo local da Igreja. A figura do bispo, em particular, exprime a dimensão
apostólica da Igreja. A partir do século IV, formaram-se as províncias
eclesiásticas, que exprimiam e promoviam a comunhão entre as Igrejas
particulares, chefiadas por um metropolita.
97. Uma vez que os cristãos são chamados a anunciar Cristo e a transmitir o seu
ensinamento e o ensinamento dos Apóstolos a todas as nações, não é de estranhar
que a segunda caraterística do cristianismo no período pré-niceno fosse a
importância decisiva das escolas e dos mestres, que ensinavam os catecúmenos e
interpretavam as Escrituras. Os mestres podiam ser ministros ordenados ou não.
Pelágio, por exemplo, ensinava em Roma no início do século V, embora não fosse
sacerdote, assim como Melânio, o Velho, e Rufino, em Jerusalém, e Jerônimo, em
Belém e depois em Roma. O próprio Orígenes dirigiu a Escola de Alexandria após a
morte do seu pai Leónidas, antes de ser ordenado.
98. Finalmente, depois da segunda metade do século II e no início do
século III, sobretudo na Ásia Menor, o sínodo assume um papel cada vez mais
relevante na decisão de questões importantes de disciplina, de culto e de
ensino. Inicialmente, os sínodos eram locais, mas o envio de cartas sinodais
comunicando as suas decisões (ata) a outras Igrejas, a troca de
delegações e os pedidos de reconhecimento mútuo testemunham a “firme convicção
de que as decisões tomadas são expressão da comunhão com todas as Igrejas”, na
medida em que “cada Igreja local é expressão da Igreja una e católica” [154]. É de notar que o sínodo tem uma dimensão jurídica ou canônica muito clara,
enquanto instituição que legisla. Os documentos e as colecções de cânones
sinodais estão reunidos nos arquivos episcopais, nomeadamente em Roma: o
desenvolvimento do direito canônico e dos sínodos andam de mãos dadas e
acompanham-se mutuamente. Não é possível atribuir unicamente à legitimação da
Igreja por Constantino a transição para uma Igreja institucionalizada de tipo
estatal. Concebida como uma polis (cidade) que reflete a cidade de Deus,
a Jerusalém celeste (cf. Is 60 e 62; 65,18; Ap 3,12; 21,1-27), ou como um
synodos no sentido literal de um povo que segue o mesmo caminho de Jesus em
direção ao Reino, tendo Jesus à cabeça como seu proestos, ou presidente,
a Igreja é constitutivamente “política” e institucional[155].
99. Estes três carismas evoluíram de forma diferente e à sua maneira no interior
da Igreja, mas nenhum deles foi separado ou emancipado dos outros dois. Embora
surgissem naturalmente tensões entre eles e dentro deles, enriqueciam-se,
informavam-se e reforçavam-se mutuamente. Os mestres participavam frequentemente
nos sínodos, como membros. Do mesmo modo, os bispos foram, desde o início,
mestres e pregadores segundo o modelo de Inácio de Antioquia. Obviamente, os
bispos presidiam os sínodos e desempenhavam um papel de liderança como guardiães
da ortodoxia da fé e da prática. Além disso, em seu papel sacramental, o bispo
presidia à celebração eucarística que abria e concluía cada sínodo, fonte e cume
do “caminhar juntos” que é o synodos[156].
Sinal da recepção das decisões sinodais, como também da comunhão dos fiéis com
os seus bispos, estabelecidos na sucessão apostólica na “Catholica”, a
Igreja de Deus única, a Eucaristia manifestava e realizava de maneira visível a
pertença ao corpo de Cristo e a pertença recíproca entre os cristãos (cf. 1Cor
12,12) [157].
100. Estes elementos do processo de estruturação da Igreja não só mostram que se
enraízam no evento Jesus Cristo, como também é possível discernir nestes
processos uma certa analogia com o que constituiu o evento de Sabedoria, acima
analisado. Tal como o pensamento humano, profundamente renovado pelo evento
Jesus Cristo, assume e transforma as culturas humanas, nomeadamente através do
encontro do pensamento semita, já trabalhado a partir do interior pela
Revelação, com a cultura grega e outras culturas, assim também as três dimensões
ou carismas que identificamos surgiram tanto de instituições judaicas como de
versões locais de instituições greco-romanas dos primeiros séculos da nossa era,
tanto civis como sacras. Por um lado, o judaísmo do Segundo Templo tinha a sua
própria hierarquia sacerdotal, escolas e sínodos. Por outro lado, como não
existiam escolas específicas para eles, os mestres cristãos eram quase todos
formados como oradores e intérpretes no enkyklios paideia, ou sistema de
educação geral do mundo greco-romano, e por isso usavam a retórica e a
filosofia, que ajudaram a inserir no patrimônio da doutrina cristã. O sínodo (concilium
em latim) já era, também ele, uma instituição antiga no mundo greco-romano,
quando os cristãos lhe atribuíram um lugar importante. Mas estes diferentes
aspectos assumem dimensões próprias, são transfigurados, se assim o quisermos,
quando postos a serviço da missão da Igreja de anunciar o Evangelho e ser sinal
efetivo de unidade para a humanidade.
3.3 O Concílio Ecumênico de
Niceia
101. Em 325, realizou-se em Niceia um sínodo que foi, em parte, o culminar deste
processo, mas consistiu também em uma forma excepcional dele, devido ao seu
alcance Ecumênico. Convocado pelo imperador para resolver uma disputa local que
se tinha estendido a todas as Igrejas do Império Romano do Oriente e a muitas
Igrejas do Ocidente, reuniu bispos de várias regiões do Oriente e legados do
bispo de Roma. Pela primeira vez, portanto, os bispos de toda a Oikouménè
foram reunidos em sínodo. Sua profissão de fé e suas decisões canônicas foram
promulgadas como normativas para toda a Igreja. A comunhão e a unidade sem
precedentes que o evento Jesus Cristo introduziu na Igreja tornam-se visíveis e
eficazes de um modo novo, através de uma estrutura de alcance universal. O
anúncio do Evangelho de Cristo, em toda a sua imensidão, recebe, também ele, um
instrumento de autoridade e alcance sem precedentes:
No Concílio de Niceia, pela primeira vez, através do exercício sinodal do
ministério dos Bispos, exprime-se, institucionalmente, a nível universal a
ἐξουσία do Senhor ressuscitado que guia e orienta no Espírito Santo o caminho do
povo de Deus. Análoga experiência se realiza nos sucessivos Concílios ecumênicos
do Primeiro Milênio, através dos quais se define normativamente a identidade da
Igreja una e católica[158].
102. Com o Concílio de Niceia, a própria ideia de um sínodo ou concílio
Ecumênico ficou estabelecida. Embora nenhuma das suas acta tenha
sobrevivido, com toda a probabilidade, e apesar de uma recepção lenta e árdua, a
proclamação do homoousios e os canones de Niceia perduraram. Após este
longo processo de recepção - que será típico de qualquer concílio - Nicéia
tornou-se o ideal de concílio na mente de muitos. A sua apresentação tradicional
como um concílio unificado, inspirado pelo Espírito Santo, ajudou-o a tornar-se
o concílio ideal na posteridade e criou gradualmente a estima dos cristãos pelos
concílios Ecumênicos. Niceia abriu o caminho para os concílios Ecumênicos
seguintes e, assim, para um novo modo de sinodalidade ou conciliaridade que
marca a vida da Igreja até hoje, tanto no seu papel de definição e proclamação
da fé como na manifestação da unidade de toda a Oikouménè nele
representada.
Capítulo 4
Manter a fé acessível a todo o povo de Deus
Prelúdio: o Concílio de Niceia e as condições de credibilidade do mistério
cristão
103. A primeira ideia que temos do Concílio de Niceia é que foi um
concílio dogmático que defendeu e clarificou a fides quae
cristológica e trinitária. E é uma ideia legítima. Neste último capítulo, se
trata de explicar como o evento conciliar constituiu também um certo mecanismo
institucional da Igreja una e católica para resolver um conflito dogmático em
condições que pudessem tornar sua decisão passível de recepção. O exame na
perspectiva da teologia fundamental deve, portanto, complementar o dogmático e o
histórico. É a fides quae, a verdade salvífica, que gera a adesão à
salvação, a fides qua; mas em Niceia a própria fides qua foi
colocada a serviço da aceitação e da compreensão da fides quae. A
consideração dos processos da fides qua, ou seja, das condições de
definibilidade e de recepção da fides quae, revela a natureza e o papel
da Igreja. É claro que a constituição deste mecanismo institucional foi um
processo gradual, que não apareceu totalmente pronto, como, no mito, Atenas da
cabeça de Zeus. Em suma, que o conceito dogmático de “concílio Ecumênico” não
pode ter sido exatamente contemporâneo do acontecimento de 325. Como visto no
capítulo II, o lugar por excelência onde a fides qua e a fides quae
se encontram é o batismo. É aí que o cristão singularmente é incorporado na
fé da Igreja, que recebe da Igreja mãe. Neste contexto do batismo e da catequese
de iniciação, a Igreja primitiva desenvolveu a regra de fé como o resumo mais
substancial da fé. Dada a sua relevância, ela foi utilizada para discernir a
verdade da fé face à heresia (Irineu, Tertuliano, Orígenes, por exemplo). Ela é
precursora da posição dogmática do símbolo como síntese dos elementos normativos
da fé. Esta consciência de uma norma (regula; kănōn) está presente
nos procedimentos dos sínodos anteriores a Niceia que discerniam a fé.
104. Com base nas múltiplas experiências dos sínodos regionais e locais dos
séculos II e III, é possível sustentar a tese dogmática de que uma verdade
eclesiológica considerada, a priori, operativa foi chamada em questão,
como referência de base, par resolver uma questão trinitária, cristológica e
soteriológica ameaçada de alteração, deturpação ou perda. Os processos da
fides qua manifestam a natureza da Igreja. O Verbo de Deus que se fez carne
(Jo 1,14) dá verdadeiramente a conhecer o Pai, e este conhecimento, pela força
do Espírito Santo, é confiado à Igreja, que tem a missão de o guardar e
transmitir. Esta missão implica que a Igreja pode interpretar as Escrituras com
autoridade. Isto mostra também que crer a Igreja - como professa o Símbolo - e
aceitar na fé a sua autoridade para definir a doutrina cristológica e trinitária
se funda no ato de fé em Jesus Cristo e na Trindade, numa forma de “prioridade”
ou de “causalidade recíproca”, segundo a feliz expressão tomista[159]. Finalmente, o objetivo último de todo este procedimento eclesial deve também
ser objeto da nossa atenção. A hipótese é que o procedimento conciliar foi posto
a serviço dos pequenos, a serviço mesmo da fé das crianças, que é o paradigma da
fé do verdadeiro discípulo aos olhos do Senhor Jesus e, portanto, do anúncio do
Evangelho a todos. Isto ilumina o sentido do magistério da Igreja, que visa uma
caridade protetora para com os “mais pequeninos” dos “irmãos” de Cristo (Mt 25,
40).
1. A teologia a serviço da
integralidade da verdade salvífica
1.1 Cristo, verdade escatologicamente eficaz
105. Na medida em que Niceia propõe uma verdade no que se refere à salvação e a
distingue do erro, a sua primeira questão, do ponto de vista da teologia
fundamental, é a do lugar da verdade na soteriologia. Esta convicção decorre,
antes de mais, da própria forma da Revelação, que, ao se deixar registrar, ser
posta em palavras escritas, mostra que a dimensão da verdade é constitutiva
dela. A fé cristã pressupõe que a verdade de Cristo se torne acessível a seus
discípulos. De fato, o próprio Salvador é a verdade: “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida” (Jo 14,6). No cristianismo, a verdade é uma pessoa. A verdade
já não é uma simples questão de lógica ou de raciocínio; não é possível
possuí-la, e não pode ser separada dos outros atributos identificados com a
própria pessoa de Cristo, como a bondade, a justiça e o amor. O fato é que a
adesão a Cristo convoca sempre a inteligência dos discípulos: “Credo ut
intelligam”[160]. De fato, não é imaginável nem coerente pensar que o Deus que criou o ser
humano inteligente e livre - uma das dimensões da criação à imagem e semelhança
do próprio Criador (Gn 1,26-27) - possa, como Deus Salvador, ser indiferente ao
acesso ao conhecimento da sua verdade e da verdade salvífica. Além disso,
esta verdade salvífica tem uma dimensão comunitária. Niceia é um ato comunitário
de expressão da verdade, para a comunicar a toda a Igreja. De fato, não é
imaginável nem coerente pensar que o criador da família humana, e em particular
da sua capacidade de comunicação inteligível através das línguas (Gn 11,1-9:
Torre de Babel; At 2,11: Pentecostes), possa ser indiferente ao acesso
comunitário à sua verdade e à verdade salvífica. É por isso que a
desintegração da unidade da fé compromete a força e a eficácia da salvação em
Jesus Cristo.
106. Este lugar constitutivo da verdade na salvação reflete-se na própria
natureza da Igreja como “portadora da verdade” (alēthefora). Ela é
portadora de outro que não ela mesma, Cristo-Verdade, e não seria ela mesma sem
isso. A Igreja é, por necessidade ligada à sua origem, um lugar de busca, de
descoberta, de proteção e de estabelecimento da verdade realizada na Palavra
para o benefício pessoal e eclesial dos seus discípulos e de todos os seres
humanos. É também um lugar de comunhão com a força vivificante desta verdade,
que circula no seu interior, ao mesmo tempo que irriga a busca da verdade no
mundo, seu pensamento e sua cultura[161]. A tradição (transmissão) vivificante da própria verdade salvífica é, pois, um
dos significados mais vigorosos que se pode dar ao conceito dogmático de
Tradição eclesial[162].
107. A centralidade da verdade explica a profunda rejeição da idolatria nas
Escrituras. O Santo de Israel é um Deus que fala, ao contrário dos ídolos. “Eles
têm boca e não falam”, dizem os Salmos (115,5 e 135,15), com eco em 1Cor 12,2:
“sabeis que, quando ainda gentios, éreis como que induzidos e levados para o
culto dos ídolos mudos”. Além disso, a verdade, o poder, a justiça e a santidade
de Deus sempre foram concebidos, biblicamente, em relação à sua pretensão de
oferecer uma salvação verdadeira e universal, enquanto as práticas idolátricas
pretendem oferecer apenas um dom parcial e regional. Além disso, sendo ela uma
pessoa que vem de Deus e é Deus e Senhor (Jo 13,14), a verdade da salvação deve
ser recebida, ao passo que, na idolatria, o divino é construído a partir do
humano. O fato de Deus não poder ser modelado como a estátua de um ídolo, como
Sb 13,11-19 exprime com ironia, remete-nos para a noção de autorrevelação
divina, que contrasta fortemente com a ideia de autorrealização tão comum nas
religiões, mesmo na antiguidade, como o demonstra o gnosticismo, descrito por
Irineu como uma heresia e como “falsa gnose”. O gnosticismo “mente”, contradiz a
própria noção de verdade salvífica, porque não é recebida de Deus e livremente
acolhida no amor. Pelo contrário, através da sua encarnação, o Verbo de Deus
apela ao ato eclesial e pessoal da fé como recepção no Espírito Santo, com a
mente e com todo o ser, dos mistérios que salvam: “Vós adorais o que não
conheceis. Nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus” (Jo
4,22). Por fim, Jesus é o Verbo de Deus, enviado ao mundo para uma missão de
palavra, para uma palavra de verdade integral que exige do ser humano uma
resposta de fé. Por isso, esta é uma verdade realmente salvífica,
escatologicamente eficaz: “hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). A
escolha feita por Niceia de exprimir em palavras uma verdade integral de
salvação para todos, a ser acolhida na fé, expressa fidelidade não só à verdade
cristológica (fides quae), mas também à relação pessoal com a verdade que
é o próprio Cristo (fides qua).
1.2 A salvação e o processo de filiação divina
108. Esta verdade soteriológica deve ser tomada no seu sentido mais forte,
ontológico. Sem pretender oferecer uma compreensão exaustiva que desvirtuaria o
mistério da salvação enquanto mistério, ela, no entanto, dá acesso à própria
verdade da filiação e da paternidade de Deus. O Deus da verdade quis, por assim
dizer, pôr os homens à prova da pretensão filial, inaudita, do seu Filho
único, Jesus. A verdade revelada por Deus concentra-se então na verdade do seu
Filho unigênito. Este termo não se reduz a uma simples metáfora ou analogia,
porque o que aqui é metafórico se abre, ele mesmo, para o registo da ontologia,
tal como o symbolon, no sentido forte do termo, dá acesso real e efetivo
à realidade que significa. O testemunho do Pai dado a Jesus é o fundamento desta
verdade: “Se aceitamos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior. E
o testemunho de Deus é este: ele testemunha a respeito do seu Filho. Aquele que
crê no Filho de Deus tem este testemunho dentro de si” (1Jo 5,9-10a). O autor
acrescenta: “Aquele que não crê em Deus faz de Deus um mentiroso” (1Jo
5,10b). Nossos antigos catecismos gostavam de formular esta convicção íntima do
ato de fé dos cristãos com uma simplicidade direta: “Deus não pode enganar nem a
si mesmo, nem a nós” [163], na qual Tomás de Aquino teria reconhecido as suas próprias formulações[164]. Isto justifica a opção ontológica do neologismo niceno homoousios, que
prolonga e clarifica a terminologia bíblica e dos hinos. A confirmação da
verdade ontológica da filiação divina de Jesus é, como vimos no primeiro e no
terceiro capítulos, o fato de a relação de paternidade e filiação estar
misteriosamente invertida entre o divino e o humano: a paternidade humana e
terrena tornou-se uma nomeação segunda e derivada do seu protótipo, Deus Pai (Ef
3,14; Mt 23,9). É esta verdade da filiação divina, na qual o crente é convidado
a entrar, que está na base da verdade da filiação batismal[165]. Ser salvo, segundo o Evangelho de Jesus, consiste em entrar na verdade plena
da filiação, que se insere na filiação eterna de Cristo.
2. A mediação da Igreja e a inversão da sequência dogmática: Trindade,
cristologia, pneumatologia, eclesiologia
2.1 As mediações da fé e o ministério da Igreja
109. Esta verdade salvífica e eficaz é explicitada e comunicada em Niceia em uma
interpretação do texto bíblico, um exercício da inteligência da fé, com o
emprego de termos provenientes dos hinos e da filosofia. De fato, toda a
economia da revelação bíblica atesta que a força da convicção sobre a verdade
cristológica não deve certamente ser entendida em perspectiva fundamentalista,
para a qual o sentido das Escrituras está disponível apenas de forma imediata.
Pelo contrário, a tradição interpretativa da doutrina eclesial e a investigação
dos teólogos mostram que a fé tem necessidade de muitas mediações, a
começar pela primeira, única e fundamental, a da humanidade do Filho unigênito,
recebida de Maria. Deus fez com que a sua verdade divina inaudita passasse para
a humanidade através da mediação do seu Verbo encarnado: “Este é o meu Filho
amado, no qual está o meu agrado. Escutai-o” (Mt 17,5; 3,17). Além disso, os
diferentes gêneros literários de expressão da Revelação que constituem os livros
bíblicos exigem economias hermenêuticas[166]. O Símbolo, nascido da liturgia e proclamado em ambiente litúrgico, testemunha
que a mediação interpretativa não se reduz a um comentário do texto, mas
realiza-se gestis verbisque, onde a fé é vivida em uma comunidade de
oração e de graça[167]. Vemos isso no relato de Lc 24, onde o próprio Cristo ressuscitado não só se
explica através da exegese da Lei e dos profetas, mas também, finalmente,
através da sua presença e da sua doação eucarística, na “fração do pão”, como
explicou o Papa Bento XVI na Verbum Domini:
Palavra e Eucaristia correspondem-se tão intimamente que não podem ser
compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-se carne, sacramentalmente,
no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada
Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério eucarístico. Com
efeito, sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece
incompleta a compreensão da Escritura[168].
110. Assim, a concatenação ordenada dos mistérios, tal como é apresentada na
dogmática, pode ser utilmente invertida na teologia fundamental. É por meio do
mistério da Igreja, o mistério “mais difícil de acreditar” [169], que são propostos os mistérios inauditos da fé cristã, dos quais depende
lógica e ontologicamente a própria Igreja. De fato, é à Igreja que compete, em
primeiro lugar, estabelecer a credibilidade do caminho de fé. Obviamente,
“existe uma ordem ou ‘hierarquia’ das verdades da doutrina católica, já que é
diferente o nexo delas com o fundamento da fé cristã” [170]. A doutrina cristológica, trinitária e soteriológica do Credo constitui este
fundamento. No entanto, dentro do nexus mysteriorum dos dogmas, o ato de
interpretação do Concílio lança luz sobre a participação da Igreja, de acordo
com o seu lugar e papel específicos, na ordem da salvação[171].
2.2 Dissenso e sinodalidade
111. A mediação interpretativa da Igreja assumiu a forma de arbitragem,
sobretudo dinate de dissensões ou da necessidade de traduzir o texto sagrado. O
“Concílio de Jerusalém”, em Atos 15, testemunha pela primeira vez um desacordo
doutrinal (a relação dos discípulos de Cristo provenientes dos gentios com a Lei
mosaica) e prático (circuncisão, idolatria e fornicação). Tais descordos se
tornaram fonte de conflito, cuja resolução, sob a forma de um consenso eclesial
recuperado, foi examinada pelo colégio dos “apóstolos e anciãos” (At 15,6). O
procedimento seguido é: primeiro, uma sucessão de testemunhos autorizados
(Pedro, Paulo e Barnabé, Tiago), acolhidos em espírito de escuta recíproca[172]; depois um apelo à autoridade de Moisés; a instituição de “enviados” oficiais,
para lidar com os mensageiros “sem mandato” (At 15,24); e, por fim, a redação de
um documento prescritivo (At 15,23-29) a ser apresentado oficialmente à Igreja
de Antioquia, que se tinha reunido por convocação destes mensageiros mandatados
(At 15,30-31). Todos foram envolvidos, porque a questão foi submetida a toda a
Igreja de Jerusalém (At 15,12), que esteve presente durante o processo de
discernimento eclesial e participou na decisão final (At 15,22)[173]. É sinal deste caráter comunitário os mensageiros serem enviados aos pares (At
15,27). É essencial para a presente reflexão que a Igreja, assistida pelo
Espírito Santo e agindo sinodalmente, apoiando-se no sensus fidei fidelium[174]e na autoridade particular dos apóstolos, constitui o mistério vivo e operante
no qual se elaborou o desenvolvimento doutrinal sobre a distinção entre os
discípulos de Cristo provenientes do povo judeu e os provenientes de povos
gentios, no que diz respeito à prática da Lei mosaica. A arbitragem da fé que
dizia respeito ao desígnio universal de Deus, a entrada das nações no mistério
primeiramente revelado a Israel, teve lugar aqui, na troca entre fides qua
e fides quae, no mistério dinâmico da Igreja.
112. Desde antes da encarnação do Verbo, o povo eleito teve de enfrentar um
problema semelhante de conservação, mas sobretudo de difusão, da Revelação na
diáspora de Israel e, além disso, entre as populações que o Novo Testamento
chama de “prosélitos” (Mt 23,15 e At 2,10 e 6,15) e de “tementes a Deus” (At
10,2), de origem pagã. Foi esta opção fundamental, cuja verdadeira origem se
perde na lenda (Epístola de Aristeu ou Talmud-Soferim 1,7), que
autorizou a tradução da Bíblia do povo judeu do hebraico para o grego, dando
origem à versão alexandrina da Septuaginta. Estas traduções, tal como o uso
posterior do neologismo homoousios, implicaram uma grande arbitragem
lexical para garantir que as verdades do texto original, concebidas no campo
semântico de uma língua semítica, não se perdessem quando o texto foi
transferido para o campo semântico de uma língua indo-europeia.
113. Estas arbitragens exprimem a própria natureza da Igreja e permitem
compreender o sentido do magistério que ela exerce. Com efeito, a Igreja é uma
realidade da graça inscrita na história. Ela é constituída e movida pelo
Espírito Santo, o mesmo Espírito que realizou a Encarnação do Verbo e que
continua a realizar a incorporação dos crentes ao Corpo Místico, que enfrenta as
alegrias, as tentações e as vicissitudes da história. A sua missão de salvação
realiza-se não só através da pregação, do ensino das Escrituras e da celebração
dos sacramentos, mas também através do magistério exercido pelos bispos,
sucessores dos apóstolos, em comunhão com o bispo de Roma, sucessor de Pedro.
Isto não quer dizer que a verdade da fé seja histórica e mutável: antes, quer
dizer que o reconhecimento da verdade e o aprofundamento da sua compreensão
constituem uma tarefa histórica para o único Sujeito-Igreja. A Igreja não
possui, portanto, a verdade, que não pode ser fabricada - pois o que está em
causa é fundamentalmente o próprio Cristo -, mas a recebe, recorda e interpreta.
Para cada geração, acreditar com a Igreja significa participar nos seus esforços
incessantes para alcançar uma compreensão mais profunda e completa da fé. O
dever de fidelidade não pode ser reduzido a uma simples docilidade passiva: é um
dever de apropriação ativa por parte de todos os discípulos, com o apoio e sob a
vigilância do magistério vivo do Colégio dos bispos. Estes, em comum acordo, têm
autoridade para decidir de forma vinculante se uma interpretação teológica é ou
não fiel a à fonte - Cristo e a Tradição Apostólica. O magistério nada
acrescenta à Revelação realizada em Cristo e atestada pelas Escrituras, para
além dos esclarecimentos do desenvolvimento dogmático, porque a Igreja exerce o
seu papel de intérprete autêntica da Palavra de Deus em atos de fidelidade
criativa à Revelação[175]: “Assim, o juízo sobre a autenticidade do sensus fidelium pertence, em
última análise, não aos próprios fiéis nem à teologia, mas ao Magistério”[176]. O chamado magistério ordinário dos sucessores dos apóstolos consiste no
ensino habitual, que desenvolve continuamente a tradição - já referida no Novo
Testamento como “sã doutrina” (2Tm 4,3). Comparativamente, o magistério
extraordinário é raramente exercido, mas o é sempre que seja necessário
tomar uma decisão de importância doutrinal que diga respeito a toda a Igreja,
nomeadamente face a contestação de parte da Igreja. Foi o que aconteceu de forma
eminente e explícita no Concílio Ecumênico de Niceia.
2.3 As línguas do Espírito Santo para formar e renovar o consenso
114. No fundo, em Niceia, a tarefa eclesial era, antes de mais, uma tarefa
pneumatológica de metáfora. Ela opera no registo da tradução, como a
Septuaginta e os Targumim, que procuram a fidelidade ao texto hebraico
situando-se resolutamente nos modos de pensamento e de gênio próprios do grego e
do aramaico. Podemos supor que o mesmo processo esteve em ação na tradução das
palavras de Jesus, pronunciadas em aramaico, para o grego dos Evangelhos. É
também o trabalho de exegese do texto sagrado, iniciado com os midrashim
e os escritos dos primeiros Padres da Igreja. É este duplo movimento que
desabrochou nas trocas vivas de um concílio Ecumênico celebrado sob a ação do
Espírito do Pentecostes, o qual os oradores podiam vir do mundo siríaco, grego,
copta ou latino, e que conduziu a definições que eram, elas próprias,
traduzíveis para outras línguas e formas de expressão. Assiste-se, assim, a uma
dupla ousadia recebida do Espírito Santo. Em primeiro lugar, um reforço da
compreensão da fé professada em Niceia por parte daqueles que a proclamam com
parrēsia e eficácia em benefício do povo de Deus nos diferentes contextos do
mundo; em segundo lugar, uma ousadia no Espírito Santo por parte daqueles que
escutam (auditus fidei) e acolhem (obsequium fidei) este anúncio[177]. Este movimento manifesta tanto a natureza da Igreja como a identidade do
Espírito da verdade, que “faz memória” das palavras de Cristo e orienta para a
“verdade total” (Jo 16,13; cf. 14,26). Não há nada de surpreendente no fato de
uma tal tarefa eclesiológica, que postula as operações da terceira pessoa
divina, ter de remontar da história da salvação ao mistério original das
relações trinitárias, da economia à ontologia divina.
115. Nesta tarefa de metáfrase pneumatológica, que introduz um conceito
desconhecido da Sagrada Escritura, o famoso homoousios, é essencial notar
que as narrativas bíblicas, bem como as metáforas dos textos escriturísticos,
não são abolidas ou obscurecidas pelas transcrições especulativas que contraem e
clarificam a sua substância. O esclarecimento dogmático só tem valor se
conservar as raízes que lhe dão vida no húmus bíblico e na comunhão litúrgica da
fé. É o caso claro do texto do Símbolo. Em circunstâncias como as da crise
ariana, em que a Palavra de Deus parece dar um apoio ambivalente à conservação
da verdade de fé (Lc 18,19: “Porque me chamas bom? Ninguém é bom, a não ser um:
Deus”), tornou-se necessário que a expressão especulativa dirimisse a disputa
exegética. No entanto, o desenvolvimento doutrinal, com o recurso específico dos
neologismos, deve se contentar em expor e clarificar as verdades imanentes à
linguagem da revelação, tal como o próprio Cristo explica a sua parábola do
semeador em Mt 13,3-9 e depois 18-23. Neste sentido, vale notar que, na história
da Igreja, os neologismos dogmáticos foram poucos e raros, e que corresponderam
a pontos nodais verdadeiramente decisivos do mistério cristão: entre eles,
“consubstancialidade” e “união hipostática”, na cristologia; e, no domínio
trinitário, “relações subsistentes” e “perichoresis”; mas também “pessoa” (prosôpon
e hypostasis), no seu sentido especificamente cristão, na teologia
trinitária, na cristologia e na antropologia.
3. Salvaguarda do depósito da
fé: a caridade a serviço dos mais pequeninos
3.1 A fé unânime do Povo de Deus oferecida a todos
116. O Símbolo da Fé e os cânones adotados pelo Concílio de Niceia não são
apenas atos eclesiais de interpretação, tradução e metáfora, mas visam também
“guardar” ou “vigiar” (phȳlaxein) o depósito da fé transmitido pelos
Apóstolos (1Tm 6,20). Ora, esta proteção funciona sobretudo em benefício dos que
estão em maior risco. Assim como, ao nível da fides quae, o homoousios
é o princípio e o fundamento da koinonia em Cristo de todos os seres
humanos entre si, até o menor de todos, assim também, ao nível da fides qua,
a decisão do Concílio de definir uma profissão de fé comum protege todos os
discípulos. A clareza doutrinal torna a fé capaz de resistir às forças do
regionalismo cultural absolutista e da fratura geopolítica, bem como às da
heresia, muitas vezes ligadas a uma forma de sutileza elitista.
117. Insistamos neste último aspeto. No século IV, no tempo da “paz da Igreja”,
quando se corria o risco de que a convicção cristã se enfraquecesse à medida que
se difundia pelo mundo, os partidários do antigo paganismo tentavam restaurar o
seu vigor perdido, sublinhando que estavam acessíveis às pessoas
mais simples: os deuses do seu panteão, as suas práticas e os costumes dos seus
antepassados. A fé pregada por Jesus às pessoas simples não é uma fé
simplista. As parábolas e outros ditos, ou certas declarações joaninas, como
a magistral: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30), testemunham que o acesso ao
mistério de Deus é, pelo menos, paradoxal. Nem o que o dogma viria a designar
como Trindade, nem a união hipostática enunciada no Concílio de Calcedônia, nem
o duotelismo dinâmico salvaguardado pela soteriologia de Máximo Confessor,
poderiam passar por proposições simples. No entanto, o cristianismo nunca se
considerou um esoterismo reservado a uma elite de iniciados. Cristo afirmou-o
numa declaração fundamental: “Eu falei abertamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde os
judeus se reúnem. Nada falei às escondidas. Por que me interrogas? Interroga aos
que ouviram o que lhes falei; eles sabem o que eu disse” (Jo 18,20). Mesmo a
disciplina mistagógica do arcano, durante um período do cristianismo primitivo,
não indicava uma preocupação ciosa com o segredo, mas antes um reconhecimento da
seriedade e das etapas da iniciação cristã. E, com o passar dos séculos, a fé
cristã assumiu plenamente o seu estilo decididamente exotérico e popular. No
fundo, cada cristão, ao traçar o sinal da cruz sobre si mesmo, exprime de forma
adequada e plena o coração da fé trinitária e pascal[178]. Todo o povo de Deus deve dar razão da sua fé e da sua esperança (1Pd 3, 5):
neste sentido, é teólogo[179].
118. No mesmo sentido, o exercício do Magistério, tal como se realizou no
Concílio de Niceia, e que confere ao ensinamento da Igreja “católica” um estilo
autenticamente público e institucional, estabelece assim uma igualdade de todos
quanto ao conteúdo da fé. O símbolo da fé, praticado por todos os membros do
Corpo Místico, numa liturgia pública e comum, constituirá a pedra de toque da
contesseratio (o vínculo da hospitalidade) da comunhão eclesial, tão cara a
Tertuliano[180]. O bem comum da Revelação é verdadeiramente posto “à disposição” de todos os
fiéis, como confirma a doutrina católica da infalibilidade in credendo do
povo batizado: “A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (1Jo
2,20.27) não pode enganar-se na fé”[181]. Os bispos têm um papel específico na definição da fé, mas só o exercem fazendo
parte da comunhão eclesial de todo o Povo de Deus[182]. Neste sentido, a Nova Lei do Novo Testamento assume as caraterísticas da Lei
Antiga, cuja dimensão pública não é geralmente suficientemente apreciada: uma
vez que a lei é promulgada solenemente, é conhecida por todos como uma lei
divina. Assim, até os chefes são obrigados, pela publicidade da Lei, a
cumpri-la. A “acepção de pessoas”, que é frequentemente identificada e
denunciada na Torá, é mais facilmente vista objetivamente como uma violação da
igual dignidade dos filhos de Deus (Lv 19,5; Dt 10,17; At 10,34; Rm 2,11).
3.2 A proteção da fé face ao poder político
119. Assim, o Concílio de Niceia, com tudo o que deve à iniciativa do imperador
Constantino, representou, no entanto, um marco no longo caminho em direção à
libertas Ecclesiae, que é, em toda a parte, uma garantia de proteção da fé
dos simples e dos mais vulneráveis face ao poder político. Ao mesmo tempo,
havia, sem dúvida, um movimento concorrente em direção ao que viria a ser
conhecido como “cesaropapismo”, uma tentação persistente entre as Igrejas
cristãs. Devemos, pois, ver neste Concílio o início de uma garantia eclesial da
liberdade de consciência dos pequenos ou o início de uma instrumentalização
política da religião de Cristo? É verdade que as preocupações políticas do
imperador Constantino são hoje muitas vezes sublinhadas; salienta-se que o
Concílio de Niceia se destinava, entre outras coisas, a celebrar o vigésimo
aniversário do seu reinado, e insinua-se mesmo, nalguns casos, que a profissão
de fé adoptada por Niceia se destinava sobretudo a restabelecer a concórdia no
seio do Império. Do mesmo modo, a noção de heresia é criticada por estar
associada ao poder repressivo do Estado confessional. Sem podermos aprofundar
estas questões complexas nos limites deste documento, podemos, no entanto,
distinguir aqui formas de unidade e objetivos, unidade de fé entre cristãos e
unidade dos cidadãos. Por um lado, a verdade dogmática do monoteísmo trinitário
de Niceia não permitiu que a pretensão do basileu de ser o símbolo
estatal e religioso da unidade romana e de lançar as bases de uma ordem
teológico-política stricto sensu fosse tão honrada como o era na
perspectiva do arianismo[183]. Por outro lado, sem a vigilância magisterial da Igreja apostólica, assistida
pelo Espírito Santo, perante a resistência ao carácter inaudito da Revelação -
que é a heresia -, os mistérios da fé comunicados pela autorrevelação do Verbo
Encarnado, crucificado e ressuscitado, não teriam resistido à explosão e à
cacofonia.
120. A proteção da fé de todos, bem como a importância de escutar a voz dos
últimos e dos menos ouvidos, pode ser vista no fato de Nicéia não ter seguido o
caminho do arianismo. De fato, São Jerônimo sublinha a maioria numérica dos
arianos e a igualmente grande maioria dos bispos arianos. Historicamente, a
leitura de Jerônimo deve, sem dúvida, ser relativizada, porque a maioria dos
bispos e dos cristãos não optou diretamente pelo arianismo, mas hesitou perante
uma terminologia que não se encontrava no Novo Testamento[184]. Dito isto, o Concílio permitiu, graças à força exercida pelas autoridades
políticas, salvaguardar o sensus fidelium do povo de Deus. Neste sentido,
pode dizer-se que a profissão de fé nicena é um eco fiel, vivido na Igreja, da
exultação de Cristo: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque
escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos.
Sim, Pai, assim foi do teu agrado” (Mt 11,25-26).
Conclusão: Anunciar hoje Jesus, nossa Salvação, a todas as pessoas
121. A comemoração dos 1700 anos do Concílio de Niceia é um convite à Igreja
para redescobrir permanentemente o tesouro que lhe foi confiado e dele tirar
proveito para o partilhar com alegria, num impulso novo, aliás, numa “nova etapa
da evangelização” [185]. Anunciar Jesus, nossa Salvação, com base na fé expressa em Niceia, tal como
professada no Símbolo niceno-constantinopolitano, é, antes de mais, deixarmo-nos
maravilhar pela imensidão de Cristo, para que todos se maravilhem; é reacender o
fogo do nosso amor pelo Senhor Jesus, para que todos ardam de amor por Ele. Nada
e ninguém é mais belo, mais vivificante, mais necessário do que ele. Dostoievski
declamou-o com força: “Forjei dentro de mim um Credo, no qual tudo me parece
claro e sagrado. Este Credo é muito simples: acreditar que não há nada mais
belo, mais profundo, mais solidário, mais razoável, mais viril e mais perfeito
do que Cristo”[186]. Em Jesus, homoousios do Pai, o próprio Deus vem nos salvar; o próprio
Deus ligou-se à humanidade para sempre, a fim de realizar a nossa vocação de
seres humanos. Como Filho monogênico, ele conforma-nos a si próprio como filhos
e filhas amados do Pai, através da força vivificante do Espírito Santo. Aqueles
que viram a glória (doxă) de Cristo podem cantá-la e deixar que a
doxologia se torne uma proclamação generosa e fraterna, em outras palavras, um
querigma.
122. Anunciar Jesus como nossa salvação com base na fé expressa em Niceia não
ignora a realidade da humanidade. Não se afasta dos sofrimentos e das convulsões
que assolam o mundo e que hoje parecem minar a esperança. Pelo contrário,
enfrenta estes problemas professando a única redenção possível, conquistada por
Aquele que experimentou a violência do pecado e da rejeição, a solidão do
abandono e da morte, e que, do próprio abismo do mal, ressuscitou para nos
levar, também a nós, na sua vitória, à glória da ressurreição. Este anúncio
renovado também não ignora a cultura e as culturas, mas, pelo contrário, também
aqui com esperança e caridade, escuta-as e enriquece-se com elas, convidando-as
à purificação e elevando-as. Entrar numa tal esperança exige, evidentemente, a
conversão, mas primeiramente de quem anuncia Jesus com a sua vida e com a sua
palavra, porque a conversão é uma renovação da mente segundo a mente de Cristo.
Niceia é o fruto de uma transformação do pensamento, implicada e tornada
possível pelo evento Jesus Cristo. Da mesma forma, uma nova etapa de
evangelização só será possível por parte daqueles que se deixarem renovar por
este evento, por aqueles que se deixarem tomar pela glória de Cristo, que é
sempre novo.
123. Anunciar Jesus, nossa Salvação, com base na fé expressa em Niceia, é estar
particularmente atento aos mais pequeninos e vulneráveis dos nossos irmãos e
irmãs. A nova luz que Cristo, o Filho homoousios do Pai que partilha a
natureza humana comum, lança sobre a fraternidade entre todos os membros da
família humana ilumina de modo particular os que mais precisam da esperança da
graça. Estamos ligados por um laço radical e indestrutível a todos os que sofrem
e são excluídos; todos somos chamados a trabalhar para que a salvação chegue a
eles em especial. Anunciar significa aqui “dar de comer”, “dar de beber”,
“reunir”, “vestir” e “visitar” (Mt 25,34-40), irradiar a glória humilde da fé,
da esperança e da caridade para aquele em quem não se acredita, em quem ninguém
espera e que não é amado pelo mundo. Anunciar significa fazer resplandecer estas
virtudes teologais através da humilhação e do sofrimento, o que só pode vir de
Cristo Salvador, e, por conseguinte, dar testemunho dele e ajudar a encontrá-lo.
Mas não nos enganemos: estes crucificados da história são Cristo entre nós,
no sentido mais forte possível: “foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40). O
Crucificado-Ressuscitado conhece intimamente os sofrimentos deles, e eles
conhecem os seus. Por isso, eles são os apóstolos, os mestres e os
evangelizadores dos ricos e dos sãos. Trata-se de ajudar os pobres, mas
sobretudo de entrar em relação com eles e viver com eles a fim de se deixar
ensinar por eles, que compreendem melhor do que ninguém a imensidão do dom do
Filho homoousios, que vai até à cruz, como professado em Niceia. Eles
podem introduzir-nos na esperança que é mais forte que a morte, seguindo o Verbo
de Deus que desceu ao mais baixo entre nós para nos elevar ao mais alto com ele[187].
124 Anunciar Jesus como nossa salvação, com base na fé expressa em Niceia, é
anunciá-lo na e a partir da Igreja. Trata-se de o anunciar através do testemunho
da fraternidade sem precedentes fundada em Cristo. Significa dar a conhecer as
maravilhas pelas quais a Igreja “una, santa, católica e apostólica” é o
“sacramento universal da salvação” e dá acesso à vida nova: o tesouro das
Escrituras que o Símbolo interpreta, a riqueza da oração, da liturgia e dos
sacramentos que brotam do batismo professado em Niceia, a luz do magistério que
está a serviço da fé partilhada. Mas este tesouro “trazemos esse tesouro em
vasos de argila” (2Cor 4,7). Isto é correto, porque o anúncio só será frutuoso
se houver harmonia entre a forma da mensagem e o seu conteúdo, entre a forma de
Cristo e a forma da evangelização. No mundo atual, é particularmente importante
ter presente que a glória que contemplamos é a de Cristo, “manso e humilde de
coração” (Mt 11,29), que proclamou: “bem-aventurados os mansos, pois eles
herdarão a terra” (Mt 5,5). O Crucificado-Ressuscitado é verdadeiramente
vitorioso, mas é uma vitória sobre a morte e o pecado, não sobre os adversários
- não há perdedores no Mistério Pascal, exceto o perdedor escatológico,
Satanás, o divisor[188]. O anúncio de Jesus, nossa Salvação, não é uma batalha, mas antes uma
conformação com Cristo, que olhava para aqueles que encontrava com amor e
compaixão (Mc 10,21; Mt 9,36) e se deixava guiar por outro, pelo Espírito do Pai[189]. O anúncio será frutuoso se for Cristo a agir em nós: “é bom recordar que, quando
enviou os seus discípulos em missão, “o Senhor cooperava com eles” (Mc 16, 20).
Ele está lá trabalhando, lutando e fazendo o bem conosco. De uma forma
misteriosa, é o seu amor que se manifesta através do nosso serviço, é Ele
próprio que fala ao mundo naquela linguagem que por vezes não tem palavras”[190].
[1]Francisco, Bula de proclamação do Jubileu Ordinário de 2025,
Spes non confundit,
n° 17.
[2] Efrém de Nisibe, Hymns of Nativitate, III, 3, ed. e trans. E. Beck, o.s.b., Louvain,
1959 (CSCO 186, p. 21; CSCO 187, p. 18-19 tradução modificada); tradução a
partir da ed. francesa de F. Cassingena-Trévedy, o.s.b., Paris, Cerf, 2001 (SC
459, p. 64-65).
[3] Francisco,
Discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional,
30 de novembro de 2023.
[4] “Desde que foi inicialmente acordado que o sínodo dos bispos se realizaria
em Ancira, na Galácia, pareceu-nos agora, por muitas [razões], que seria melhor
que se reunisse na cidade de Niceia, na Bitínia: tanto por causa dos bispos que
vieram de Itália e de outras partes da Europa, como por causa do bom clima, e
porque eu serei de perto um observador e participante nas coisas que estão
prestes a acontecer”, Constantino , Carta aos Bispos, (H.-G. Opitz,
Athanasius Werke III/1, 3. Urkunde 20;
Berlin/Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1934/1935, pp. 41-42).
[5] Concílio de Calcedônia, preâmbulo (DH, 300).
[6] Concílio de Éfeso, 6ª essão dos cirilianos (DH, 265).
[7] Citado em K. Schatz, Los concilios Ecumênicos, Encrucijada en la
historia de la Iglesia, Ed. Trotta, Madrid, 1999, p. 41.
[8] “A Igreja Católica reconhece o valor conciliar, ecumênico, normativo e
irrevogável, como expressão da única fé comum da Igreja e de todos os cristãos,
do Símbolo professado em grego em Constantinopla, em 381, pelo Segundo Concílio
Ecumênico. Nenhuma profissão de fé própria de uma tradição litúrgica particular
pode contradizer esta expressão de fé ensinada e professada pela Igreja
indivisa”, Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, “Les
traditions grecque et latine concernant la procissão du Saint-Esprit”, 13 de
setembro de 1995, in Documentation Catholique, n° 19, p. 941-945.
[9] Francisco,
Discurso ao Dicastério para a Doutrina da Fé, 26 de janeiro de 2024.
[10] Seguimos a versão grega do símbolo niceno-constantinopolitano, salvo
indicação em contrário.
[11] O tema de Deus Pai como criador está muito presente nos primeiros Padres
da Igreja. Clemente de Roma diz “Pai e criador de todo o mundo”, Aos
Coríntios, 19.2 e 35.3 (SC 167, p. 133 e 157); Justino de Nablus fala do
“Pai e Senhor do universo”, Apologia a Antonino, 12.9; 61.3, em B.
Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, Paris, Gall. B.
Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, Paris,
Gallimard (“La Pléïade”), 2016, p. 333 e 376; Taciano, o Sírio, fala também do
“Autor dos espíritos” e do “Pai do sensível e do visível”, Aos Gregos,
IV,3, ibid, p. 591. Platão considera Deus como “o autor e pai de todo o
universo” (Timeu, 28c; 41a; ver também Epicteto, Diss. I,9,7).
[12] Ao contrário de Ésquilo, que fala do “τῶν θεῶν φθόνοV“, “a inveja dos deuses” (Os Persas, v. 362), veja-se Tomás de Aquino,
Contra Gentiles, l. 1 cap. 89 n. 12: “Invidiam igitur in Deo impossibile est
esse, etiam secundum suae speciei rationem: non solum quia invidia species
tristitiae est, sed etiam quia tristatur de bono alterius, et sic accipit bonum
alterius tanquam malum sibi”.
[13] H ilaire de Poitiers, De Trinitate, IX, 61, CCSL 62A, p. 440-441.
[14]Hipólito, C. Noet. 10,1-2. Tertuliano: “Ante Omnia enim Deus erat solus, ipse
sibi et mundus et locus et omnia. Solus autem quia nihil aliud extrinsecus
praeter illum. Ceterum ne tunc quidem solus ; habebat enim secum quam habebat in
semetipso, rationem suam” (Adversus Praxean, 5,2, CCL 2, p. 1163).
[15]Martírio de São Policarpo
em B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, p.
254; Justino, Apologie à Antonin, 63, ibid, p. 379-380.
[16] Ver o anátema dirigido contra Ário no final do símbolo de Nicéia (DH,
126).
[17] Ário, Carta a Eusébio de Nicomédia, 5 (H.-G. Opitz, Athanasius Werke,
III-1, p. 3; Urkunde 1).
[18] Em leitura posterior a Niceia, Cromácio de Aquileia afirma: “Tal como a
nossa primeira criação foi obra da Trindade, assim também a nossa segunda
criação é obra da Trindade: O Pai não faz nada sem o Filho ou sem o Espírito
Santo, pois o que é obra do Pai é também obra do Filho, e o que é obra do Filho
é também obra do Espírito Santo” (Cromácio de Aquileia, Sermões, 18, 4,
tomo II, texto crítico, notas e índice de J. Lemarié, tradução de H. Tardif,
Paris, Cerf, SC 164, 1971, p. 14).
[19] A respeito destas “omissões” do Espírito Santo, ver Y. Congar,
Revelação e experiência do Espírito. Paulinas, São Paulo, 2005, t. 1, p.
207-216. As análises de Congar incidem sobretudo nos séculos XIX-XX, mas os
fenômenos que descreve continuam a existir, de forma mais sutil.
[20] “Credimus […] Patrem […] fontem et originem totius divinitatis”, 6e Concílio de Toledo (DH, 490). Ver também Agostinho, para quem o Pai é “o princípio de toda a divindade”, Agostinho,
De Trinitate, vol. IV, c. xxix, PL, vol. XLII, col. 908.
[21] Versão do símbolo de Nicéia (325).
[22] “Não há outra espécie de Deus, mas o Pai e o Filho são um só” (Hilaire de Poitiers,
De Trinitate, VIII, 41, CCSL 62A, p. 354).
[23] Ver B. Sesboüé, História dos Dogmas, vol. 1, O Deus da salvação,
Loyola, São Paulo, 2002, p. 216.
[24] Versão latina do símbolo niceno-constantinopolitano, baseada na versão
traduzida por Rusticus no século VI (cf. I. Ortiz de Urbina,
Storia dei Concili Ecumenici, vol. I, LEV, 1994, p. 172).
[25] Ver Efrém e Gregório Palamas, mas também Ambrósio: Splendor paternae
gloriae como comentário a lumen de lumine, em Sant'Ambrogio,
Opere poetiche e frammenti. Inni - Iscrizioni - Frammenti, a cura di G. Banterle, G. Biffi, I. Biffi, L.
Migliavacca, Milano-Roma, 1994, Inno II, p. 34-37.
[26] “A doutrina da Trindade não é um acréscimo e um enfraquecimento, mas uma
radicalização do monoteísmo cristão”, K. Rahner, “Unicité et Trinité de Dieu en
dialogue avec l'islam” (1978), in Œuvres, 22/1b, Dogmatique après le
Concile. Fondement de la théologie, doctrine de Dieu et christologie, traduzido do alemão, Cerf, Paris, 2022, p. 203-221 (aqui: p. 213).
[27] Ver M. Wyschogrod, Abraham's Promise, Judaism and Jewish-Christian
Relations, SCM Press, Londres, 2006, p. 178.
[28]D. Boyarin, Le Christ Juif, Cerf, Paris, 2019, p. 42-66; P. Lenhardt, L'Unité de
la Trinité. À l'écoute de la tradition d'Israël, Éd. Parole et Silence,
Paris, 2011; P. Schäfer, Two Gods in Heaven: Jewish Concepts of God in
Antiquity, Princeton University Press, Princeton (NJ), 2020.
[29]D. Boyarin, Le Christ Juif, p. 55-56, por exemplo. Esta posição é atualmente considerada no mundo judaico como uma interpretação
possível de Daniel no texto aramaico e de vários textos do período do Segundo
Templo, embora seja também muito debatida.
[30] Pr 1,9.14; 8,1-36; Sb 1,7; 7,22-27; Si 24,1-22. Alguns exegetas usam
também a expressão “duoteísmo” a propósito da Sabedoria personificada, como J. Trublet
[ed.], La Sagesse Biblique. De l'Ancien au Nouveau Testament, “Lectio Divina 160”, Cerf, 1995.
[31]L. W. Hurtado, One God, one Lord. Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism, T&T Clark, Edimburgo 21998 (1988); R. Bauckham, “God Crucified”
(1996), em R. Bauckham, Jesus and the God of Israel, Paternoster,
Crownhill (UK) 2008, p. 1-59. Por exemplo, parte do Símbolo niceno foi formulado na primeira literatura
judaico-cristã primitiva, as Odes de Salomão, que datam de cerca de
70-125 d.C. (Ode 14,12-17, em A. Rahlfs, R. Hanhart [ed.],
Septuaginta: Edição SESB, Stutgart 2006).
[32] A versão latina do Credo distingue entre o fato de Cristo se ter encarnado
“pelo (de)” Espírito Santo e “da (ex)” Virgem Maria.
[33]J. Ratzinger, Einführung in das Christentum, Vorlesungen über das
Apostolische Glaubensbekenntnis, Vorwort zur Neuausgabe (2000), in: JRGS 4,
p. 52 (trad. brasileira: Introdução ao Cristianismo. Preleções sobre o
Símbolo Apostólico. Loyola, São Paulo, 8ª ed., 2015).
[34] “Seguindo, pois, os santos Padres, com unanimidade ensinamos que se
confesse que um só e o mesmo Filho, o Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na sua
divindade e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem
<composto> de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai segundo a
divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade, semelhante em tudo a nós,
menos no pecado [cf. Hb 4,15], gerado do Pai antes dos séculos segundo a
divindade e, nestes últimos dias, em prol de nós e de nossa salvação, <gerado>
de Maria, a virgem, a Deípara, segundo a humanidade”, Concílio Ecumênico de Calcedônia
(DH, 301).
[35] “O homem, constituído como criatura, não teria sido divinizado se o Filho
não fosse verdadeiro Deus; e o homem não teria podido estar na presença do Pai
se aquele que se revestiu do corpo não fosse, por natureza, o seu verdadeiro
Verbo. Do mesmo modo, não teríamos sido libertados do pecado e da maldição, se a
carne vestida pelo Verbo não fosse carne humana (porque não teríamos nada em
comum com tudo o que nos é estranho)” (Atanásio de Alexandria, Traité contre
les Ariens, II, 70, texto da edição K. Metzler - K. Savvidis, notas de
Lucian Dinca, tradução de Ch. Kannengiesser, Paris, Cerf, SC 599, 2019, p.
237-239).
[36] Ibid, III, 7.3, p. 297.
[37] Esta expressão encontra-se nos Padres, onde outros atores da história são
por vezes mencionados juntamente com Pilatos, como “Herodes, o Tetrarca” (Inácio de Antioquia,
Carta aos Esmirnenses, I, 2, in B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini,
Premiers écrits chrétiens, p. 213). Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, p. 213)
ou “Tibério César” (Justino, Apologia a Antonino, 13,3, ibid., p.
334).
[38] “[...] a Antiga Aliança, jamais revogada por Deus”, João Paulo II,
Encontro com representantes da comunidade judaica de Mainz, 17 de novembro
de 1980, n. 3; “A Antiga Aliança nunca foi revogada”,
Catecismo da Igreja
Católica, 1992, n. 121; cf. Francisco,
Evangelii Gaudium, 2013, n.
247.
[39] Concílio Ecumênico Vaticano II, Declaração
Nostra aetate, n.º 4.
[40] Já em Irenée de Lyon, Contre les hérésies, IV, 34,3, ed. A. Rousseau, tome II, SC 100, Paris, Cerf, 1965, p. 850-853: “Como é que os
profetas poderiam ter predito a vinda do Rei, ter anunciado antecipadamente a
boa nova da liberdade que lhe seria dada, ter pregado antecipadamente tudo o que
Cristo fez por palavras e atos, bem como a sua Paixão, e ter anunciado
antecipadamente a nova aliança, se tivessem recebido a inspiração profética de
outro deus que, segundo vós, desconhecia o Pai inexprimível e o seu reino, e as
suas economias, que o Filho de Deus realizou nestes últimos dias ao vir à terra? Ver A. De Halleux, “La profession de l'Esprit-Saint dans le Symbole de
Constantinople”, Revue théologique de Louvain, 10e année,
fasc. 1, 1979, p. 5-39. Um símbolo de Epifânio de Salamina, datado de 374, desenvolve
ainda mais este tema: “Cremos no Espírito Santo, que falou na Lei e pregou pelos
Profetas, que desceu sobre o Jordão, fala nos Apóstolos, habita nos santos” (DH,
44).
[41] João II, Carta Olim quidem, março de 534 (DH, 401). “Se alguém não
confessa que nosso Senhor Jesus Cristo, crucificado em sua carne, é verdadeiro
Deus, Senhor da glória e um da santa Trindade, seja anátema”, II Concílio de Constantinopla,
anátema 10 (DH, 432).
[42] “O que já se realizou em Cristo deve ainda realizar-se em nós e no mundo.
A realização definitiva virá no fim, com a ressurreição dos mortos, os novos
céus e a nova terra. A expetativa messiânica judaica não é vã. Pode tornar-se um
poderoso estímulo para nós, cristãos, mantermos viva a dimensão escatológica da
nossa fé. Tal como eles, nós vivemos na expetativa. A diferença é que, para nós,
Aquele que virá terá as caraterísticas do Jesus que já veio e que já está
presente e ativo entre nós” (Pontifícia Comissão Bíblica, O povo judeu e as
suas Escrituras Sagradas na Bíblia cristã, 2001, II, n. 21).
[43] Catecismo da Igreja Católica, 1992, III, n.º 1848.
[44] Concílio de Orange (529), cânone 1 (DH, 371) e cânone 2 (DH,
372).
[45] Segundo Irineu, Jesus refere-se aqui “àqueles que receberam a filiação
adotiva” nele. Cf. Ireneu de Lyon, Contre les hérésies, Dénonciation et réfutation de
la gnose au nom menteur, ed. A. Rousseau, Paris, Cerf, 19913, livro III, 6,1, p. 288-289.
[46] “Cristo, o homem que está em Deus, eternamente uno com Deus, é ao mesmo
tempo a abertura perpétua de Deus ao homem. Ele é, portanto, o que chamamos de
“céu”, pois o céu não é um espaço, mas uma pessoa, a pessoa daquele em quem Deus
e o homem estão para sempre unidos sem separação. E nós vamos ao céu, sim,
entramos no céu, na medida em que vamos a Jesus Cristo e nele ingressamos”, J. Ratzinger,
JRGS 6/2, p. 861. Ver também H. U. von Balthasar, “Eschatologie”, em J. Feiner,
J. Trütsch e F. Böckle (eds.), Fragen der Theologie heute, Einsiedeln,
Zurique, Colônia, 1957, p. 403-421 (aqui p. 407-408).
[47] Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Pastoral,
Gaudium et spes, 22.
[48] João da Cruz, Le Cantique Spirituel
A 38, 3-7; Le Cantique Spirituel B 39, 2-7, em João da Cruz Obras
Completas, trans. M. du Saint-Sacrement, Cerf, Paris, 1997, p. 519-522;
1425-1428.
[49] Paulo VI,
“Discurso do Beato Paulo VI na última sessão pública do Concílio Vaticano II”,
in Concílio Ecumênico Vaticano II. Documentos. Ed. CNBB, Brasília, 2018,
p. 895.
[50] Concílio de Calcedônia, DH, 301.
[51] Cf. o Símbolo dos Apóstolos.
[52] Ver Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles, IV, 81.
[53] B. Pascal, Les Pensées, ed. Jacques Chevalier, Paris, Gallimard (“La Pléïade”),
1954, p. 1207, fgt 258; cf. Francisco, Carta Apostólica
Sublimitas et Miseria
hominis, 19 de junho de 2023, para o IV centenário do nascimento de Blaise
Pascal.
[54] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm.
Lumen gentium, 48; Congregação para a Doutrina da Fé,
Dominus Iesus, 2000, 20.
[55] Hipólito de Roma, Traditio Apostolica, 6, Aschendorff, Münster, 1963, p. 19.
[56] “Como a indivisa bondade de Deus realmente se difunde de diversos modos
nas criaturas, da mesma forma também a única mediação do Redentor não exclui,
mas desperta nas criaturas uma variada cooperação, participada de uma única
fonte”, Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática
Lumen gentium,
62.
[57] Concílio Ecumênico Vaticano II, Passado.
Gaudium et spes, 24-25.
[58] Ibid, II, 22.
[59] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm.
Lumen gentium, 1.
[60] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const.
Sacrosanctum Concilium, Apêndice.
[61] Teodoreto de Círio, História Eclesiástica, “Carta Sinodal à Igreja de Alexandria”, I,9,
tomo I, livro I-II, texto grego (GCS, NF 5, 19983) de L.
Parmentier e G.C. Hansen, com anotações de J. Bouffartigue, introdução de A.
Martin, tradução de P. Canivet, revista e anotada por J. Bouffartigue, A.
Martin, L. Pietri e F. Thelamon. Bouffartigue, introdução de A. Martin, tradução
de P. Canivet, revista e anotada por J. Bouffartigue, A. Martin, L. Pietri e F.
Thelamon, Paris, Cerf, SC 501, p. 220-221 e 227.
[62] Ver Lettera alle Chiese, publicada em H. Pietras, Concilio di
Nicea (325) nel suo contesto, GBPress, Roma, 2021, p. 204-208 (Eusébio,
Vita Constantini, 3.17-20); “Infelizmente, com esta decisão, foi abandonada
a data comum da Páscoa entre cristãos e judeus”, Card. K. Koch, “Verso una
celebrazione ecumenica del 1700° anniversario del Concilio di Nicea (325-2025)”,
L'Osservatore Romano, 30 aprile 2021.
[63] João Paulo II, Encontro com a comunidade judaica de Roma,
13 de abril de 1986, 4, e Benoît XVI, Lumière du monde. Le pape, l’Église et les signes des temps. Un entretien avec P. Seewald, trad. N. Casanova et O. Mannoni, Paris, Bayard, 2011, p. 114 (trad. Port.
Luz do mundo. O Papa, a Igreja e os sinais dos tempos. Entrevista a P. Seewald, tradutores: Sofia Favila Vieira, Maria Inês Barão Reis e Maria Teresa Martins
Silva. Cascais, Lucerna, 2010).
[64] Atanásio de Alexandria, Vida e conduta do nosso pai Santo António, Spiritualité orientale, n.º
28, trans. B. Lavaud, o.p., Bégrolles en Mauges, 1979, p. 75.
[65] “Se a nós também não fosse dada a possibilidade de um verdadeiro encontro
com Ele, seria como se declarássemos esgotada a novidade do Verbo feito carne.
Pelo contrário, a Encarnação, para além de ser o único acontecimento novo
conhecido na história, é também o método que a Santíssima Trindade escolheu para
nos abrir o caminho da comunhão. A fé cristã ou é um encontro com Ele vivo, ou
não existe. A liturgia garante-nos a possibilidade de tal encontro”, Francisco,
Carta Apostólica Desiderio desideravi, 2022, 10-11.
[66] Ver À Diognète, V,10-11, em B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini,
Primeiros escritos cristãos, p. 814.
[67] Atenágoras,
Legatio (Supplicatio) pro Christianis (176-180 d.C.) 12,3; cf. 24,2, SC 379, p. 108 e p. 160.
[68] Ambrósio,
De fide ad Gratianum I, 1,8, (CSEL 78, p. 7).
[69] Hilaire de Poitiers,
De Trinitate II,1 (CCSL 62, p. 38).
[70] Efrém de Nisibe, De fide (Contra os Disputadores) trad. J. B. Morris, Select Works of St. Ephrem the Syrian, 1847, ritmo 52, n.º
1 (Morris, p. 273); 59, n.º 2 (ibid., p. 300); 76, n.º 1 (ibid.,
p. 347).
[71] Atanásio,
Tratado contra os Arianos, SC 599, II, 41,4, p. 144-145, e 41,5, p. 146-147.
[72] Ver também Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito Santo, 26, SC
17bis, p. 337: “Como é que somos cristãos? Pela fé, dirão todos. Mas como é que
somos salvos? Porque renascemos do alto, evidentemente, pela graça do batismo.
De que outra forma poderíamos ser salvos? Depois de termos adquirido o
conhecimento desta salvação operada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo,
abandonaríamos “a forma de ensino” (typon didachès, Rm 6,17) recebida?
[...] Pois se o batismo é para mim o princípio da vida e se o primeiro dos dias
é o da regeneração, é claro que a palavra mais preciosa será também a que foi
dita quando recebi a graça da adoção filial”. Do mesmo modo, no que respeita ao
Espírito Santo: Atanásio, 1a carta a Serapião, nº 30 (Atanásio,
Werke I/1 p. 523-526).
[73] Atanásio,
Tratado contra os Arianos, SC 599, II, 42,3, p. 149; Basílio de Cesareia, De Spiritu sancto, 26,
SC 17bis, p. 336-339; Gregório de Nissa, Discurso Catequético, I,2,e,
texto grego de E. Mühlenberg, introdução, tradução e notas de R. Winling, Paris,
Cerf, SC 453, 2000, p. 153.
[74] Cf. Ambrósio, De fide ad Gratianum I, 9,58 (CSEL 78, p. 25); também Zeno de Verona,
Sermones, liber II, serm. II,5,9 (CCSL 22, p. 167).
[75] Ver Atanásio, De decretis Nicaenae synodi, 33-1 a 33-7, tradução em
L. Dîncă, Le Christ et la Trinité chez Athanase d'Alexandrie, Paris,
Cerf, Patrimoines, p. 376-377, 2012 e notas 2 e 3, p. 376.
[76] Hilaire de Poitiers,
Contre Constance, 16, introdução, texto crítico, tradução, notas e índice de A. Rocher, Paris,
Cerf, SC 334, 1987, p. 200-201. Nele, Hilário defende Nicéia contra a acusação
de não estar em conformidade com a Escritura: segundo ele, novas doenças exigem
uma nova composição de remédios. Por exemplo, a expressão “inassimilável”, que
era um cavalo de batalha de Ário, Aécio e Eunômio, também não é uma palavra
bíblica para o Pai: “Decretais que ‘o Filho é semelhante ao Pai [similem
Patri Filium]’ˮ, a expressão não é proclamada nos Evangelhos: porque não a
repudiais?”.
[77] Atanásio,
Epistula ad Afros episcopos, 1,1.3 (Atanásio, Werke II/1, p. 322s.); o Credo Niceno é “suficiente”.
Cf. Atanásio, Epistula ad Epictetum, 1 (ibid., I/1, p. 705s.).
[78] O termo “niceno” poderia também ser aplicado a formulações de confissões
de fé que alargassem o símbolo niceno, pelo menos enquanto mantivessem o seu
conteúdo e não adotassem doutrinas opostas. Ver DH, 300 (e supra, § 4).
[79] Concílio de Calcedônia,
Actio 3, 10.12; 2,1,2, 79 [gr.]; 2,3,2, 5f [lat.]) (DH, 300); a
“definição” (horos) de Calcedônia baseia-se em Niceia, com o Símbolo dos
150 Padres reunidos em Constantinopla (ACO 2,1,2 , 126-129 [gr]): “Ora, para o
perfeito conhecimento e fortalecimento da reta fé, este sábio e salutar Símbolo
da graça divina teria bastado por si mesmo, pois ensina sobre o Pai, o Filho e o
Espírito Santo o que é definitivo, e coloca a encarnação do Senhor diante dos
olhos daqueles que estão prontos para aceitá-la com fé’. Nas palavras do autor:
“Sufficeret quidem ad plenam cognitionem pietatis et confirmationem sapiens hoc
et salutare divinae gratiae Symbolum; de Patre enim et de Filio et de Spiritu
sancto perfectionem docet et inhumanationem fideliter accipientibus
repraesentat” (COeD, 1962, p. 60).
[80] Francisco, Bula de proclamação do Jubileu Ordinário do ano 2025,
Spes non confundit,
17.
[81] Trata-se de uma referência simbólica a Gn 14,14.
[82] Atanásio,
De synodis 5, 1-3 (Atanásio, Werke II/1 p. 234).
[83] Basílio de Cesareia, Homilia 16 in illud “In principio erat Verbum”, PG 31, col. 471-482.
Note-se, no entanto, que o Símbolo, ao contrário do prólogo de João, evita o
termo “Logos”. Sendo um conceito central da filosofia grega, foi quase
inevitavelmente entendido de forma subordinacionista (ariana) pelos Padres
familiarizados com a filosofia grega.
[84] “Quem, como Fotino ou Ário, ‘não acredita que Cristo é Deus, ou que o
Filho vem do Pai’, insulta o evangelista João” (Cromácio de Aquileia, Sermo
21,3, SC 164, p. 44). “Para aquele que segue Cristo há sempre luz do dia,
pois ele caminha na luz eterna” (Sermo 18,1, SC 164, p. 8). “O trono de
Deus é um só, o trono da majestade do Pai e da majestade do Filho”, “não há
diferença de dignidade” (Sermo 8,4, SC 164, p. 192-195).
[85] Zeno de Verona,
Sermones, liber II, sermo II, 5, nos. 9 e 10, CCSL 22, p. 167; sermo II, 8, p. 176-178.
[86] João Crisóstomo, Três Catequeses Batismais, III,1, introdução, texto crítico, tradução e
notas de A. Piédagnel, com a colaboração de L. Doutreleau, s.j., Paris, Cerf, SC
366, 1990, p. 214-215.
[87] Agostinho de Hipona, De agone christiano, 18, CSEL 41; De fide et symbolo, 5 e 18,
CSEL 41. O debate teológico propriamente dito com os homoianos é conduzido por
Agostinho em De Trinitate I - VII, bem como em Contra sermonem
Arianorum e Contra Maximinum haereticum Arianorum episcopum (Augustinus,
Opera - Werke, latein-deutsch: Antiarianische Schriften, 2008).
[88] Gregório de Nissa, Discurso Catequético, 39, 2, texto grego de
Mühlenberg, introdução, tradução e notas de Raymond Winling, SC 453, Paris,
Cerf, 2000, p. 329-331: “Uma mente astuta deve, portanto, necessariamente, em
todo caso, escolher entre as duas partes seguintes: ou acreditar que a santa
Tríade é da ordem da natureza incriada, e assim tomá-la, no nascimento
espiritual, como fonte de sua própria vida; ou então se considera que o Filho e
o Espírito Santo são estranhos à natureza de Deus que é primeiro, verdadeiro e
bom, isto é, à natureza do Pai, não incluir esta crença na fé que adota no
momento da regeneração, para evitar entrar involuntariamente na natureza
imperfeita que precisa de alguém que a emende e voltar assim, de algum modo, ao
que lhe é conatural, devido ao fato de a sua fé se ter afastado da natureza
supereminente”.
[89] Ambrósio,
In Lucam IV,67, CSEL 32, p. 173.
[90] A. Grillmeier, “Das “Gebet zu Jesusˮ und das “Jesusgebetˮ”“, in Fragmente zur Christologie.
Studien zum altkirchlichen Christusbild, Freiburg 1997, p. 357-371.
[91] 2Cor 12,8.9; Rm 10,12; 2Pd 3,18; invocações inseridas na liturgia: 1Cor
16,22; Ap 22,20; Didaquê 10,6.
[92] Em particular, Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 1,3-10; 1Tm 3,16; Ap 5,6-14.
[93] Ver De oratione em Orígenes, De la prière ; Exhortation au
martyre, introdução, tradução e notas de G. Bardy, Paris, Librarie
Lecoffre-Gabalda, 1932, X,2, p. 55 ; XV,1, p. 77 : “Se nós entendemos o que é a
oração, talvez entendamos que não devemos orar a nenhum ser produzido e nem
mesmo a Cristo”; XVI,1: p. 81-82; Contra Celsum, VIII, 13, éd. et trad.
M. Borret, s.j., Paris, Cerf, SC 150, 1969, p. 200-203.
[94] Basílio de Cesareia,
Sobre o Espírito Santo, 25-29.68, SC 17bis, p. 334-350; p. 488-490.
[95] Por exemplo, Atanásio, que utiliza a doxologia tradicional de forma
anti-sabeliana, e Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito Santo, 3.4.16, SC
17bis, p. 256-260 e p. 298-300, que sublinha a diferença entre oikonomia
(mediação salvífica de Cristo) e theologia (filhos de igual importância).
[96]Traditio apostolica: durante a consagração dos bispos e presbíteros, bem como durante a oração
eucarística, a doxologia final é a seguinte: “pelo teu servo Jesus Cristo, por
quem seja dada glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”; Orígenes,
Homélies sur S. Luc: texte latin et fragments grecs, XXXVII, 5,
introduction, traduction et notes par H. Crouzel, F. Fournier, P. Périchon,
Paris, Cerf, SC 87, 1962, p. 440-441; Gregório Nazianzeno, Oratio 19, n° 17, PG
35, col. Périchon, Paris, Cerf, SC 87, 1962, p. 440-441; Grégoire de Nazianze,
Oratio 19, n° 17, PG 35, col. 1064 : “uma só e mesma glória divina
ao Pai, ao Filho, ao Santo Espírito”; Oratio 17, n° 13, PG 35,
col. 981 : “em Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem seja dada glória, poder, honra
e domínio, com o Pai e o Espírito Santo, como Ele era e como há de ser pelos
séculos dos séculos”.
[97] Basílio de Cesareia, Sobre o Espírito Santo, XXIX,73, SC 17bis, p. 511. O exemplo do bispo
Leôncio de Antioquia mostra como a questão da forma da doxologia podia tornar-se
explosiva na vida das Igrejas locais: para não se desentender com os arianos ou
com os seus adversários, já não pronunciava as palavras da doxologia em voz
alta, mas “só se ouvia a conclusão: ‘por toda a eternidade’”: Teodoreto de Ciro,
Hist. eccl. 2,24,3, SC 501, p. 446.
[98] Basílio de Cesareia,
Epistula 159, 2; ep. 125, 3, Courtonne II, p. 86 f., depois p. 33 f. Ver também
Sobre o Espírito Santo, VII,16, SC 17bis, p. 298-301; X,24, p. 332-335;
X,26, p. 336-339.
[99] Texto em A. Grillmeier, Fragmente zur Christologie, Friburgo 1997,
p. 365.
[100] Grégoire de Nysse,
Lettres, introdução, tradução e notas de P. Maraval, Paris, Cerf, SC 363, p. 283-285.
[101] Cassiodoro,
Expositio psalmorum, prooema nº 17, CCSL 97, p. 22-23.
[102]II Sínodo de Vaison (524 d.C.), cânone 5, Mansi 8, col. 725: “Porque não só na
sede apostólica, mas também por todo o Oriente e toda a África ou Itália, por
causa da astúcia dos hereges, que blasfemam não ter sido o Filho de Deus sempre
com o Pai, mas ter começado no tempo, após o Glória ao Pai, etc. é permitido
acrescentar a cláusula: Como era no princípio, etc., também nós decidimos que
isso deveria ser dito em todas as nossas igrejas” (“Quia non solum in sede
apostolica, sed etiam per totum Orientem et totam Africam vel Italiam propter
Haereticorum astutiam, qui Dei filium non semper cum Patre fuisse, sed a tempore
coepisse blasphemant, in omnibus clausulis post Gloriam patri etc. Sicut erat in
principio licitur; etiam et nos in universis ecclesiis nostris hoc ita dicendum
esse decernimus”).
[103] Sozómeno,
Hist. eccl. 8, 8, 1-3, GCS NF 4, p. 360s.; Ambrósio, Contra Auxentium sermo de
basilicis tradendis n° 34, CSEL, 82/3, p. 105.
[104] De Nativitate IV, 143-214 e XI. O texto De Nativ. IV,
154-156 é muito claro: “Enquanto estava deitado no seio de sua Mãe / no seu seio
todas as criaturas estavam deitadas / Ele estava silencioso como um bebê / e, no
entanto, fez com que as suas criaturas cumprissem / todas as suas ordens / pois
sem o Primogênito, / nenhum homem pode / aproximar-se da Essência / só Ele é
capaz de o fazer” (ed. Beck, Lovaina 1959, CSCO 186, p. 39; 187, p. 34; trans.
F. Cassingena-Trévedy, o.s.b., Paris, Cerf, 2001, SC 459, p. 103).
[105]Hino De fide LXXVI, 1-3. 7, (ed. Beck, Louvain, 1955, CSCO 154, p. 232-233; 155, p. 198-199; tradução
inglesa, J. T. Wikes, St. The Hymns on Faith, Washington D.C., CUA Press,
2015, p. 361-362); ibid, VI, 1-8 (CSCO 154, p. 24-27; 155, p. 18-20;
Wikes, p. 90-93).
[106] De fide, XL e LXXIII.
[107] De fide, LII, 1-3 (CSCO 154, p. 161-162; CSCO 155, p. 138; Wikes,
p. 269).
[108] Efrem de Nisibe, Hinos contra as heresias. Hinos contra Juliano,
volume I. Hymns against Heresies I-XXIX, XXII, 20, CSCO Critical
Text por E. Beck, o.s.b.; introdução, tradução, notas e índice de D. Cerbelaud,
o.p., Paris, Cerf, SC 587, 2017, p. 399. Note-se que, mesmo que o ensinamento de
Santo Efrém esteja perfeitamente de acordo com a ortodoxia nicena, o vocabulário
e a expressão não são os de Niceia, o que se deve certamente à forma poética e
não discursiva conscientemente escolhida para ele ensinamento. Cf. Wikes, p.
36-39.
[109] Balaï (Balaeus), Gebete, BKV 26, p. 92 e segs.; Isaac de Antioquia, 1º poema sobre a
Encarnação (S. Isaaci Antiochi Opera omnia I, ed. G. Bickell, 1873, p.
23).
[110] “Cristo é figura do Pai, nós, figura e imagem de Cristo; / Nós, criados à
semelhança do Senhor pela bondade do Pai, / Cristo, à nossa semelhança, depois
dos tempos devia vir”, Prudêncio, Apotheosis, linea 309-311, CCSL 126, p. 87.
[111] “Omnem novitatem attulit, semetipsum afferens”: Ireneu de Lyon, Contra
as heresias, IV,34,1, ed. A. Rousseau, tomo II, SC 100, Paris, Cerf, 1965,
p. 846-847 (diversas vezes citado por Henri de Lubac); Francisco,
Evangelii
gaudium, 11. Em tradução livre: “Em sua vinda, [Cristo] trouxe toda
novidade”.
[112] Sobre esta distinção: Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm.
Dei
Verbum, 2-5 e 7-8.
[113] Ireneu de Lyon, Contra as Heresias, IV,5,1, volume II, SC 100, p. 426-427.
[114] “Se aceitamos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior. E o
testemunho de Deus é este: ele testemunha a respeito do seu Filho. Aquele que
crê no Filho de Deus tem este testemunho dentro de si” (1Jo 5,9-10a).
[115] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm.
Dei
Verbum, 2.
[116] J. Ratzinger, Gesammelte Schriften, Band VI/1, 408f, Herausgeber: Gerhard Ludwig
Müller, Freiburg im Breisgau, Herder Verlag, 2014; J. Ratzinger/Bento XVI,
Jesus de Nazaré, vol. VI/1, Contribuições para a Cristologia, Brasília, Ed.
CNBB, 2017, p. 399.
[117] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm.
Dei
Verbum, 2.
[118] Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q.25, a.1, Resp.
[119] Paulo sublinha que Cristo nos introduz na própria mente de Deus, pois cita
Isaías 40,13: “Quem conheceu o pensamento do Senhor (LXX: noun Kuriou;
Heb: ruah Adonai), quem o aconselhará? Nós, todavia, temos o pensamento
de Cristo” (cf. também Rm 11,34). Ver M. Quesnel, La première épître aux Corinthiens, Commentaire Biblique:
Nouveau Testament, Cerf, 2018, p. 88-92.
[120] Francisco, Carta Encíclica
Lumen Fidei, 2013, 18.
[121] Ibid., 27, com citação de Gregório Magno, Homiliae in Evangelia, II, 27, 4:
PL 76, 1207.
[122] Ver Francisco,
Discurso em Nápoles por ocasião do simpósio “A teologia
depois Veritatis Gaudium no contexto mediterrâneo”, 21 de junho de
2019.
[123] “Pela grandeza e beleza das criaturas, podemos contemplar, por analogia,
o seu Autor” (Sb 13, 5); Tomás de Aquino, Scriptum super Sententiis liber I, q. 1, a. 2, ad 2, que se refere
à “analogia creaturae ad creatorem”.
[124] M. Lochbrunner, Analogia Caritatis. Darstellung und Deutung der
Theologie Hans Urs von Balthasars, Freiburg im Brisgau - Basel - Wien,
Herder, “Freiburger Theologische Studien”, nº 120, 1981, p. 62 e p. 292-293; Comissão Teológica Internacional
(CTI), Teologia, cristologia, antropologia, 1981, D, 1: “O anúncio de
Jesus Cristo, Filho de Deus, é apresentado sob o signo bíblico do ‘por vós’.
É por isso que toda a cristologia deve ser tratada do ponto de vista
soteriológico. É, portanto, correto, em certo sentido, que os autores modernos
tenham tentado elaborar uma ‘cristologia funcional’. Mas, em contrapartida,
também deve ser sustentado que a ‘existência para os outros’ de Jesus Cristo não
pode ser separada nem de sua relação com o Pai nem de sua comunhão íntima com
ele e que, consequentemente, deve ser fundada obrigatoriamente em sua filiação
eterna. A pró-existência de Jesus Cristo, através da qual Deus se
comunica aos homens, pressupõe a sua pré-existência”.
[125] É por isso que São Tomás de Aquino insiste no fato de Adão ter sido dotado
de graça na sua criação, sem a qual não teria podido realizar a sua vocação
humana. Tomás de Aquino, Scriptum super Sententiis liber II, d.29, q.1,
a.2; d.30, q.1, a.1; Summa Theologica, I, q.95, a.1; I-II, q.109, a.5.
[126] J. Ratzinger/Bento XVI, Pontos de orientação cristológica, traduzido do alemão por Cornelius
Pfeifer, Brasília, Ed. CNBB, 2025 (OCJR VI/2; JRGS VI/2, p. 701).
“Os presentes argumentos foram apresentados pela primeira vez no Rio de Janeiro
durante um congresso cristológico organizado em setembro de 1982 pelo CELAM”.
[127] Ibid. (OCJR VI/2; JRGS VI/2, p. 702).
[128] “Em verdade, em verdade vos digo: o Filho não pode fazer nada por si
mesmo; ele faz apenas o que vê o Pai fazer. O que o Pai faz, o Filho faz de modo
semelhante. O Pai ama o Filho e lhe mostra tudo o que ele mesmo faz. E lhe
mostrará obras maiores ainda, de modo que ficareis maravilhados” (Jo 5,19-20);
“Esta é a mensagem que ouvistes desde o início: que nos amemos uns aos
outros” (1Jo 3,11).
[129] J. Ratzinger/Benedito XVI, Pontos de orientação cristológica (OCJR VI/2; JRGS VI/2,
p. 707).
[130]Bento XVI, Carta Encíclica
Caritas in Veritate, 33.
[131] P. Florensky, La colonne et le fondement de la vérité, L'Âge d'Homme, Lausanne, 1975,
p. 42 (tradução modificada). Quando Florensky fala da “definição da Igreja”, mais do que da instituição
eclesial, ele se refere ao mistério da Igreja em toda a sua profundidade mística
e teológica.
[132] “Τοῦ Θεοῦ Λόγον ἀρνούμενοι, εἰκότως καὶ λόγον παντός εἶσιν ἕρημοι”, Atanásio, Il credo di Nicea,
I, 2,1, trans. E. Cattaneo, Roma, Città Nuova, 2001; (cf. PG 25, 425 D-428 A);
tr. cit. p. 57; Atanásio, De decretis Nicaenae synodi, em L. Dîncă, Le
Christ et la Trinité chez Athanase d'Alexandrie, p. 334-380.
[133] Agostinho, Confissões, III, VI, 11, CCL 27, p. 33; Tomás de Aquino,
Summa Theologica, I, q.104, a.1, Resp.
[134] Supra, § 32 a 37.
[135] CTI, Teologia, cristologia e antropologia, 1982, C.
[136] Francisco, Exortação Apostólica
Evangelii Gaudium, 115.
[137] Gaudium et Spes, 53: “É próprio da pessoa humana alcançar a verdadeira e plena humanidade
somente através da cultura, isto é, cultivando os bens e valores da natureza”.
[138] Francisco, Exortação Apostólica
Evangelii Gaudium, 115; Id.,
Carta sobre o
papel da literatura na formação, 17 de julho de 2024; Id.,
Carta
sobre a renovação do estudo da história da Igreja, 21 de novembro de 2024.
[139] Francisco, Constituição Apostólica
Veritatis Gaudium, 2, que se baseia em Paulo VI, Exortação Apostólica
Evangelii nuntiandi, 19.
[140] Concílio Ecumênico Vaticano II, Decreto
Ad gentes,11.
[141] Por exemplo, o Egô eimi do quarto Evangelho, ou a terminologia de
Hb 1,3 ou 2Pd 1,4.
[142] “Quando a Igreja entra em contato com grandes culturas que não tinha
encontrado antes, não pode por de parte o que adquiriu através da sua
inculturação no pensamento greco-latino. Rejeitar uma tal herança seria ir
contra o desígnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos caminhos
do tempo e da história”, João Paulo II, Encíclica
Fé e Razão, 72.
[143] Ibid, 71.
[144] Ver o tema da “teologia da escuta” como antídoto para a “síndrome de
Babel”, Francisco, Discurso em Nápoles por ocasião do simpósio “A teologia
depois Veritatis Gaudium no contexto mediterrâneo”, 21 de junho de 2019.
[145] Esta purificação e transfiguração das culturas é o que permite evitar o
risco do relativismo, sublinhado pela Congregação para a Doutrina da Fé,
Dominus Iesus, 4.
[146] João Paulo II, Encíclica
Fé e Razão, 70. Sobre a manutenção da identidade cultural:
ibid, 71.
[147] A Diogneto, V,1-4, em B. Pouderon, J.-M. Salamito, V. Zarini, Premiers écrits chrétiens, p.
813. Tradução do Ofício de Leituras, Liturgia das Horas, quarta-feira da 5ª
semana da Páscoa.
[148] “Acontecerá, nos dias que hão de vir, que o monte da Casa do Senhor será
estabelecido acima dos montes, e se elevará sobre as colinas, e para ele
afluirão todas as nações. Povos numerosos irão dizendo: ‘Vinde! Subamos ao monte
do Senhor, à Casa do Deus de Jacó. [...] Pois de Sião sairá a Lei; e a palavra
do Senhor, de Jerusalém. [...] Nação contra nação não levantará espada, e não se
adestrarão mais para a guerra” (Is 2,2-4; cf. Mq 4,1-4); “A minha casa será
chamada: ‘Casa de oração para todos os povos’” (Is 56,7; Zc 14,16).
[149] É impressionante como Paulo, ao anunciar o Evangelho na direção
estabelecida por Pentecostes, celebra a unidade da família humana no Areópago:
“De um só homem ele fez toda a espécie humana, para habitar sobre toda a face da
terra, tendo estabelecido o ritmo dos tempos e os limites da sua habitação” (At
17,26).
[150] João Paulo II, Encíclica
Fé e Razão, 95-96.
[151] Alexandre de Alexandria, Carta a Alexandre de Bizâncio, 5 (FNS 8,5;
Urkunde 14; Dokumente, 17, p. 46-55).
[152] CTI, A sinodalidade na vida e na missão da Igreja, 2018, I, n.º 19.
[153] Cipriano, Epistula 14, 4 (CSEL III, 2, p. 512); CTI, A sinodalidade, nº
25, que deve ser consultado para mais pormenores, segue de perto este
desenvolvimento sobre Inácio de Antioquia e Cipriano de Cartago.
[154] CTI, A Sinodalidade, 28.
[155] Ver J. A. Brundage, Medieval Canon Law, Londres-Nova Iorque,
Longman, 1995, p. 5.
[156] Um sínodo é “governado de acordo com o princípio do consenso e da
concórdia (harmonia) expresso na concelebração eucarística, como está implícito
na doxologia final do Cânone Apostólico, n.º 34”, Comissão Internacional Conjunta para o Diálogo Teológico entre a Igreja Católica
e a Igreja Ortodoxa, Documento de Ravenna: Ecclesiological and Canonical
Consequences of the Sacramental Nature of the Church, Ecclesial Communion,
Conciliarity and Authority, 26; “A Igreja [revela-se] católica na synaxis
da Igreja local” (ibid., 22).
[157] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const.
Sacrosanctum Concilium, 10; CTI,
A Sinodalidade, 47.
[158] CTI,
A Sinodalidade, 29.
[159] Rousselot considerava que certos procedimentos heurísticos de S. Tomás
correspondiam a uma “prioridade e anterioridade recíprocas” de dois princípios
inseparáveis ordenados em relação um ao outro (P. Rousselot s.j., “Les Yeux de
la foi”, RSR, 1910, p. 448).
[160] Agostinho de Hipona: “Crede ut intelligas”, Sermo 43, 7 e 9 (CCSL
41, Pars XI,1, Sermones de Vetere Testamento, p. 511 e 512); Anselmo:
“Credo ut intelligam”, Proslogion, 1.100, em Anselmo de Cantuária,
Monologion; Proslogion, introduções, tradução e notas de M. Corbin; [texto
latino compilado por Dom F. Schmitt] Paris, Cerf, 1986, p. 242-243.
[161] Paulo VI, Carta Encíclica
Ecclesiam suam, 71: “Não se quis, e com razão, atribuir ao próprio Concílio [Vaticano II] um
objetivo pastoral que equivale a inserir a mensagem cristã na circulação do
pensamento, da expressão, da cultura, dos costumes e das tendências da
humanidade que hoje vive e se move sobre a face da terra?"
[162] Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática
Dei Verbum,
7-8.
[163] Catecismo da Igreja Católica, 1992, n.º 156, com referência à
constituição dogmática
Dei Filius do Vaticano I, capítulo 3 ( DS,
3008).
[164] “Mas este testemunho ou é apenas de um homem - e isso não constitui a virtude da
fé, porque um homem pode enganar e ser enganado - ou provém do julgamento divino
- e este é veríssimo e firmíssimo, porque provém da própria verdade, que não
pode enganar nem ser enganada. E, portanto, ele diz a Deus, para que possa
concordar com o que Deus diz” (“Hoc autem testimonium vel est hominis tantum : et istud non facit
virtutem fidei, quia homo et fallere et falli potest. Vel istud testimonium est
ex iudicio divino : et istud verissimum et firmissimum est, quia est ab ipsa
veritate, quae nec fallere, nec falli potest. Et ideo dicit, ad Deum, ut
scilicet assentiat his quae Deus dicit”) (Tomás de Aquino, Super Epistolam B.
Pauli ad Hebraeos lectura [rep. vulgata], cap. 6,l.1).
[165] O termo que habitualmente usamos é “filiação”, mas o objetivo aqui é
insistir no início da filiação, o próprio movimento pelo qual nos tornamos
filhos e filhas de Deus.
[166] “Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, deve-se levar em conta, entre
outras coisas, os gêneros literários. Pis a verdade é apresentada e expressa de
distintas maneiras nos textos de históricos, proféticos, poéticos ou ainda
pertencentes a outros gêneros. [..] porém, a Sagrada Escritura deve ser lida e
interpretada no mesmo Espírito com a qual foi escrita”, Concílio Ecumênico Vaticano II,
Constituição dogmática
Dei Verbum, 12.
[167] “Esta economia da Revelação se realiza através de atos e palavras (gestis
verbisque) intimamente relacionados entre si, de forma que as obras,
realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e
as realidades significadas pelas palavras; enquanto que as palavras proclamam as
obras e elucidam o mistério nelas contido”,
Dei Verbum, 2.
[168] Bento XVI, Exortação Apostólica
Verbum Domini, 55.
[169]“Mistério da Igreja, ainda mais profundo – se isso é possível -, mais “difícil
de acreditar” que o Mistério de Cristo, assim como este já era mais difícil de
acreditar que o Mistério de Deus” in H. de Lubac, Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme (1938), in Œuvres complètes VII, ed. M. Sales, s.j. - M.-B. Mesnet, 2003, p. 48-49.
[170] Concílio Ecumênico Vaticano II, Decreto
Unitatis redintegratio, 11.
[171] Concílio Ecumênico Vaticano I, Const. Dogm.
Dei Filius, IV (DH, 3016); Commissione Teologica Internazionale,
L'interpretazione dei dogmi (1990), II, 3, § 3, em Id., Documenti
1969-2004, seconda edizione riveduta e corretta, prefazione Card. W. J.
Levada; introduzione L. Ladaria, SJ, Bolonha, Edizioni Studio Domenicano, 2010,
p. 403.
[172] Como no “colóquio no Espírito Santo”, Francisco, “Discurso na abertura da
XVI sessão do Sínodo dos Bispos”, 4 de outubro de 2023: “A Igreja, uma harmonia única de vozes, com muitas vozes, realizada pelo Espírito
Santo: assim devemos conceber a Igreja”.
[173] CTI,
A Sinodalidade, 19-21.
[174] CTI,
O “sensus fidei” na vida da Igreja, 67-86.
[175] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm.
Dei Verbum, 10.
[176] CTI,
O “sensus fidei” na vida da Igreja, 77.
[177] Concílio Ecumênico Vaticano II, Decreto
Ad gentes, 15.
[178] “Toda a minha fé está no mais banal dos meus sinais da cruz, e, quando
pronuncio ‘Pai Nosso’, já incluí todo aquele conhecimento que só me será dado na
Revelação da glória”: Y. Congar, La Tradition et les traditions. Essai
théologique, Paris, Fayard, 1th ed. 1963, vol. 2, p. 185.
[179] CTI,
A teologia hoje: perspectivas, princípios e critérios, 33: “O sujeito da fé é o povo de Deus em seu conjunto, que no poder do Espírito
afirma a Palavra de Deus. É por isso que o Concílio declara que a totalidade do
povo de Deus participa do ministério profético de Jesus, e que, ungido pelo
Espírito Santo (1Jo 2,20.27), ‘não pode enganar-se no ato de fé’”.
[180] Tertuliano, Liber de praescriptionibus adversus haereticos, XX,8-9, introdução,
texto crítico e notas de R. F. Refoulé, o.p., tradução de P. de Labriolle,
Paris, Cerf, SC 46, p. 113-114.
[181] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const. Dogm.
Lumen gentium, 12.
[182] Ibid, 24 in fine, e 25.
[183] “Esta concepção de propaganda político-religiosa foi retomada pela Igreja
à medida que esta se expandia pelo Império Romano. Ela se deparou com uma
concepção de teologia pagã em que reina o monarca divino, mas onde governam os
deuses nacionais. Em resposta a esta teologia pagã, adaptada ao Império Romano,
os cristãos afirmaram que os deuses nacionais não podiam reinar, porque as
pluralidades nacionais tinham sido abolidas. A proclamação cristã de um Deus em
três pessoas ultrapassa o judaísmo ou o paganismo, pois o mistério da Trindade
está na própria divindade e não na sua criatura. O mesmo se aplica à paz que o
cristão procura, que não é garantida por nenhum imperador, mas só pode ser um
dom daquele que está acima de toda a razão”, in E. Peterson, Der Monotheismus
als politisches Problem. Ein Beitrag zur Geschichte der politischen Theologie im
Imperium Romanum, Leipzig, 1935, p. 104-105.
[184] A CTI, em
O “sensus fidei” na vida da Igreja, trata de vários aspectos
desse tema: no nº 26, sobre Newman e o critério do sensus fidei fidelium
contra as divergências dos bispos do século IV; no nº 34, sobre a concepção
renovada no século XIX do caráter ativo e não apenas passivo do
sensus fidei fidelium; nos n. 113 e 118, sobre a relação entre o sensus
fidei e a opinião pública maioritária, dentro e fora da Igreja.
[185] Francisco, Constituição Apostólica
Veritatis Gaudium, 3.
[186] Carta 90 “To Natalia Dmitrievna Fonvizina, late January-February 1854,
Omsk”, in F. Dostoiévski, Correspondência. Edição completa, apresentada e
anotada por J. Catteau. Traduzido do russo por Anne Coldefy-Faucard. Vol. 1,
1998, p. 341.
[187] “[Os pobres] têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas
próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos
evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força
salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos
chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas
causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher
a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles”, Francisco, Exortação Apostólica
Evangelii Gaudium, 198.
[188] Catecismo da Igreja Católica, 540: “Cristo venceu o Tentador por
nossa causa”; também 394, 677.
[189] “Instruídos pela palavra e pelo exemplo de Cristo (Christi verbo et
exemplo edocti), os apóstolos seguiram o mesmo caminho. Desde os inícios da
Igreja, os discípulos de Cristo esforçaram-se por converter as pessoas ao Cristo
Senhor não através de coação ou de artifícios indignos do Evangelho, mas antes
de tudo através da força da Palavra de Deus (1Cor 2,3-5; 1Ts 2,3-5). Com
coragem, anunciavam a todos o propósito de Deus salvador, ‘que quer que todos
sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2,4). Mas, ao mesmo
tempo, respeitavam os fracos, mesmo que vivessem em erro, mostrando como “cada
um de nós dará contas a Deus por si mesmo” (Rm 14,12; 1Cor 8,9-13; 10,23-33) e,
portanto, como cada um se obriga a obedecer à própria consciência. Assim como
Cristo, os apóstolos sempre se esforçaram para dar em testemunho da verdade de
Deus, cheios de audácia em anunciar ‘corajosamente a Palavra de Deus’ (At 4, 31)
perante o povo e os seus chefes”, Concílio Ecumênico Vaticano II, Declaração
sobre a liberdade religiosa
Dignitatis humanae, 11.
[190] Francisco, Carta Encíclica
Dilexit nos, 2024, 214.
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